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Olhares Olhares 2017

Atenção plena ao que nos nutre

No meio da correria cotidiana, são muitas as vozes que escutamos, as tarefas que cumprimos, as regras e os modelos que seguimos para ter certeza de que tudo está em seu lugar. A força do hábito às vezes nos traz a sensação de viver no piloto automático, sem parar para ouvir a nossa voz e descobrir o que nutre os nossos sonhos.

Sem essa pausa introspectiva, sem prestar atenção ao que estamos pensando e fazendo, nosso destino seria apenas seguir o bando, vivendo sem autonomia e sem consciência sobre nossas decisões. Mas podemos ir bem além disso, provoca Regina Migliori, coordenadora do MindEduca, um programa de desenvolvimento pessoal baseado em neurociência e atenção plena (ou mindfulness), uma prática que ela vai abordar em três experiências que serão realizadas na Ciranda de Filmes. “O discernimento é uma característica exclusiva da espécie humana. Ainda assim, muitas pessoas apenas seguem a vontade coletiva e tomam atitudes sem autoria. Precisamos reaprender a fazer escolhas conscientes.”

Para ela, o primeiro passo para retomar a perspectiva em primeira pessoa é se colocar no momento presente. Seguindo o conceito de atenção plena, a primeira experiência que Regina vai propor durante o evento é uma prática guiada de introspecção, uma maneira de estimular a autoconsciência e a conexão com o que nutre, de verdade, o nosso ser.  O que ela chama de introspecção consciente é parar para se contemplar com atenção, sem deixar a mente vagar pelo passado –o que traz uma reflexão– nem correr para o futuro, o que leva à preocupação, à ansiedade.

O exercício, aqui, é descobrir um foco de atenção e sustentá-lo. Quando essa atenção permanece, podemos dirigi-la para dentro de nós, descobrir o que queremos de verdade e agir a partir dessa vontade.

“A consciência sobre o momento presente é muito importante para mergulhar em si e retirar dali a melhor versão de si mesmo”, afirma Regina. Assim, ganhamos controle sobre como agimos. “Nossas ações são precedidas por decisões que podem ser tomadas com raiva ou compaixão. Ter consciência dessas ações é ter clareza sobre onde nascem, de que forma nos expressamos no mundo e que impacto causamos.”

Ela destaca uma atividade simples, mas muito importante, sobre a qual podemos ter mais consciência no dia a dia: comer. A ideia é parar para pensar de que forma decidimos nutrir o nosso corpo: com alimentos saborosos ou só rápidos de consumir? Com prazer ou com ansiedade? Por isso, Regina vai propor uma experiência com estímulos sensoriais ligados aos alimentos, para estimular o desejo e a apreciação de cada comida e descobrir o mindful eating (comer com atenção plena), um método que vem sendo usado por médicos e nutricionistas para tratar compulsões alimentares. Ou na reeducação alimentar de quem costuma comer reagindo apenas a estímulos externos — como a imagem de um chocolate cremoso — e não seguindo seu verdadeiro apetite. “O mindful eating é um comer com consciência do momento, do que está no prato, de com quem estamos, prestando atenção à nossa saciedade”, explica.

Na terceira experiência, Regina quer dirigir o olhar para o que está ao redor, incentivar a consciência sobre as teias de conexão que tecemos com o mundo e sobre como elas estão nutrindo os nossos sonhos e os dos outros. “Aquilo que eu penso, sinto e falo se reflete na completude do mundo. Então é interessante pensar em que tipo de teias estamos estimulando com as nossas escolhas de vida e de consumo”, diz Regina. Para fazer parte do sistema, devemos colocar nessa teia os sonhos descobertos, para que eles virem realidade com a colaboração do outro. “Muita gente abre mão do que sonha por não enxergar de que maneira isso pode acontecer. Do outro lado, tem quem não veja de que modo pode contribuir para tornar reais os sonhos dos outros.”

Texto: Bruna Fontes
Foto: Ciranda de Filmes

 

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Olhares Olhares 2017

Poesia é como ardor de borboleta

“Poesia, iluminarás meu caminho como uma borboleta a arder”, pede o então jovem poeta Alejandrito, em meados do século passado, pelas décadas de 40 e 50, em Santiago do Chile. Contrariando a família, o rapaz vira poeta e se junta a um grupo de escritores promissores e anônimos que compartilham uma vida autêntica, livre e louca.

Essa saga é contada em “Poesia sem Fim”, filme do aclamado cineasta Alejandro Jodorowsky, discípulo do surrealista André Breton.

Na obra, estão as experimentações poéticas de um grupo de artistas e intelectuais como Enrique Lihn, Stella Diaz e Nicanor Parra, todos até então desconhecidos, e que, depois, vão se tornar mestres da literatura moderna latino-americana.

O cinema jodorowskiano crê nas poéticas como verdadeiro alimento da alma. A Ciranda de Filmes também. E por isso o universo onírico desse imperdível cineasta, também poeta, mímico, ator e quadrinista, tem pré-estreia marcada na mostra. É para a alma se refestelar de poesia…

Confira o trailer abaixo.

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Olhares Olhares 2017

Resistência em comunidade

Vivemos um tempo de divisão. Cada um em seu lado, entrincheirado em suas ideias, afirma-se como indivíduo (ilusoriamente) independente e se opõe a quem pensa e vive de maneira diferente. Na vida cotidiana, estamos surdos para o outro. Nas redes sociais, ficamos também cegos, pois algoritmos nos escondem o que não nos agrada, constroem feudos nos quais a única comunidade possível é a que concorda, a que suprime conflitos.

Vivemos, também, um tempo de batalhas. Lutas para limitar direitos civis conquistados por comunidades diversas — mulheres, negros, LGBTs, entre tantas outras –, lutas para manter esses direitos, numa disputa quase sempre binária. Ou para conquistar outros, como a renda mínima, o transporte gratuito, a moradia acessível. A batalha por um teto fica mais acirrada em São Paulo, uma metrópole feita de migrantes e imigrantes, e agora também de refugiados de países em guerra. Mais gente está chegando, mas onde vão morar?

Achamos uma pista passeando pelo centro duro, cinza, da capital, mas com tanta vida agitando as ruas. Quem nos leva é a câmera do filme “Era o Hotel Cambridge”, filme de criação coletiva, no limiar entre a ficção e a não ficção, dirigido por Eliane Caffé, presença confirmada nas telas e nas rodas desta quarta edição da Ciranda de Filmes.

Seguindo seu olhar curioso, chegamos a uma porta vermelha, onde se abre uma brecha para entramos nesse hotel modernista abandonado na avenida Nove de Julho. Subimos pelas entranhas da construção, viajando pelos canos e pela fiação elétrica; ouvimos a estática e a descida da água, notamos que esse grande prédio não está vazio. Emergimos em uma comunidade barulhenta, viva, que tomou o imóvel e se estabeleceu ali junto com a Frente de Luta por Moradia, um dos tantos movimentos organizados desde os anos 2000 para ocupar prédios abandonados e expor, junto com suas bandeiras, o problema dos sem-teto na cidade.

Lá dentro convivem pessoas diferentes – o filme mostra os ocupantes reais do Cambridge misturados a alguns atores. Há o nordestino e o palestino. O poeta agitado e a líder do movimento social. Uma senhora que sonha com tempos passados, o jovem que deseja outro futuro. Cada um é a seu modo, mas neste mundo não vemos trincheiras. Para os sem-teto, formar uma comunidade para preencher o prédio vazio é a única forma de resistência. Juntos, resistem à solidão de estar longe da família, à dura vida de quem tenta sobreviver em uma metrópole que não fala sua língua, onde não se encontra a sua comida, onde o dinheiro não chega para ter uma casa só sua.

No interior do Hotel Cambridge vemos uma comunidade real bem distinta dos feudos digitais. Um grupo que se estabelece sobre suas diferenças, e não sobre superficiais semelhanças. Os refugiados de países em guerra, como Congo e Palestina, descobrem que continuam no meio de uma zona de conflito. Em uma assembleia convocada às pressas, os moradores ficam sabendo que a juíza concedeu a reintegração de posse do imóvel e determinou o despejo em 15 dias. A angústia imediatamente traz à tona as divisões guardadas em cada quarto.

Um homem se levanta e diz: “A gente já não tá podendo nem cuidar de nós, os brasileiros, e ainda tem que cuidar de refugiado do Congo, dos libaneses e palestinos?”. A líder real do movimento Frente de Luta pela Moradia, Carmem Silva, traz a conversa de volta para a importância de resistirem juntos. “A luta é com vocês, não é para vocês”, responde rápido. “É hora de a gente estar unido.”

Fica claro que ninguém ali sobreviverá sozinho, fechado no mundo do seu apartamento. Juntos, eles cozinham, limpam, consertam, amam, tentam aprender a falar português. Descobrem comidas, música, poesia e costumes de outros países – e que no Congo, antes de pedir alguém em namoro é preciso comprar um presente. Cada um conta a sua história, na tentativa de tecer a rede de humanidade que une as pessoas que não falam a mesma língua. Em roda, dão voz ao desespero que os tirou de sua terra natal, inventam performances artísticas, passam uma caneca de cachaça para contar suas filosofias. Para instituir a poesia, recita o veterano palestino, é preciso caminhar no coração da ferida. Resistir. Beijar suas cicatrizes. “O destino do rio é sempre ser o rio”, finaliza.

Organizados como um grupo, os ocupantes do Cambridge combinam estratégias para demover a juíza da decisão do despejo (ou para pelo menos serem ouvidos rapidamente, encurtando a paciência dela com uma descascação geral de mexerica). Constroem um bloqueio para retardar a invasão dos policiais que querem desocupar o imóvel, criam saídas de emergência, barricadas para resistir. E, finalmente, reúnem um novo grupo para ocupar o próximo imóvel. “Toda a minha vida eu fui num país ocupado. Pela primeira vez, eu sinto que eu tô ocupando uma coisa”, desabafa o veterano palestino. E assim começa uma nova comunidade.

 

Texto: Bruna Fontes

Fotos Divulgação

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Olhares Olhares 2017

Quando o amor se avizinhou do mundo

“A torneira da pia estava quebrada, não parava de pingar. O tempo sempre foi causador de muitos defeitos. Era ele quem empoeirava as dobradiças da razão, desaparafusava os sentimentos. Eram as artimanhas para se fazer presente, lembrar a todos que ele também habitava aquele lugar.”

Numa mesa onde hoje sentam três, pai e seus dois filhos, para o café da manhã com “bolo, pão e silêncio”, a quarta cadeira continuava vazia. Mas o tempo permanecia ali, ao redor, também personagem desse universo (atemporal, vale dizer) criado por um cineasta-escritor, Alan Minas, que estreia seu primeiro longa-metragem de ficção, “A Família Dionti”, um dos filmes imperdíveis desta Ciranda.

“A Família Dionti” – tão de hoje, tão nossa, tão dentro de todos nós – conta uma história de amor envolvendo uma mãe que partiu atrás de um outro bem, de um pai que a espera voltar mesmo que em forma de chuva e de seus dois filhos, um que se derrete literalmente de paixão por uma menina de alma nômade e outro que, ressequido por dentro, chora terra em seu travesseiro à noite. Vivem num lugar ermo, longe de tudo, à beira de seu próprio tempo. Ali o silêncio, fatiado à mesa, repercute a não-palavra que a muitos apavora.

Com pinceladas de realismo mágico, essa história nasceu primeiramente num conto, logo transformada em roteiro e, depois, saltou avidamente para as páginas de um romance publicado pela Berlendis & Vertecchia Editores. “A Família Dionti”, o livro, nasceu de uma saudade que Alan Minas sentiu das personagens, daquele lugar habitado de memória, depois de terminadas as filmagens que se estenderam por nove meses.

“Regressei para casa e senti uma enorme inquietude, um vazio. Era uma saudade que não me deixava, que sobrava. Saudade que eu sentia da história, e que, para mim, as personagens também sentiam. Não estávamos saciados. Tudo que vivenciei seguia pulsando”, lembra. O filme havia terminado, mas a história estava incompleta, latente, dentro do seu criador. Aquelas personagens, numa intensa entrega, ainda tinham mais o que transbordar.

A história evoca o amor, colocando esse sentimento no lugar do sagrado, “intocado, puro e ingênuo”, como define o diretor. Na forma de poema visual, no filme, ou de prosa poética, no livro, os elementos da natureza são metáforas da própria vida, que se faz no curso das águas, símbolo da transformação. O menino que “nunca sabia onde as coisas iam desaguar”, derretendo-se de amor por Sofia Doventim, que “nunca soube o que era endereço amarrado”, lembra-nos que as transformações do crescer são um pouco como morrer. “A metamorfose das borboletas”: era esse o texto que liam na aula.

Tanto no filme quanto no livro, a história tem o tempo suspenso. O diretor enfatiza que o filme se descortina em ritmo próprio. “No mundo da família Dionti, as regras e os códigos tornam-se também particulares, está nas palavras, nas ações. E no pensar. A lógica se reinventa, e os vários mundos que nos cercam se afloram. Mas esse tempo não se arranja como um fim, ele se apresenta como instrumento, um objeto operacional.” É que a história se (re)constrói em quem a lê ou a assiste. E uma nova história sempre acontece. “Sobra tempo para o contemplar, sentir junto e se emocionar com as personagens. Sobra um tempo dentro de cada um.”

Josué, Kelton, Serino, além de Sofia, vô Abelino, a professora Ilusângela, a diretora Poesina e Centenádia, a mulher que não consegue morrer, entre tantas outras personagens, habitam um lugar por onde “todas as pessoas do mundo já haviam passado”. Mas lá, veja só, há tempos as estradas “esqueceram seus rumos”. Um buraco do mundo, com uma placa numa bifurcação do caminho indicando dois lugarejos: Angustura e Dores da Vitória. Assim como o tempo, o lugar é também nobre personagem. E ganhou contornos na zona da mata mineira, que imprimiu novos sotaques à narrativa.

“O universo rural, a floresta e suas águas, o desabitado e seus bichos, o seminal das coisas e a terra dialogavam perfeitamente com o lugar que buscava. Eu queria o oposto do real. É o universo impossível que me habita e que eu busco fora de mim. Sabia que o encontraria no interior, em nossas roças. E o essencial que tanto procurava encontrei dentro das personagens. Talvez isso tenha encurtado as distâncias, e a história de um lugar pequeno ganhou perna e se avizinhou do mundo.”

A poesia une as duas obras – filme e livro. Foi bastante desafiador realizar a transição da história em dois suportes diferentes, com linguagens e elementos narrativos próprios, conta o escritor, também cineasta. “Enquanto a literatura me oferece total liberdade para explorar o fluxo de pensamento, cuidar da palavra escrita e de seu ritmo inserido no texto, a elaboração do filme me faz pensar em imagens e na gramática própria do audiovisual. A verborragia nesse filme não teria nada a ver com sua concepção. São duas escritas, duas línguas.”

Se o filme se desenrola no entre palavras, com poucos diálogos, o livro tem uma tessitura que desfia habilidosamente novos dizeres e novas subtramas. Ver o filme e ler o livro (não necessariamente nessa ordem) são duas experiências únicas, que se completam e se intensificam nas descobertas dos muitos cantos dessa história que logo passa a nos habitar, como se há tempos se escondesse em algum lugar de nós, lá longe, bem no fundo.

Texto: Gabriela Romeu

Fotos: Divulgação

 

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Olhares Olhares 2017

(Trans)bordar feito água de riacho

As sabenças compartilhadas ao pé do fogão, as brincadeiras nos rios-riachos da infância, as memórias desenhadas nas calçadas da rua com pedrinhas do fundo dos córregos, entre muitas outras lembranças do quintal, alimentam o imaginário do grupo Matizes Dumont, formado por uma família mineira que há gerações borda intensamente suas narrativas de origens.

São cinco irmãos: Marilu, Demóstenes, Ângela, Martha e Sávia Dumont, todos descendentes de Antônia, a bordadeira-mãe que ampliou ainda mais o imaginário dos filhos com as tessituras feitas nas barras de vestido, nos lençóis que cobriam à noite as crianças, nas toalhas de mesa que enfeitavam a casa em dia de visita. Dizem eles que seus sonhos “ainda são povoados por pássaros, flores, borboletas, cavalinhos, meninos, barcas, bonecas de pano, carros de boi e noites estreladas”. E é esse sonhar cheio de singelezas que nutre as artes da 4ª Ciranda de Filmes.

O bordado fortalece. Transforma o adulto em criança pequena, árvore, bicho ou até rio, agigantado como o São Francisco que banhou a infância dos Dumont. “Ao bordar, a pessoa pode retomar os fios da memória do vivido, reencontrar espaços internos de amorosidade, experienciar situações de cooperação, perfazer gestos de sensibilidade e, quem sabe, começar de novo um viver na beleza, no reencontro do sentido de vida”, conta Marilu, que crê na formação humana como um bordado.

Cresceu numa família em que “os adultos bordam brincando e as crianças brincam de bordar”. A infância dela e dos irmãos foi tecida entre os bordados da mãe e os causos contados pelo pai da varanda de casa. Os “almanaques”, que chegavam sempre que se ouvia o apito do vapor, eram sempre aguardados. As linhas, agulhas e tecidos, primeiros brinquedos dos filhos, eram misturados àqueles feitos de sementes colhidas no quintal. A vida seguia com a batida do pilão, o barulho do sino da cabritinha no pasto, a cor das asas da juriti.

Da vivência, brotou o saber coletivo do ofício. “Um galo sozinho não tece uma manhã”, dizia João Cabral de Melo Neto. A bordadeira Marilu concorda: há três gerações são transmitidos ensinamentos, na “busca cotidiana de saber ser e saber fazer coletivamente”. E não só dentro de casa. As irmãs oferecem oficinas de bordado em diversos lugares do Brasil. Assim, o ofício é repassado, ensinado, preservado.

Colaborativo, a arte de bordar se assemelha aos fazeres da vida rural. Do mesmo modo se prepara a junta de bois que puxa o carro, para levar todos à festa de reis na beira do rio. Um completa a arte do outro, brincando com agulhas e linhas desde a meninice. Sim, o mais íntimo vem das origens: a fazenda habitada em Pirapora, norte de Minas Gerais, nas beiradas do rio São Francisco, o Velho Chico, onde a vida era de repleta encantamentos.

Toda inspiração brota da natureza de lá, suas cores e suas formas. “As filigranas das samambaias, as árvores encantadas que trocam de roupa a cada dia, a Via Láctea escandalosa sobre o céu refletido no rio São Francisco, as estrelas como que penduradas no pé de jatobá. Cor de manga rosa, gosto de jabuticaba no pé, doce quente de buriti no tacho de cobre.” Todos os fazeres manuais, o trabalhar da farinhada ou o preparar do melado para rapadura, são tecidos. E não só no pano, mas em todas as relações.

E as tramas que se iniciaram com os rabiscos dos toás – aquelas pedrinhas de calcários, do fundo dos córregos – transbordam ainda hoje nos coloridos fios. Assim, bordam bicho, árvore, pessoa. Bordam a história da vida, a morte e tudo o que há de humano. “Todos os rios têm uma história peculiar. O que a gente vai descobrindo é que as narrativas se entrelaçam, e aí que a gente vê que todos os rios são mesmo internos.” Gente faz é (trans)bordar.

Texto: Gabriela Romeu e Luísa Cortés

Imagem do bordado: grupo Matizes Dumont

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Olhares Olhares 2016

Mestres de muitos cantos, todos de um só rio

Já tem um tempo que a terceira Ciranda girou, soprando notícias de mestres em tempos de incerteza. Mestres versados de muitos saberes – do chão e do silêncio, do gesto e do brincar, do barro e do tempo, da palavra e da imagem. Eram artesões, estudiosos, griôs, cineastas, cantadores, educadores, meninos e avós, todos juntos, numa roda só. Vieram de muitos cantos, falando muitas línguas, mas todos navegando por um mesmo rio que margeia memórias, gentes e cidades.

E chegaram com o vento do mais tenebroso inverno, no documentário-diário “Todo o Tempo do Mundo”, avisando que a natureza ensina na pedagogia da solidão. Brotaram na relação afetuosa entre crianças e velhos, no singelo curta “Ba”. Nasceram nas mãos de saberes ancestrais das ceramistas do Vale do Jequitinhonha (MG), retratadas em “Do Pó da Terra”. Viajaram pelas paisagens folclóricas, em expedições etnográficas empreendidas pelo modernista Mario de Andrade (“Mário e a Missão”).

Entre as diversas sessões de longas e curtas, de ficção e não ficção, a Ciranda girou em vivências que tinham como suporte a lousa, deslocada de sua posição vertical tradicional, ou que tinha como linguagem o barro, mestre de saberes ancestrais. Na extensa programação, as inspirações emergiram de uma delicada instalação com memórias da infância do público, assim como também da singela exposição com brinquedos de Seu Paulo, “daqueles meninos que insiste em envelhecer o corpo carregando sua infância pelo tempo”.

As incertezas feitas em ensinamentos também giraram nas três rodas de conversa, que elegeram o homem, a natureza, a cidade e a arte como potências de maestria. E assim, em tardes em que o ouvir pediu licença ao olhar, já tão encantado pelas imagens refletidas nas telonas, reuniram-se mestres de saberes ancestrais, tradicionais e contemporâneos, incluindo liderança indígena, artesã da palavra cantada, coletivo que faz arte no meio urbano, educador-questionador e artistas de múltiplas linguagens.

Ailton Krenak inaugurou a roda de conversa “Mediador de Mundos” lembrando que a palavra “ciranda” já é uma “grande convocatória”. E Krenak, nesse chamado do cirandar, evocou seu maior mestre, “a intangível entidade que é a natureza”, força manifesta das correntezas aos corguinhos (no seu jeito mineiro de dizer córrego pequeno). “A natureza me ensinou o sentido de liberdade”, disse com sua voz maviosa a liderança indígena, que iniciou a prosa com um pequeno “flash de sua alma de menino”, assim como os demais proseadores da Ciranda, como a artesã mineira Lira Marques e o educador português José Pacheco.

Os mestres todos – a natureza, as artes, as gentes – foram sendo lembrados nas rodas como numa grande colcha de pensamentos tecidos e entrelaçados. Assim, a ancestralidade do povo de Krenak (hoje, 350 indivíduos) foi relembrada pela potência de Beatriz Goulart, mais que urbanista e arquiteta, durante a prosa “Maestria do Chão”. “Essa ancestralidade a gente vai perdendo na cidade. Como eu escuto o som do rio que passa enterrado?”, disse Beatriz, que aprendeu a ouvir o chão em perguntas como “para onde venta?” e “onde é que chove?”.

Chão de asfalto, a “cidade é a maior obra humana”, complementou Joana Zatz, do coletivo Contrafilé, que sempre transita entre a prática e a reflexão no entrecruzar do urbano, da arte e da política. “A cidade é viva. A maior obra de arte do homem é a cidade, que é uma obra que a gente faz para viver dentro. Então, nesse sentido, a cidade não está pronta, não está acabada. O urbano é o lá fora, é o asfalto, é o prédio? Não. O urbano é uma força viva, somos nós produzindo o urbano, assim como o espaço público.”

Nesse diálogo tramado entre rodas, a bailarina e coreógrafa Georgia Lengos lembrou que gente é também natureza. E o rio evocado lá no começo nas palavras de saberes remotos de Krenak desaguou também em sua fala: “Temos que pensar que a gente é barro e que lá dentro tem um rio”. Diretora da companhia Balangandança, ela falou do ser humano como um círculo vibratório de movimento, “essa forma circular que está presente no sol e na lua”, e que nasce no “movimento elétrico de um espermatozoide”.

Mesmo que em três rodas, os nove proseadores estavam todos na mesma ciranda. A criança estava sempre lá, no centro. Uma das proseadoras, a mais que urbanista Beatriz Goulart, em suas reflexões sobre cidade, escola e criança, definiu trouxe uma definição certeira sobre infância: “símbolo da afirmação”, “metáfora da criação do pensamento”, “sem temporalidade linear”, a partir da perspectiva do filósofo argentino Walter Cohan.

Poeticamente, a Ciranda terminou com uma despedida da infância. Da infância de Maria Fabrislene, rainha do reisado em seu último ano de reinado em “Meninos e Reis”, e de um menino que sonha intensamente em ser palhaço e trapezista debaixo da lona armada em seu quintal (“Jonas e o Circo”). Dois filmes que retratam ritos de passagem. Mas era fim e também recomeço, tal qual anunciado nos versos de Ferreira Gullar para “O Trenzinho Caipira” (Heitor Villa Lobos), música tema desta terceira edição:

“Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a girar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar…”
 
Texto: Gabriela Romeu
 

 


Fotos: Aline Arruda

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Olhares Olhares 2016

Mário de Andrade no Clube do Professor

A Ciranda de Filmes inaugura um ciclo de sessões no Clube do Professor com o intuito de dar continuidade às conversas em torno dos filmes e temas da mostra, pioneira no Brasil na abordagem da infância e educação.

Na primeira sessão deste ciclo, exibiremos o filme “Mário e a Missão”, do diretor Luiz Adriano Daminello, que refaz o trajeto das legendárias expedições comandadas pelo escritor modernista Mário de Andrade para pesquisar manifestações folclóricas e da cultura popular do Brasil. O poeta Mário de Andrade foi homenageado na Ciranda de Filmes 2016, que teve como tema Mestres, referências para um tempo de incertezas.

“Descobrir e registrar as narrativas populares foram uma das grandes missões e contribuições de Mário de Andrade para o Brasil, país que já nasceu ideia de teceduras de culturas, cosmologias e sincretismos. A cultura popular que nasce e se manifesta das ruas e dos terreiros. Mário ocupou-se de coração e alma, toda sua vida, para narrar a poesia das manifestações populares. Narrador digno das narrativas para as quais se dedicou. Um narrador-guardião, aprendiz da alma do povo, cultura que antes do modernismo brasileiro não era reconhecida ou valorizada.” Vanessa Fort para a Ciranda de Filmes

Logo após o filme houve um bate papo com o cineasta, documentarista e diretor de fotografia Luiz Adriano Daminello, que atualmente é professor de fotografia da Universidade Federal do Pará e realiza suas pesquisas cinematográficas pelas comunidades que habitam a margem do Rio Amazonas, e com o pianista, percussionista e etnomusicólogo Paulo Dias. Paulo é fundador e diretor da Associação Cultural Cachuera! e um grande pesquisador da cultura popular tradicional e da música de raiz brasileira e de suas comunidades produtoras.

Sinopse:
“Mário e a Missão” é um longa-metragem derivado da série com mesmo nome. Mostra as pesquisas sobre as manifestações folclóricas realizadas pelo escritor modernista Mário de Andrade, desde sua lendária viagem pelo rio Amazonas indo de Belém a Iquitos no Peru, sua Viagem Etnográfica pelo Nordeste, até a Missão de Pesquisas Folclóricas comandada por ele em 1938. O documentário apresenta um extenso material de arquivo e refaz o trajeto das expedições, registrando na atualidade os mestres das mesmas manifestações estudadas por Mário de Andrade.

Direção: Luiz Adriano Daminello

Roteiro: Luiz Adriano Daminello, Ligia Schiavon Duarte, Simone Azevedo, Maristela Tredice, Decio Filho

Fotografia: Luiz Adriano Daminello, Marcelo Sponberg, Marcio Langiani

Montagem: Luiz Adriano Daminello, Lídia Chaib, Osmar Jorge Bush, Marcelo Ruggiero, Ligia Schiavon Duarte, Cristina Amaral

Produção Executiva: Jorge Palmari

Som: Márcio de Oliveira, Durval Leal Filho, Armando Onofri

Elenco: Paschoal da Consceição, Marcos Azevedo, Andre Boll, Chico Carvalho, Fernando Alves Pinto, Silvio Restiffe, José Rubens Chachá, Natalia Barros

Produção: Luiz Adriano Daminello

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Olhares Olhares 2016

O voo da infância no cinema

“Quando saio com ele, alguém diz:
‘É Billy Casper e seu falcão de estimação’.
Eu fico doido. Ele não é um bicho de estimação.
Ou quando vem alguém é pergunta: “É domesticado?”
Falcões não podem ser domesticados.
Eles são ferozes e selvagens.”

Cabelos desgrenhados, fala por vezes sussurrada e olhar perdido no horizonte, Billy Casper é um menino franzino, amiudado por um entorno hostil, tanto em casa como na escola, um “verdadeiro inferno”. Num intenso desejo de se libertar de sua condição carcerária, mira da janela da sala de aula os rasantes dos pássaros no céu. Até que certo dia captura um filhote de falcão, que é alimentado e treinado com afinco pelo menino, que projeta no voo da ave o voo da própria infância.

É a arte do visível, o cinema, que nos introduz no mundo invisível de Billy Casper, protagonista de “Kes” (1969), filme de Ken Loach, que traz uma representação metafórica da infância que se rebela da domesticação empreendida pelo mundo adulto. “Falcões não podem ser domesticados”, nos alerta o menino inglês, em meio a uma paisagem insistentemente cinzenta.

Esse universo-menino vulnerável é desvelado pelo cineasta britânico por meio de gestos, olhares e silêncios (nada esvaziados de dizeres, falares ou pensares). O filme nos coloca cara a cara com um “comportamento de infância, seu movimento, sua corporalidade, sua gestualidade”, segundo o educador e filósofo Jorge Larossa. É que o cinema é a verdadeira “escritura do gesto”, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben.

Essa ânsia por liberdade é tema recorrente nos filmes que retratam a infância ou o universo infantil. Assim, Billy Casper vem de uma linhagem de meninos que desejam romper com uma infância carcerária, ou as masmorras do mundo adulto. São meninos como o emblemático Antoine Doinel, de “Os Incompreendidos” (1959), obra de François Truffaut, cineasta para quem “nada é pequeno no que se refere à infância”.

Sim, o cinema tem muito a nos contar sobre a infância, a criança e o universo infantil em diferentes épocas, nacionalidades e culturas, com temas, perspectivas e concepções diferentes. São muitos os filmes que revelam o olhar genuíno das crianças e sua persistência poética diante da aridez do mundo, além de situações de vulnerabilidade, como abandono e violência.

Desde os primórdios do cinema, as crianças sempre estiveram presentes na telona. O menininho órfão de “O Garoto” (1921) e o bebê abandonado no carrinho que desce a escadaria em “O Encouraçado Potemkin” (1925) são só alguns exemplos da presença infantil nas narrativas cinematográficas das primeiras décadas do século 20.

Ao longos dos tempos, as crianças foram ganhando espaço e protagonizando suas histórias. Ainda assim, vemos muitos filmes em que meninos e meninas protagonistas figuram mais como uma “paisagem de infância”. Daria para dizer que estão tão grandes na telona quanto distantes da essência infantil.

São muitos os cineastas que nos levaram ao universo da infância pelas aventuras e desventuras de pequenos protagonistas – Carlos Saura, Abbas Kiarostami, François Truffaut, Louis Malle, Theodoros Angelopoulos, Roberto Rossellini, Walter Salles, Guillermo Del Toro, Ingmar Bergman, Wes Anderson e tantos outros. Ou, como diria Andrei Tarkovski, diretor dos clássicos “A Infância de Ivan” (1962) e “O Espelho” (1975), não é exatamente um retorno “ao território perdido da infância”, pois “talvez nunca tenhamos saído dele”.

Retorno ou não ao “território perdido da infância”, o cinema estabelece pontes entre o universo adulto e o mundo da criança. É a arte que nos desafia a ver o quanto nos distanciamos desse outro que também já fomos. Lança um olhar atento para a criança, que também nos olha. Para o crítico André Bazin, o olhar da criança “nos enfrenta (…), nos interroga, nos interpela, pede resposta muitas vezes”. E diz isso muitas vezes entre silêncios.

Segundo Sonia Krammer, no prefácio do livro “A Infância Vai ao Cinema”, encontramos na telona “ora um outro modo de conhecer as crianças, ora a expressão do mundo da maneira como as crianças veem, escutam e experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a subvertê-lo”.

Subverter o mundo. Eis uma das imagens mais fortes da infância no cinema. Um filme que bem ilustra tal questão é “Zero de Conduta” (1933), uma poesia selvagem do cineasta francês Jean Vigo que virou maldito e ficou proibido de ser exibida na França até 1946. Emblemático, o filme é considerado uma das poucas obras com olhar realmente subversivo para a infância; dificilmente seria feito nos dias de hoje. E tem as cenas de mais pura poesia subversiva da infância.

O filme traz um grupo de quatro meninos – Caussat, Bruel, Colin e Tabard, alter ego de Vigo – que se rebela contra o sistema repressivo e as rígidas regras de um colégio interno francês em um dia festivo. Numa atmosfera surreal, os meninos são bem sucedidos na rebelião e triunfam no telhado, numa cena que parece que vão alçar voo. O mesmo voo que representa a ânsia de de liberdade de Billy Casper, protagonista de “Kes”.

Que o cinema continue nos “emprestando” os olhos das crianças para que a gente possa enxergar melhor o mundo – e, claro, a subvertê-lo.

Texto: Gabriela Romeu, que, em parceria com Adriana Costa, desenvolveu a oficina Imagenário da Infância, que estreou na Ciranda de Filmes, em 2016, e segue circulando com outras discussões sobre cinema e infância. Nas imagens abaixo, um registro do encontro.
 
 
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Olhares Olhares 2016

Representações infantis nas artes

Rio de Janeiro, século 18. Entre a população escrava que crescia com os navios negreiros que incessantemente cruzavam o Atlântico, as crianças representavam dois entre cada dez cativos. Algumas eram doadas ao nascer; outras, já no fim da infância, vendidas. Com altíssima taxa de mortalidade infantil, a maioria morria antes de completar cinco anos de idade. E aquelas que persistiam enfrentavam a orfandade.

Se em muitos estudos as crianças são números, ainda que contextualizados, na exposição “Histórias da Infância”, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), meninos e meninas ganham corpo, cara e também voz, em diferentes tempos e espaços. Numa incursão por muitas infâncias – a das crianças do período Colonial, de povos indígenas, dos faróis das cidades grandes –, a exposição constrói uma ideia de infância por meio da arte e mostra como as crianças foram representadas ao longo de séculos.

Assim como Philippe Ariès, pesquisador francês que fez uma radiografia da infância a partir da Idade Média a partir das imagens (ou falta delas) representadas na arte pictórica, a exposição leva o espectador a tecer ideias de infância por meio das 200 obras expostas, organizadas por sete eixos temáticos – maternidade, escola, família, brincadeiras e morte, por exemplo – e dispostas na altura do olhar das crianças visitantes, estabelecendo um diálogo entre infâncias.

Fotografias, pinturas, vídeos e esculturas de artistas diversos como Renoir, Van Gogh e Portinari são misturadas a desenhos feitos pelas crianças, “desrespeitando hierarquias e territórios”, como bem define um dos textos curatoriais. Tal postura rapidamente nos remete a uma lúcida provocação do modernista Mario de Andrade, que não só colecionou desenhos infantis, como fez importantes leituras a partir dessas criações: “Primeiro: nós não damos importância ao que o menino faz. Acha-se graça e apenas. Segundo: damos importância por demais ao que os gênios catalogados fazem. Acha-se importante e guarda-se.”

A ideia de infância é uma construção social e varia conforme a época e a sociedade. Segundo Ariès, até o século XII, a arte medieval desconhecia a infância. Homens miniaturizados, sem nenhum traço de infância, muitas vezes faziam as vezes das crianças nas obras, num tempo em que nasciam e morriam, “não sem tristeza, mas sem desespero”, como escreveu décadas depois o humanista Montaigne (1533-1592). A ordem, definiu o filósofo, era “não reconhecer nas crianças nem movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo”.

Só lá pelo século XIII é que surgem representações de crianças um pouco mais próximas do sentimento moderno. Como a teologia acompanhará a representação da infância por muito tempo, um dos modelos mais recorrentes na arte pictórica é o do Menino Jesus, “ancestral de todas as crianças pequenas na história da arte”. Vestido com camisolas ou enrolado em cueiros, tal representação ganha também destaque na exposição.

Ali, entre as imagens que tratam dos temas natividade e maternidade, estão também fotografias que trazem as amas de leite negras com crianças brancas no colo, “uma face supostamente romântica das escravidão”, da “mãe negra dadivosa”. São retratos anônimos, pouco sabemos quem são essas mulheres que cuidam de pequenos senhores cujas identidades são geralmente reveladas.

Ao adentrar a exposição, a contraposição de obras provoca o olhar do espectador. Assim, uma pintura de duas meninas brancas, bochechas rosadas e vestidos de babados está disposta ao lado de uma fotografia de dois meninos negros, descalços e trajando sungas num piscinão.

Com gritante distância social entre as crianças retratadas, a primeira imagem é “Rosa e Azul”, as irmãs Alice e Elizabeth, filhas do banqueiro Cahen d’Anvers, representadas com doçura na pintura de Renoir. Já a fotografia (Sem Título, da série Brasília Teimosa), com os dois meninos de olhares convincentes, é de Bárbara Wagner. Apartadas de modo temporal, as duas imagens têm muito a revelar sobre o exercício de ser criança.

Percorremos a infância do nascimento à morte, tema que traz a emblemática obra “Criança Morta” (1944), de Cândido Portinari, além de “O Enterro”, de Jose Pancetti, e “Cemitério Caiçara” (1989), do fotógrafo Araquém Alcântara. Mais uma vez dialogando com o viés histórico da obra de Ariès, representações de crianças mortas, em retratos colocados em túmulos, começam a surgir por volta do século XVI. É um marco na história dos sentimentos relacionados à infância, cujos altos índices de mortalidade banalizavam sua (in)existência por muito tempo.

A partir do século XVII, as crianças passam a ser retratadas sozinhas, como na obra “Retrato de John Walter [ou Wharton] Tempest” (1779-80), de George Romney, que traz um menino-cavaleiro com vestes nobres. Ao seu lado, um outro menino, de um outro tempo, uma outra infância: a fotografia de “Vendedor de Amendoim” (1990), de Luiz Braga. São muitos os retratos que nos revelam as crianças em poses que encaram o espectador, às vezes de forma mais pueris, às vezes mais inquisidoras.

No eixo educação da exposição, ganha destaque a obra “O Escolar” (1888), de Van Gogh, mas nosso olhar é facilmente atraído para uma fotografia em preto e branco que tem um menino de calças curtas de castigo, virado para um canto da sala de aula. A escola nasce com o surgimento da infância, e a representação do espaço escolar como lugar das regras e das punições se contrapõem aos momentos livres, de brincar, nos espaços públicos.

Crianças indígenas, com corpos nus pintados, sendo “educadas” (“domesticadas”?) na mesma ideia de escola, com carteiras, cadernos e lápis, parecem pouco se encaixar ao sistema na fotografia “Escola Kayapó” (1991), de Milton Guran.

As crianças nos fitam. Estão na série “Crianças de Açúcar”, de Vik Muniz, feitas com filhos de trabalhadores das plantações de cana do Caribe; na onírica “Menino-anjo” (1963), de Maurren Bisilliat; num retrato anônimo de Dom Pedro II, imobilizado pelas vestes nada apropriadas para seu corpo de menino.

Numa das paredes da exposição, entre obras de dimensões agigantadas e entre uma diversidade de olhares para a infância, uma caixinha de Rochelle Costi, “Intimidades – A Vesga Sou Eu” (1984), pode passar despercebida. Mas ela sintetiza de forma poética e metafórica esse tempo-menino de muitas representações. É um inventário de pequenos restos e nadas – botões, fotografias, fitas de cetim – da infância.

Texto: Gabriela Romeu

 
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Olhares Olhares 2015

Na natureza da infância

Entre a natureza lá fora e a natureza da infância, há o desenvolvimento dos sentidos, da sensibilidade, dos significados e da relação com o mundo, com a vida e com as subjetividades infantis. A Roda de conversa Criança na natureza construiu conexões profundas entre todas essas dimensões, proporcionando um forte e emocionante encontro entre o Gandhy Piorski, Rita Mendonça e o Dr. Ricardo Ghelman.

 

Em um mundo organizado pelos adultos, com toda sua funcionalidade e estrutura social, existe a necessidade de criar espaços que proporcionem o desenvolvimento da potência da natureza infantil; espaços que proporcionem o desenvolvimento desses agentes da natureza humana em sua potência, as crianças.

 

Quais são os diferentes olhares sobre a natureza? Por que é importante o contato com a natureza? Por que esse contato é fundamental para o desenvolvimento das crianças? O quê nos faz humanos?

 

Hoje em dia, o nosso contexto se tornou urbanizado, industrializado e distante da natureza. Como podemos nos aproximar novamente dela e de nossa necessidade de conexão? “A humanidade tem que encontrar sua plenitude no jogo e no contato com a natureza”, disse Rita Mendonça.

 

Os três convidados se aprofundaram em vários filmes como “Mutum”“Feral” e, especialmente, o quase unânime “Indomável Sonhadora”, filme preenchido de representações mitológicas e dimensões sensíveis e profundas. Poderíamos dizer que Hushpuppy, a pequena protagonista do filme, foi também protagonista da conversa. Gandhy e Ricardo fizeram juntos, cada um a seu modo, uma análise do filme. Cumprindo um papel de Criança Divina, a pequena Hushpuppy percorre seu caminho de interiorização rodeado de uma natureza adversa que apresenta seus recursos para construção de sua autonomia e sobrevivência.

 

A nossa idealização de vida e dos recursos para o desenvolvimento infantil pode estar nos mantendo longe da diversidade das infâncias? Não seria a diversidade que nos mantêm nas realidades que são muitas? Como criar uma conexão mais profunda com isso para ficarmos atentos a essa possível idealização que normatiza o entendimento dessas distintas realidades?

 

A natureza somos nós e, portanto, como ela tem história, tem diversidade. No estudo das mitologias são mitos e as histórias que “não são apenas cantadas, como uma espécie de música, mas vividas. Para um povo, são suporte, sua forma de expressão, de pensamento e de vida”  (Criança Divina – uma introdução à essência da mitologia). As histórias que expressam algo mais universal, algo da substância do mundo do ser humano. Por isso que essas Roda de Conversa acolhida no universo da Ciranda, repleto de personagens e suas histórias, pareceu fazer ainda mais sentido.

Roda de conversa: Criança na natureza (2015)

Com Rita Mendonça, Gandhy Piorski e Dr. Ricardo Ghelman

Moderação: Fernanda Heinz

Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filmes