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Olhares Olhares 2020

O lugar do sonho na literatura infantil

Alexandre Rampazo, Lúcia Hiratsuka, Aline Abreu e outros escritores, ilustradores e profissionais do livro dividem suas histórias preferidas sobre sonhos

Imagem do Livro “Os convidados da senhora Olga”

Por Renata Penzani, jornalista especialista em literatura infantil

“ – Acorde, querida Alice – dizia sua irmã – mas que sono pesado você teve!

– Ah, eu tive um sonho tão esquisito! – disse Alice. E pôs-se a contar à irmã, até quanto podia se lembrar, todas essas estranhas Aventuras que vocês acabaram de ler. E quando terminou, sua irmã beijou-a, dizendo:

– Foi um sonho bem curioso, sem dúvida, minha querida , mas agora corra, é hora do chá, e já está ficando tarde.

Alice levantou-se e saiu correndo, pensando, enquanto corria, que sonho maravilhoso tinha sido aquele.

O diálogo acima faz parte de uma obra mística, mágica e  – por que não? – algo lisérgica da literatura para crianças. Estamos falando de “Alice no País das Maravilhas”, uma das narrativas oníricas mais conhecidas do repertório literário mundial. Até os dias de hoje, mesmo passado mais de um século de sua publicação, o livro ainda é um símbolo histórico de resistência contra o conservadorismo cultural. 

Na história, uma menina chamada Alice está entediada folheando um livro sem figuras quando de repente avista um coelho branco e adentra um mundo desconhecido. Tudo acontece depois que ela dorme debaixo de uma árvore na companhia da irmã. 

Publicada pela primeira vez em 1865, a viagem-sonho de Alice atravessou os tempos com uma espantosa atualidade, e se transformou em referência quando o assunto é a relação entre a literatura e o universo onírico. 

Afinal, um texto do século XIX não perder sua força é indício de que sonhar continua sendo ao longo dos tempos uma possibilidade universal de superação do real. Como diria a canção de Milton Nascimento, “sonhos não envelhecem” e nem têm pavio. Sua inacabável chama acesa parece ser, sempre, a necessidade humana de ir além da realidade.

Aqui, vamos refletir um pouco mais de perto sobre esse ponto de contato entre a ficção e o sonho, a partir de uma pergunta: qual o lugar do sonho na literatura dita “para crianças”? (e aqui as aspas envolvendo o adjetivo não são por acaso, afinal, a delimitação etária não deve limitar a quem serve uma história). 

Infância e sonho

Em “Alice no país das maravilhas”, um detalhe logo no início do livro faz toda a diferença na interpretação do que se passa: dentre as duas irmãs, uma delas vai, enquanto a outra fica. Uma está com os pés fincados na realidade, que lhe parece tão insuficiente quanto passível de ser superada, enquanto a outra passa a seguir um despropositado coelho falante e apressado. Ou seja, quais são as bases que nos prendem a experiência concreta, e como elas dialogam com as visões do sonho?

Se pensarmos na função social do ato de ouvir e contar histórias, podemos entender que o gesto de imaginar outros mundos além deste é uma forma de não sucumbir à ideia de que isto que vemos é tudo o que existe. Não é à toa que, desde o nascimento, estamos sempre contando coisas uns aos outros. “O universo é feito de histórias, não de átomos”, já diria a poeta Muriel Rukeyser, em “The speed of darkness”.

No célebre livro “O círculo dos mentirosos”, Jean-Claude Carrière compartilha sua ideia de que as narrativas que ouvimos na infância são a nossa primeira catapulta rumo ao além-mundo. “É por meio do ‘era uma vez’ que o ato de ir além do mundo, em outras palavras, a metafísica, é introduzida na infância de cada indivíduo, e talvez também na dos povos, a ponto de muitas vezes fazer se aprofundar ali uma raiz tão forte que nos faz tomar nossas invenções humanas, toda nossa vida, por uma realidade que não admite nenhuma discussão.”

Da mesma forma como o fazem as histórias, o ato de sonhar nos coloca em contato com outras narrativas de nós e dos nossos mundos individuais e coletivos, ao juntar e sintetizar imagens e aprendizados vividos quando estamos acordados. Segundo o neurocientista Sidarta Ribeiro, no livro “Oráculo da noite”, “a matéria dos sonhos é a memória; ninguém sonha sem ter vivido”. Para ele, “o sonho é um simulacro da realidade feito de fragmentos de memórias”. Nesse sentido, sonhos parecem se mover com a mesma engrenagem das histórias: o desejo de nos imaginarmos outros. “O sonho é a imaginação sem freio nem controle, pronta para temer, criar, perder e achar”, diz o pesquisador.

“A matéria dos sonhos é a memória; ninguém sonha sem ter vivido”

Sidarta Ribeiro

No final do livro de Lewis Caroll, é a vez de a irmã de Alice passar a sonhar, momento em que ela própria passa a tornar concreta a imensa quantidade de maravilhas vivenciada pela protagonista. “E enquanto escutava – ou pensava escutar, todo o espaço em torno dela tornava-se povoado das estranhas criaturas do sonho de sua irmãzinha”, escreve Carroll. 

Por que o escritor escolheu esse desfecho, e não outro? Por que em uma das histórias mais conhecidas da literatura clássica infantil a realidade é apresentada como aquilo que acontece no espaço entre duas dimensões? Ao leitor, fica a dúvida de qual delas é a verdadeira, se tudo de fato não passou de sonho ou se, ao contrário, o que chamamos de realidade na verdade talvez não passe de uma mal ajambrada ilusão. 

Parte daí a pergunta que move este texto e a própria edição 2020 da Ciranda de Filmes: afinal, qual o papel do sonho na vida das gentes desse mundo?

A jornalista Cristiane Rogerio, em um texto publicado em seu site Esconderijos do tempo, faz pensar na proximidade entre brincar e reinventar a vida – portanto, sonhar. 

“Certa vez, Lewis Carroll escreveu numa carta para uma criança sua amiga: “Você costuma brincar de vez em quando? Ou a ideia que você faz da vida é ‘café da manhã, fazer lições, almoço, fazer lições e assim por diante?… Essa seria uma forma muito organizada de viver, e seria tão interessante quanto ser uma máquina de costura ou um moedor de café”.

A ciência tem numerosas e diferentes respostas à pergunta “por que sonhamos?”. Mas afinal, na melhor das hipóteses, sonhamos e imaginamos outros mundos para escapar de viver como máquinas. Não por acaso, tudo o que existe foi, antes, o sonho de alguém.

Vamos à lista de livros!

Para fazer coro à famosa ideia de que sonho sonhado junto é quase realidade, convidamos 13 profissionais do livro para repercutir suas noções do que é, como é, e onde aparece o sonho nos livros para crianças. A lista abaixo foi produzida coletivamente, e cada obra foi sugerida por um profissional diferente ligado ao livro e à infância.

Aproveite as dicas e boa leitura!

Os convidados de senhora Olga, de Eva Montanari
(Jujuba)

“As imagens delicadas são muito divertidas e apresentam cenas com um nonsense que reforçam toda a atmosfera de um tipo especial de sonho: o sonhar acordado da imaginação. A escritora e ilustradora italiana Eva Montanari cria imagens luminosas e emprega a técnica do pastel seco de modo que cada elemento das cenas parece brotar do papel. Nessa história, Eva nos conta sobre uma senhora que vive sozinha no alto de uma colina. A senhora Olga não vê com os olhos mas sabe muito bem quem vem para jantar todas as noites, sempre um convidado diferente, cada um com suas manias. Eva Montanari apresenta uma série de convidados que são personagens de outras obras literárias bastante conhecidas e, ao final, quando descobrimos um segredo… as ilustrações mais uma vez mostram o poder mágico da imaginação. São muitos os livros que nos fazem sonhar com coisas que nunca vimos, viajar para muito longe ou bem para dentro, de olhos fechados ou abertos. É bom demais estar perto desses livros”.

Aline Abreu, escritora e ilustradora

“Hora de sair da banheira, Shirley!”, de John Burningham (Cosac & Naify)

“Tem este sonhar que habita na criança, esteja ela dormindo profundamente e navegando em seus sonhos mais profundos ou, o que é mais fascinante, quando a criança está desperta dentro da possibilidade que brota na poesia que percebe na vida, e ainda assim, se permite sonhar. A menina Shirley, na hora do banho, na contramão dos pedidos da mãe, sonha que, naquele momento que só à ela pertence, outros mundos são possíveis. O encantamento que há no livro é justamente esse: percebermos que para a criança, não há constrangimentos em habitar outras realidades e possibilidades do sonhar a todo momento, mesmo que estes sonhos aconteçam longe do travesseiro.”

Alexandre Rampazo, escritor e ilustrador

“A casa da madrinha”, de Lygia Bojunga
(Casa Lygia Bojunga)

“‘A casa da madrinha’, de Lygia Bojunga. Essa casa é o lugar do sonho que dá sentido à vida dura do personagem Alexandre, menino pobre, que vende sorvete na praia para ajudar a família. É um texto recheado de simbologias e fiquei impressionada pela forma como a autora conseguiu mesclar realidade e fantasia para falar de emoções tão profundas. Os diálogos ágeis também me encantaram.”

Lúcia Hiratsuka, escritora e ilustradora

A bicicleta que tinha bigodes, de Ondjaki
(Pallas)

“Eu não sei andar de bicicleta. Parece bobo, mas é um sonho que estou tentando realizar mesmo depois de virar “gente grande”. É por isso que indico o livro “A bicicleta que tinha bigodes”, obra infanto-juvenil do escritor angolano Ondjaki, que trouxe para mim a conexão com um sonho antigo. Esta é uma história que nos conduz a ver leveza e encanto na vida, mesmo diante de um cenário conturbado. Mostra também o papel da criança como símbolo de esperança e fonte de inspiração para a literatura em tempos difíceis.”

Kemla Baptista, contadora de histórias, educadora e autora

“Mandela, o africano de todas as cores”, de Alain Serres; Zaü
(Pequena Zahar)

“Quem sonha um país? Como viveriam as pessoas no país dos seus sonhos? O que fazer para se tornar realidade? Estas são algumas perguntas que o livro ‘Mandela, o africano de todas as cores’, de Alain Serres e Zaü desenha em texto, projeto e imagens um sonho que podemos chamar de coletivo e que passa por pesadelos descoloridos (ou sonhos reprimidos?) até uma conquista que muitos acreditavam ser apenas utopia da África do Sul de então! E como sonhos realizados inspiram novos sonhos!”

Magno Rodrigues Faria, educador, contador de histórias, e coordenador pedagógico do Instituto Acaia

Sulwe, de Lupita Nyong’o – (Rocco Pequenos Leitores)

“Sulwe é a história de uma menina negra retinta que vive com a mãe, o pai e a irmã, negros de pele mais clara. Com o tempo, ela se vê diferente da família e de todos que a cercam.  A menina quase não têm amigos, ao contrário da irmã, que vive sendo elogiada por sua beleza e claridade. Sulwe começa a viver infeliz com a sua aparência; triste pelos cantos. Sua mãe, ao perceber, explica sobre as diferentes belezas que há no mundo. Ela entende com a cabeça, mas não com o coração. Certa noite, uma estrela cadente aparece em seu quarto e lhe conta uma história. Através do sonho,  a menina compreende o encanto da sua pele, escura como a noite. Nessa fábula, percebemos o sonho, não como uma experiência cotidiana, mas como um exercício de busca por orientação para as escolhas da vida. Há quem encontre nos sonhos a cura, a inspiração e a resolução de questões práticas. Por vezes, o que não discernimos racionalmente, se manifesta e se resolve através dos nossos sonhos.” 

Anderson Barreto, ator, performer e contador de histórias

“Barriga de Baleia”, de António Jorge Gonçalves
(MOV Palavras)

“Comecei distraidamente, lendo para o meu filho Benjamin, numa noite qualquer de uns 3 anos atrás, minha relação com esse livro do português António Jorge Gonçalves. Adultos que dormem. Uma criança – Sari – que pode ser inteira enquanto os adultos se entregam ao sono/sonho. Sari também pode sonhar, desobedecer os limites da “própria casa”  para avançar rumo a uma experiência do litoral da paisagem até o mar bravio das vontades. Engolida por uma baleia, como Jonas, Gonçalves ilustra as emoções oceânicas da personagem. Os adultos despertam quando tudo pode ser devolvido a alguma normalidade. E esse será o retorno da menina ao aconchego da própria cama. Talvez só haja repouso para uma criança, quando sua parentalidade encontra a justa medida entre o sono e a vigília.” 

Giuliano Tierno, educador, contador de histórias e gestor da A Casa Tombada

O Cântico dos Cânticos, de Ângela-Lago
(Sesi-SP)

“Em que lugar seria possível encontrar reunidos um poema de amor escrito há 3 mil anos, labirintos, espirais, o dia e a noite, as obras do artista Escher, iluminuras medievais e islâmicas, encontros e desencontros, o fim e o começo? Em um sonho, é claro! Quando abrimos o livro ‘O Cântico dos Cânticos’, da incrível artista Ângela Lago, é como se estivéssemos entrando em um sonho. Ele traz aquela sensação de deslumbramento e mistério tão própria do universo onírico. Como é próprio de uma obra de arte, ‘O Cântico dos Cânticos’ se abre para uma infinidade de leituras, possibilitando que o leitor viva de fato uma experiência, bastando apenas que sejam sensíveis às delicadezas da arte e do amor.”

Amanda Miorim, professora e contadora de histórias

O meu amigo pintor, de Lygia Bojunga
(Casa Lygia Bojunga)

“Em ‘O meu amigo pintor’, meu texto preferido de Lygia Bojunga, dois sonhos do menino Cláudio, devastado pelo suicídio do seu melhor Amigo, são verdadeiras encruzilhadas que misturam memória e arte, vida e morte. Neles, o menino traz à vida um quadro abstrato do seu Amigo — a obra de um artista é, afinal, uma chave para sua vida e, às vezes, para sua morte. No primeiro sonho, Cláudio se assombra com o Amigo no papel de fantasma, deslocado no teatro da vida, perdido no palco da morte, quase arrependido de tê-la escolhido, num limbo que é dele e também do menino. No segundo, mais conciliador, as três grandes paixões do pintor em vida (a pintura, a política e Clarice) asseguram a Cláudio que seu Amigo vai viver feliz e em paz para sempre na morte. Tal qual uma tinta incorpora outra, seu amor pelo Amigo toda-a-vida absorve, aos poucos, seu luto e incompreensão, e então uma paz muito pequena, muito grande, abraça Cláudio e o leitor.”

Guilherme Semionato, escritor

Histórias de índio, de Daniel Munduruku
(Companhia das Letrinhas)


“Meu primeiro livro, ‘Histórias de índio’, tem um conto intitulado “O menino que não sabia sonhar”. O conto narra como um curumim, que nasceu com o dom para ser pajé, teve que aprender a arte do sonhar para poder seguir seu caminho como curandeiro dentro de sua comunidade.”

Daniel Munduruku, escritor e professor

Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll – (Clássicos Zahar)

“Difícil escolher uma única obra sobre sonhos, acredito que o motivo da viagem à mundos oníricos esteja na própria raíz de se contar histórias. ‘Alice no país das maravilhas’, de Lewis Carroll e “A menina do narizinho arrebitado” de Monteiro Lobato são marcos da literatura infantil que bebem dessa fonte. Mas vamos lá: logo de saída me vem ao coração ‘Little Nemo in Slumberland’, do genial Winsor McCay, um dos pais do cinema de animação. Seu traço elegante e maravilhosas aquarelas narravam as aventuras insólitas, cheias de beleza e toques de surrealismo no reino de Morfeu. Histórias que sempre terminavam com o menino Nemo despertando em sua cama. O mestre Maurice Sendak, em seu ‘In the Night Kitchen’ faz reverência ao pequeno Nemo. Em meu trabalho, ilustrei algumas histórias tendo sonhos como matriz, uma delas é ‘Sonhe-me!’, livro com bonito texto da escritora Padmini. Para narrar em imagens esta história, busquei abrigo nesses gigantes e também no querido Eduardo Galeano com seu ‘O livros dos abraços’ e seus sonhos de Helena.”

Mateus Rios, ilustrador

Harvey – Como me tornei invisível, de Hervé Bouchard e Janice Nadeau
(Pulo do Gato)

“É um livro em que o sonho se contrapõe à realidade para que o personagem possa sobreviver psiquicamente à morte súbita do pai. Para tentar elaborar a dor, proteger-se dos sentimentos desconhecidos que o invadem, ele recorre ao “sonho” acordado, resgatando o herói de um filme que assistiu escondido, em que, inexplicavelmente, o personagem vai encolhendo até se tornar invisível. Scott Carré é Harvey, Harvey é Scott Carré, um elo metafórico em que a identificação com outro dá recursos pra nomear o que está vivendo”.

Márcia Leite, escritora e publisher da Pulo do Gato

Coragem de sonhar, de Maria Dinorah
(Moderna)

“O livro é delicado e traz os sonhos não apenas no título, como no delicado conteúdo da obra que marcou minha infância. Nele – e a partir dele -, me percebi encorajado a tornar os sonhos de infância realidade, enfrentar os desafios do mundo e da (futura) vida adulta com brilho nos olhos e esperança no coração, apesar das provocações do destino e das limitações de uma cidade pequena. Foi através dessa coragem que, aos 17 anos, coloquei uma mochila nas costas e decidi ganhar o mundo, saindo de uma cidade pequena no Rio Grande do Sul para a capital de concreto em São Paulo, há quase 20 anos atrás.”

Diego de Oxóssi, babalorixá e editor-chefe na Arole Cultural

Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan
(Cosac Naify) 

O livro é uma espécie de série de cartas sonhadas. Começa meio sem começo e termina sem um final. Inicia-se na consulta a um sábio búfalo incompreendido e se finda  com um amoroso salvamento. Entre a sabedoria e o gesto, o australiano Shaun Tan nos eleva a possibilidades de mundos que, ao mesmo tempo que nos parece estranho soa familiar. Entre os 15 contos, ou nestas cartas de imaginar lugares, tem um tantinho ali que é um presente: a preservação da utopia. “Preservação” mesmo, como um cultivo: história a história, a acreditarmos mais em nós mesmos e no viver comum. É tudo assim. Cartas de sonhos entre o fantástico e o possível, nos confirmando que ambos andam mais de mãos dadas do que imaginamos.

Cristiane Rogerio, jornalista  e coordenadora do curso O livro para a infância na Casa Tombada