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Mutum: o profundo do Sertão e da Infância

A infância sertaneja e sua profunda ligação com a natureza. De um diálogo com a obra “Campo Geral” de Guimarães Rosa e inspirado no personagem Miguilim, o filme Mutum“, da diretora Sandra Kogut é um dos destaques da programação da Ciranda.
Este é o primeiro filme de ficção da diretora. Antes disso ela realizou diversos documentários. Da delicada sensibilidade e olhar entre a ficção e a vida real, Sandra criou Mutum“. Conversamos com a diretora, que compartilhou com a gente seu profundo interesse pelas pessoas e pelo mundo que elas carregam.
Ciranda: Conte um pouco pra gente sobre seu interesse pelas pessoas, sua identidade, na conexão entre elas além dos limites sociais e das relações do homem comum e do sujeito-personagem. Como essas coisas permeiam o seu trabalho?
Sandra Kogut: Talvez seja o único motivo pelo qual eu faço filmes: meu interesse pelas pessoas, o mundo que elas carregam. Quando faço um filme, preciso sentir o que cada personagem sente, ir com eles aos lugares emocionais que eles vão, só assim consigo dirigi-los. Só assim sei o que fazer, para onde ir. Sempre penso que para fazer um filme eu preciso me sentir em casa. Mas me sentir em casa emocionalmente, entender o que cada personagem sente naquela hora. O resto é decorrência. Por isso achei que podia fazer um filme no sertão, apesar de ser uma pessoa urbana, distante daquele mundo. Eu sabia muito bem o que esse menino sentia. Sabia o que cada um ali sentia.
Ciranda: O documentário tem a escuta como parte penetrante no roteiro; o que o outro fala modifica as intenções de um filme. Conte um pouco pra gente o que seu repertório de documentarista, de se colocar, sensível, à disposição da história do outro, proporcionou ao “Mutum”.
Sandra: Primeiro teve a maneira de chegar no filme. A pesquisa, as viagens, a escolha do elenco – tudo isso foi um longo processo, onde eu ia confrontando a história do livro e do roteiro com um lugar, as pessoas que moravam ali, as relações entre elas. Como se estivesse buscando quem pudesse dar vida aquela história pela sua própria história de vida. Sempre chego nos lugares através das pessoas, o rosto pra mim é a melhor paisagem. Em seguida veio o trabalho com os “atores”. Nunca digo a eles o que fazer, e menos ainda porque faze-lo, mas tento criar neles a necessidade daquela cena, daquelas palavras. Isso se parece muito com o meu trabalho nos documentários.
Quando preciso que alguém diga algo num filme, tento criar a necessidade de dizer aquilo naquela pessoa, senão eu sei que vai ficar ruim, vai ficar falso. Se eu digo a um ator que ele precisa chorar, estou entregando o problema pra ele. Não trabalho assim. Crio uma situação que vai provocar aquela emoção nele. Nos documentários é a mesma coisa. Crio situações que vão levar as pessoas a dizerem e falarem certas coisas. Pego o problema para mim, em vez de entrega-lo à eles. Considero que isso é trabalho do diretor.
Ciranda: Você comenta sobre a visão romantizada do sertão e sobre o esforço que fez para que os elementos de Mutum permanecesse na vida de verdade, como ela é. Gostaria de fazer um paralelo com a visão romantizada da infância, que sempre tenta “abster” e “proteger” a criança dos dramas e conflitos da vida real. Na construção do roteiro, e no diálogo com Guimarães, que infância é esta que está em “Mutum”?
Sandra: Nunca tive uma visão romantizada da infância, apesar de saber que ela é o que há de mais clichê, mais comum. Pra mim a infância é uma época sombria da vida, na qual é difícil entender e aceitar as regras, que sempre parecem injustas. O seu pai dá gargalhadas com um amigo comentando uma batida de carro, e te deixa de castigo porque você derramou um copo de leite. Sei lá, coisas desse tipo. As crianças precisam de autorização para tudo, dependem dos adultos para tudo, e muitas vezes se sentem incompreendidas, sem saber o que fazer com aquele mundo interior gigantesco que elas carregam e ninguém entende. O mundo dos adultos é inaccessível, misterioso, e ameaçador. A infância é fisicamente apertada, cabe num quarto. Fora daqueles limites tudo é abstrato. A miopia de Thiago é a materialização mais bacana disso tudo. Na infância temos uma visão aguda do que está perto, ao alcance da mão, e nebulosa dos mistérios que cercam o nosso pequeno mundo.
Ciranda: Como a relação entre a natureza e Thiago  (protagonista) foi importante para compor a história do filme? Qual a importância dessa relação e seus potenciais poéticos em “Mutum”?
Sandra: A natureza do filme representa o mundo interno dos personagens, materializa seus medos, seus fantasmas, seus sonhos. Me interesso pela paisagem mental. A natureza no Mutum é assim: concreta, dura, real, e ao mesmo tempo totalmente mental. A natureza não é uma paisagem a ser contemplada, é um espaço de experiência, de muito trabalho, de luta pela existência (não só física mas também moral, e psicológica). Não tem nada a ver com a natureza cartão-postal. Não existem paisagens espetaculares no filme, nada é grandioso. Achei importante que a natureza permanecesse na escala humana. Porque a medida de tudo é sempre as pessoas, e como elas se relacionam com essa natureza.
Saiba mais sobre o filme aqui.
 
Veja no site do filme a linda entrevista feita por Franck Gargarz.
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A busca de Lila

“Ciências Naturais” é precioso filme do diretor argentino Matías Lucchesi. O filme trata a crise existencial de uma pré-adolescente que não tem qualquer informação sobre seu pai, exceto alguns detalhes que são suficientes para que Lila se aventure na busca deste que nunca chegou a conhecer.
Lila tem doze anos. Sua determinação e personalidade – apresentadas em várias tonalidades na tela – mostram uma pequena crescendo, se conhecendo e amadurecendo diante de sua situação, e diante dos nossos olhos. Nos tornamos testemunhas de seu crescimento. Ela toma decisões e segue o caminho que vai alimentando sua curiosidade e seu movimento.
Com grande interpretação da pequena atriz Paula Hertzog, esse personagem representa uma etapa da vida inquietante que implica na manifestação de muitas incertezas, conclusões e segredos. Nesse caso, a menina é certeira e direta para expressar seus desejos, exigir seus direitos, questionar certas atitudes dos adultos e exigir respostas às suas perguntas que vão desde a investigação sobre um nome, uma cidade até uma data. Nesses casos, a discrição não é uma característica de seu comportamento. Lila é autêntica e fiel às suas convicções.
Ela estuda, tem companheiros de escola em meio a um lugar hostil, frio, silencioso. Sem dúvida entendemos suas razões por causa disso, ao mesmo tempo que não é suficiente para saber quem é ela.  Nos tornamos cúmplices de sua jornada para entender suas origens e o seu mundo interior. Lila não luta contra o que sente; sua angústia é evidente frente a falta de respostas de sua mãe e o desinteresse sobre o que acontece na escola. Cada palavra e cada ação são manifestações de seus anseios para conseguir seu objetivo.
Logo nos primeiros vinte minutos do filme fica evidente que a menina não vai parar até conseguir o que quer. Quando ela consegue um aliado, sua atitude muda, volta a ser mais doce e infantil. É sua professora quem encara a situação e a ajuda sem tentar convencê-la de que está equivocada, ou de que sua intenção de conhecer seu pai é um erro. Ela a acompanha e, de algum modo, a deixa ser. Por isso não intervém nas conversas que Lila consegue ter com as pessoas durante sua aventura e vontade de ver e conhecer seu progenitor. Deixa que a menina conduza cada situação a seu modo. A menina de doze anos não tem nada. Ou melhor, não tem nada a perder ao tentar contatar seu pai.
Esteticamente a película estabelece um diálogo com o espectador do começo ao fim. A escolha de planos, dos diálogos, da luz, do design de som, dos cenários, das interpretações compõem um relato hamornioso com economia de recursos e com uma delicadeza extrema. O diretor escolheu compor uma narrativa de poucos personagens e pouco diálogo. Sem dúvida, cada um deles e cada frase dita são importantes para a leitura do filme.
Ainda mais importante é a apresentação de um conflito que acontece de maneira recorrente em nossa sociedade, e a potente construção dessa personagem que está crescendo e faz o que faz pela força do seu desejo e não para cumprir com uma exigência social.
 
Mais informações sobre o filme aqui.
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Inícios e tonalidades infantis

Sobre o  “Na idade da Inocência”, Dir.: François Truffaut. Filme participante da Ciranda 2015.

Um clássico de cinema tem a força de sua atemporalidade, marca uma época, a história inteira do cinema, e a história de várias gerações. François Truffaut fez parte de uma geração de cineastas e críticos franceses que colaboraram para, entre outras coisas, a consolidação da ideia do cinema de autor.

De forma recorrente, Truffaut fez uma série de inserções biográficas em seus filmes, como alguém que mistura sua vida à das personagens, na intenção de articular sentidos para si e compartilhá-los com os demais, como o próprio exercício do viver. Em todas as entrevistas concebidas,  ele sempre falou isso com muita naturalidade, identificando e abrindo sua história pessoal em meio as explanações sobre seus filmes e sobre o cinema de um modo geral.

O filme “Na idade da inocência” é uma dessas interações com uma forte declaração sobre a infância, seu desejo de autonomia e sua necessidade de ternura. Entre personagens criados, colhidos e descobertos em Thiers, uma pequeno município no Puy-de-Dôme, na França (onde foi gravado o filme), está a representação da força irreversível da vida e dos seus ritos de passagem, das descobertas e manifestos em favor da emancipação das situações dadas,  o amadurecimento precoce, etc. Todas as fases da infância são representadas, desde a sua espera, a primeira infância, os anos posteriores até os 12 anos de idade.

A infância e a adolescência se identificam com a vida como iniciação. A infância como início, nascimento e alumbramento. O filme vai fazendo descobertas e nos apresentando as realidades da vida infantil, seus traços de absurdo e tudo aquilo que a infância dilata e torna único. Na relação entre ficção e realidade, há conexões com a lógica e a construção de significados infantis.

Truffaut escolheu trabalhar com situações mais flexíveis que permitissem com que as crianças – oriundas dessa cidade – interagissem com as intenções do filme e inserissem, sem artificialismos, sua participação ao filme. Ele optou por não fazer das crianças arautos de uma história criada por ele; as crianças improvisavam – eram elas mesmas, a todo momento. O roteiro indicava apontamentos e objetivos das cenas e, muitas vezes, as falas dos adultos eram como “sementes” da espontaneidade infantil. Assim, nos aproximamos de um mosaico de tonalidades de ser criança, cada uma delas, ao seu modo, se encontra  à diversidade do ambiente escolar.

Os adultos não criam oposição às crianças. Na maioria das vezes, eles são colocados como fracos, algumas vezes como inválidos, outras vezes como prejudicados por alguma situação da vida. Eles não são colocados como pessoas ruins. Por sua vez, o professor é aquele que consegue fazer a mediação com as crianças. Mais do que isso, é aquele que quer estar perto delas.

A cidade se sensibiliza com a história de abandono e maus-tratos do personagem Julien. As crianças estão às vésperas das férias de verão e da finalização daquele ano escolar, uma passagem se enuncia. O professor faz dela um ritual para o crescimento e o amadurecimento, um conselho. Uma relação gente-com-gente, em favor dos direitos da infância, da sua produção de sentidos, significados da vida e de sua felicidade. Ele convida as crianças a acessar a vida, identificar as formas de poder do adulto sobre a infância, identificar o poder que perpassa suas subjetividades infantis na forma de vida e de direitos que devem ser permanentemente reivindicados.  O educador como iluminador de potências.

O professor estimula as crianças como seres políticos que intervêm, eles próprios, em suas realidades, munidas de seus direitos e da sua vibração de vida. Uma ode à infância como estado de início e emancipação.

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

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Visibilidade, afetos e desenvolvimento

Dentro de nossa estrutura social, a família sempre foi considerada uma das mais fortes instituições devido a sua representatividade de poder e influência. Por outro lado, em uma perspectiva psicológica, a família tem um papel fundamental no desenvolvimento infantil, baseado em seu apoio à construção de fortes estruturas emocionais e afetivas que irão determinar o desenvolvimento individual e social da criança por toda sua vida. Articulando a tradição institucional da família, a sua importância e a diversidade de realidades da vida contemporânea, temos várias condições e composições familiares que nos distanciam de modelos e normatizações e, por isso, nos indica a necessidade de olhar e estudar com atenção e sensibilidade.

 

A primeira Roda de Conversa da Ciranda 2015 reuniu Susan Andrews, Rosely Sayão e Ada Pellegrini para discutir, cada uma a seu modo, diversas dimensões familiares, sua relação com a espiritualidade, com a neurociência e a psicologia.

 

A família, seja qual composição tiver, oferece a criação das primeiras relações, vínculos e conexões fortes entre as pessoas. Essas conexões têm a ver com as trocas que elas realizam, com a raiz de seu desenvolvimento emocional e da ideia de si mesmo. Essas trocas são conhecidas como “trocas positivas”, que são aqueles atos entre um casal, a família, os filhos, os amigos; pequenas ou grandes comunidades nas quais estamos inseridos. Esse intercâmbio alimenta relações saudáveis que afastam o que conhecemos como ameaças ao desenvolvimento de alguém.

Uma ação negativa (maltrato físico, verbal, abusos repetitivos, etc.) tem graves consequências no desenvolvimento de uma pessoa. Não é uma tarefa fácil reverter os danos causados por esses tipos de feitos, embora tenham ações positivas que ajudam a restituir o bem-estar psicológico e um ambiente agradável.

 

E as crianças que vivem em situações familiares que não proporcionam essas trocas positivas? Do ponto de vista do desenvolvimento psicológico e social, como poderíamos considerar as outras situações, pessoas e influências que proporcionam o desenvolvimento infantil e o intercâmbio positivo? Vários filmes da programação da Ciranda foram citados, durante a Roda de conversa, enriquecendo essas reflexões. Tiveram destaque os longas; Sam” de Elena Hazanov, e “A Indomável Sonhadora” de Benh Zeitlin, e os curtas; “A Menina Espantalho” de Cássio Pereira dos Santos, “A Panelinha de Anatole” de Eric Montchaud e “A Conquista do Espaço” de Chico Deniz.

 

Há alguns tipos de situações em que a infância é tratada como um estado de invisibilidade. A família proporciona essa visibilidade, pertencimento e afeto tão necessários para vida. O trabalho dedicado às crianças tem também um papel importante para acabar com essa invisibilidade; os adultos têm uma importância fundamental na visibilidade das crianças.

 

É importante termos em conta o que significa a “superação dos limites” impostos por uma situação. Fundamentalmente, a família tem uma importância muito significativa, seja nas trocas positivas ou nas negativas; seja no desenvolvimento afetuoso e sereno, seja na necessidade de superação de uma situação dada. Adiante, quando a criança cresce, a família é superada para que ela possa assumir a sua própria vida. 

Roda de conversa: Famílias (2015)

Com Susan Andrews, Rosely Sayão e Ada Pellegrini

Moderação: Patrícia Durães


Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de filmes 

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Na natureza da infância

Entre a natureza lá fora e a natureza da infância, há o desenvolvimento dos sentidos, da sensibilidade, dos significados e da relação com o mundo, com a vida e com as subjetividades infantis. A Roda de conversa Criança na natureza construiu conexões profundas entre todas essas dimensões, proporcionando um forte e emocionante encontro entre o Gandhy Piorski, Rita Mendonça e o Dr. Ricardo Ghelman.

 

Em um mundo organizado pelos adultos, com toda sua funcionalidade e estrutura social, existe a necessidade de criar espaços que proporcionem o desenvolvimento da potência da natureza infantil; espaços que proporcionem o desenvolvimento desses agentes da natureza humana em sua potência, as crianças.

 

Quais são os diferentes olhares sobre a natureza? Por que é importante o contato com a natureza? Por que esse contato é fundamental para o desenvolvimento das crianças? O quê nos faz humanos?

 

Hoje em dia, o nosso contexto se tornou urbanizado, industrializado e distante da natureza. Como podemos nos aproximar novamente dela e de nossa necessidade de conexão? “A humanidade tem que encontrar sua plenitude no jogo e no contato com a natureza”, disse Rita Mendonça.

 

Os três convidados se aprofundaram em vários filmes como “Mutum”“Feral” e, especialmente, o quase unânime “Indomável Sonhadora”, filme preenchido de representações mitológicas e dimensões sensíveis e profundas. Poderíamos dizer que Hushpuppy, a pequena protagonista do filme, foi também protagonista da conversa. Gandhy e Ricardo fizeram juntos, cada um a seu modo, uma análise do filme. Cumprindo um papel de Criança Divina, a pequena Hushpuppy percorre seu caminho de interiorização rodeado de uma natureza adversa que apresenta seus recursos para construção de sua autonomia e sobrevivência.

 

A nossa idealização de vida e dos recursos para o desenvolvimento infantil pode estar nos mantendo longe da diversidade das infâncias? Não seria a diversidade que nos mantêm nas realidades que são muitas? Como criar uma conexão mais profunda com isso para ficarmos atentos a essa possível idealização que normatiza o entendimento dessas distintas realidades?

 

A natureza somos nós e, portanto, como ela tem história, tem diversidade. No estudo das mitologias são mitos e as histórias que “não são apenas cantadas, como uma espécie de música, mas vividas. Para um povo, são suporte, sua forma de expressão, de pensamento e de vida”  (Criança Divina – uma introdução à essência da mitologia). As histórias que expressam algo mais universal, algo da substância do mundo do ser humano. Por isso que essas Roda de Conversa acolhida no universo da Ciranda, repleto de personagens e suas histórias, pareceu fazer ainda mais sentido.

Roda de conversa: Criança na natureza (2015)

Com Rita Mendonça, Gandhy Piorski e Dr. Ricardo Ghelman

Moderação: Fernanda Heinz

Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filmes

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Cordilheira de Amora II

A Cordilheira da Amora II”  é um filme que começa quando acaba. Um filme que desperta nosso poder criativo para novas realidades. A Ciranda vai chegando ao fim com a intenção de inspirá-las.

Da Celebração do fim que se inicia, convidamos Jamille Fortunato (diretora), Lia Matos (produtora) e Alexandre Basso (imagens) para compartilhar o processo do filme, suas intensidades, insights e afetos. O filme é um documentário que apresenta o quintal de Cariane, uma indiazinha Guarani kaiowá da Aldeia Amambai, em Mato Grosso do Sul.

Em uma tarde no quintal

por Jamille, Lia e Alexandre

O encontro com a Cariane aconteceu durante a execução do projeto Memórias do Futuro, uma ação produzida pelo Espaço Imaginário, que tem como objetivo pesquisar a Cultura da Infância do Brasil através de um processo de sensibilização do olhar investigativo e criativo de jovens, educadores e crianças. Em ações que se propagam em redes virtuais e presenciais, o Espaço estimula a aproximação de gerações e a troca de conhecimentos e práticas relacionados ao brincar.

Jovens de diferentes grupos culturais do Mato Grosso do Sul: indígenas, quilombolas, ribeirinhos e da cidade participaram das duas oficinas: a de sensibilização para a importância do Brincar e a de técnicas de produção audiovisual. O propósito da segunda era estimular os jovens para uma investigação e documentação de suas infâncias e as infâncias de suas comunidades.

Entre os jovens estava a Francielli Martines, irmã da Cariane, uma das participantes do projeto, integrante do JIGA – Juventude Indigena Guarani em Ação, grupo muito ativo na Aldeia Amambai em MS. Eles defendem e compartilham a memória e Cultura local com um acervo audiovisual maravilhoso.

Fazia parte do processo de formação dos jovens, o acompanhamento da pesquisa dos integrantes do projeto em cada comunidade. Foi justamente durante este período de acompanhamento da pesquisa que conhecemos a Cariane, em um dia em que fomos convidados pela Francielli para conhecer a sua casa e família.

Logo após o almoço a Jamille foi dar uma caminhada nos arredores da casa e encontrou a Cariane. Pouco depois ela nos chamou e disse: “venham ver aqui uma coisa!” Fomos os 3 com outra câmera. Para nosso encanto, o filme aconteceu assim, como as crianças são: de um jeito muito espontâneo. Aos poucos ela foi nos mostrando o universo que havia ali no seu quintal, nos contando suas histórias e sonhos, inclusive de um filme invisível.

Dentro desse processo, uma de nossas tentativas foi capturar para as telas as brincadeiras do imaginário de uma criança. “Cordilheira de Amora II” foi também o resultado dessa busca, regada pelos olhares delicados e pela nossa parceria. Apesar de ter sido um documentário espontâneo, sem planejamento prévio, filmado em menos de uma hora, usando apenas celular e handcam, ele só foi possível porque foi um trabalho em equipe que já vinha sendo realizado. Tivemos todo o cuidado e respeito ao entrar nas comunidades, sempre pedindo licença.

Naquela tarde de quintal, descobrimos muito mais do que já havíamos apreendido até então. E reafirmamos a nossa certeza – e consciência – sobre a capacidade que cada criança tem de transcender e transformar o que já está posto.

Questões de território e transcendência de fronteiras

Cariane nos mostra uma realidade de maneira muito sutil: um Brasil riquíssimo e abandonado, com interferências e valores sócio-culturais diversos que chegam às crianças de forma descuidada, muitas vezes descontextualizadas, questões de territórios – suas propriedades, apropriações e novas elaborações.

Mesmo assim a criança alcança e transcende com seu potencial incrível de criação e transformação. Ela e seus amigos nos dizem que, sim, é possível ser bonito, que é possível ter mais respeito, que é preciso ouvir, que é possível ter uma casa, cuidar, passear, transformar a escola em um lugar menos chato, que o lixo não é lixo e pode ser transformado. Cariane deixa acontecer cordilheiras na planície do centro-oeste brasileiro com seus sonhos altos e pézinhos no chão. Assim faz a vida menos seca e mais doce como as amoras! Ela nos diz que é possível transformar!

E, assim, acreditamos que todas as crianças deste mundão carregam cordilheiras de amoras nos seus sonhos e corações. Acreditamos também que o grande potencial do filme, o grande potencial que o cinema é de sensibilizar, educar à transcendência com novas possibilidades de transformação para situações difíceis que estão colocadas no mundo e que parecem impossíveis de serem solucionadas.

E, de forma contrária, a criação, simplicidade e beleza nos dizem que, sim, é possível!

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Poéticas e poesias da infância

Há algum tempo o conceito de protagonismo infantil inspirou-se em uma visão adultocêntrica do mundo e, logo, das infâncias. A criança era um projeto do futuro, um preparação para uma ideia precisa das coisas que, por ser precisa, se afasta de uma realidade complexa de subjetividades e composições culturais e sociais. Há quem segue visitando esta visão de mundo. Sobre outra visão, mais poética, baseada numa ética de alteridade das infâncias, várias e únicas, que a mesa de Protagonismo Infantil se inspirou.

 

Com a presença do educador e poeta Severino Antônio e da educadora Lucilene Silva, a Roda de conversa do terceiro dia da Ciranda de Filmes caminhou no universo poético da infância, aquele que é possível a partir de uma participação singular das crianças e da sua criação de significados e poéticas; as narrativas das vidas infantis.

 

Um homem representa uma criança e que, desde seu nascimento, é protagonista de sua natureza, sua história e seu destino. O que significa perder o sentido da vida? O que significa ser uma criança protagonista?

 

É quando a criança cria vida.

É quando a criança faz presente o ausente.

É quando o menino adota uma atitude filosófica e pergunta sobre o mundo que o rodeia, sobre experiências e sobre coisas pouco tangiveis e espirituais.

É quando a infância se faz poesia.

 

Antes tarde: as poesias são várias, nem sempre suaves, quase sempre desobedientes para garantia de sua autenticidade; emancipatórias para garantia dos seus afetos; livres pela sua natureza genuína, que se conecta consigo mesmo, com o mundo e cria significados a todo momento. Como podemos apoiar esses movimentos infantis livres e autônomos? Como podemos potencializar essas criações, esse protagonismo?

 

A infância é um estado nascente da linguagem, um estado poético em toda sua potência. A criança é sujeito do texto de sua existência. A criança é pensadora, indagadora, que gera perguntas e constroe metáforas. O adulto precisa reaprender a infância e isso significa escutar as crianças, aquelas que o perguntam e aquelas que dizem também. O adulto deve se conectar à fantasia das crianças.  Como disse Severino: “É importante que o mundo recomeça todas as vezes.” Escutar as crianças, “fará delas pessoas autônomas e com liberdade de expressão. Uma criança autônoma é emancipação”, disse Lucilene Silva.

 

O que faz o humano se converter em humano? “O pensamento…”, disse Severino, “…o mito poético de que tudo se transforma em tudo.”

Roda de conversa: Protagonismo Infantil (2015)

Com Severino Antônio e Lucilene Silva

 

Moderação: Ana Claudia Leite


Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filme

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Sobre instâncias criadoras da imaginação

Gandhy Piorski é uma dessas pessoas dedicadas ao profundo infantil. Artista, escritor e pesquisador das infâncias, de suas linguagens, símbolos e imaginário, ele tem uma experiência e dedicação de anos nesta pesquisa. Além de diversos projetos, ele está escrevendo um livro que será publicado em breve e outro que já está em produção. Gandhy também colabora em diferentes iniciativas, como o Projeto Território do Brincar.
Fizemos uma prosa com ele sobre a infância, o seu sentido de corporeidade e moradia, a relação da natureza como interioridade e potência criativa, a expressão política e cultural da infância, espaços compartilhados e muitas outras coisas. Compartilhamos aqui a preciosidade dos pensamentos e reflexões do nosso querido convidado.
Gandhy participou da Roda de conversa: Criança e Natureza, na Ciranda 2015, com a Rita Mendonça e o Ricardo Ghelman.
Ciranda: Conte um pouco de sua pesquisa e dedicação em torno da infância e suas linguagens. Quais são seus novos planos e produções como artista plástico, pesquisador e escritor?
Gandhy Piorski  Por um período estive inteiramente voltado para crianças e natureza. No universo natural. Estive em diversos lugares do interior, em comunidades tradicionais, em litorais, serras e sertão. Assim alguns anos transcorreram. Isso tudo se transformou em uma exposição inaugural sobre os 4 elementos no brincar. Também seminários, palestras e caminhos estéticos outros como colaboração com o cinema, com o filme Território do Brincar (Renata Meirelles e David Reeks) e as artes visuais com curadoria de exposições e colaboração com companhias de dança como a Balangandança (projeto Ninhos – Georgia Lengos) e etc.
Mas criança e natureza inquieta muito as pessoas. A pergunta recorrente, era e é: como ficam as crianças das grandes cidades? Essa inquietação não para de nascer entre as pessoas que acompanham o trabalho. Assim voltei-me para um projeto em busca de apontamentos sobre a natureza, a criança e a cidade. Então esse é o trabalho mais recente. Estamos atuando em diversas camadas de narrativas das crianças na cidade de Fortaleza. Até agora são dois projetos. No primeiro trabalhamos por um período de 3 meses com 1200 crianças. Chamamos de Salão de Artes da Criança. Uma espécie de ateliê livre, aberto, angariando o dizer das crianças da cidade.

O segundo está acontecendo de agora até outubro. Estamos atuando em 6 regiões da cidade, junto a escolas públicas e periferias. São festivais de ludicidade, criação livre e construção. Sairá daí um outro amplo acervo de narrativas.
Com isso temos construído novos caminhos de discussão. Esse novo repertório já virou exposição, seminário, palestra, e outros novos caminhos que estão a surgir. O próximo projeto é sempre uma emenda do anterior. É sempre um caminho de rastrear coisas de criança. Essa arqueologia não tem fim. Tudo indica que será por mais interiores do Brasil e das crianças.
De escritos tem um livro pronto para ser publicado em breve e um segundo em construção.
Ciranda: Você acha que a relação do adulto com a infância tem um sentido de respeito, mas também de controle? A proteção absoluta advém deste sentido de controle? Como poderíamos colocar a infância no centro de uma participação política e símbólica, com sua graça e potência, como sujeito e força de si mesmo? Como a arte e o lúdico pode ter relação com isso?
Gandhy: O controle tornou-se o sentido hegemônico de nossa civilização. Haja visto toda a prioridade dada à visão, à visualidade, à visibilidade desde o advento da chamada modernidade. O olhar hegemônico e toda enxurrada de imagens artificiais que vivemos é anseio de controle.
Imaginemos então: o que transborda disso para uma cultura da educação das crianças? Dimensões éticas e cognitivas sofreram drásticas mudanças neste percurso do culto à visualidade. Enfraquecemos o senso de moradia, de corporeidade, de espacialidade, de tato, de natureza.
Imaginemos novamente: o que é a criança sem senso de moradia, de corporeidade, de espacialidade (cidade, comunidade), de tato e de natureza?
Não se sabe mais do que se protege as crianças. Se da vida ou de ameaças. Não se sabe mais o que é ameaça e o que é vida. Vida é lida muitas vezes como ameaça; ameaça está confundida com vida.
Certamente a participação simbólica e política das crianças não poderá ser no âmbito discursivo e institucional. Está mais para a poética das matérias inúteis (Manoel de Barros),do fazer livre, para uma ontologia do brincar, mais para uma meta-cultura dos gestos e onomatopeias.
A arte é vernacular na criança. Usada sem pudor. Como que silvestre, livre. Usada não como arte, pois a criança não está interessada em fazer arte, mas usada como seu código natural de expressão. A semântica da criança tem aura estética. Justamente por ser semântica do ser.
Gilbert Durand em sua antropologia do imaginário diz que toda memória de infância é imediatamente uma obra de arte, pois é nostalgia do ser. E a linguagem do ser é cometida perenemente do simbólico, do intuitivo, do premonitório, da anunciação de novos caminhos. As crianças, em especial até os 5 anos de idade, são como os grandes artistas, premonizam o mundo.
O mais perigoso nisso tudo é que em quase totalidade de nossa civilização, com poucas exceções, pode-se encontrar muitas coisas nos pedagogos, mas uma coisa que pouco se encontra é senso e fazer estético desenvolvidos. Raro é encontrar nesses trabalhadores que carregam pesados fardos, percepção e significação simbólicas apuradas e imaginação criadora nutrida. Eis um dos abcessos!
Mas esse não é o único. A cultura midiática a todo vapor fazendo coisas como bem entende para crianças, o entretenimento como o inquestionável intorpecente e as pobres famílias exauridas de correr atrás do próprio rabo, ou da salsicha dependurada no final da esteira.
Contudo, já é possível ver que novos caminhos estão nascendo…
Ciranda: Comente um pouco sobre sua pesquisa e o como ela está profundamente ligada na relação da criança com a natureza. a produção simbólica de significados, a força do imaginário da natureza que potencializa o sujeito, a sua produção simbólica e de significados…
Gandhy: As pessoas costumam perguntar: seu trabalho é sobre o que as crianças fazem na natureza, mas e as crianças da cidade? Essa pergunta é muito fortemente vinculada ao nó dos tempos do fabrico, da técnica, da indústria, da desmaterialização do fazer.
Não sabemos mais, não reconhecemos mais que somos natureza. A natureza é um lá fora.
E justamente é esse o objetivo do meu estudo, aproximar as crianças daquilo que somos. E o que somos pode ser uma resposta vasta (do tamanho de tudo o que se fez até hoje), ou talvez nem ter resposta. Entretanto, antes de tudo, somos natureza.
Assim, nessa pesquisa, a busca das fontes do reino animal, vegetal e mineral no homem, na criança, tem uma base. Está naquilo que Bachelard chamou do quarto reino da natureza: a imaginação.
Nela as potencialidades da vida natural estão gravadas, o que precisamos aprender é acioná-las. E resolvi aprender como acioná-las com as crianças. Elas sabem muito bem viver a capacidade que a imaginação tem de criar caminhos de ordenamento interior e reequilíbrio. Deixam a imaginação trabalhar, deixam essa cognição e sensitividade anímica modular estados de ser.
Estas modulações podem se materializar em brinquedos, em matérias primas retiradas do mundo natural. Ganham forma, podem ser lidas. Podem até ser mapeadas. Tenho percebido apontamentos para uma cartografia da imaginação no brincar. Uma pedagogia de hormônios simbólicos despertos pelo contato com as matérias da natureza.
Brinquedos livres, construídos pelas crianças, são tratados dos estados de interioridade. São rastros de tatilidade ancestra, de anseios primitivos, de sonhos recorrentes desde o mais antigo rumor de humanidade na terra. Nosso corpo tem memória, nossas células, nosso psiquismo. Memória não só biográfica, mas memória dos antepassados que não conhecemos, memória geológica, cosmológica. Nosso corpo necessita de espaço e lugar para tudo isso habitar e sentir. Isso dizem esses pequenos ensaios de materialidade do brincar com a natureza.
São eles espelhos de ranhuras inscritas na criança, em sua interioridade e biologia, em sua tessitura de memórias, em sua corporeidade. Podem ser ativadas pelo brincar. São potências guardadas em instâncias criadoras da imaginação. São depósitos de expansão e abertura do ser. Janelas novas de conhecimento, valoração, cognição.
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Vivência corporal com Ivaldo Bertazzo

Postura e movimento, estruturas que caminham de mãos dadas!

Adquirir referência sobre a organização postural certamente ampliam o seu bem estar corporal, o controle da postura favorecem os nossos deslocamentos e a qualidade do movimento. Ficar muitas horas sentado sem essas referencias, achatam seu corpo limitando os seus gestos!

De uma forma lúdica, nos entreteremos durante 1 hora, observando situações básicas para o controle do posicionamento do seu corpo, executaremos alguns exercícios estimulantes e revigorantes para o seu cotidiano!

Assistiremos um breve documentário sobre as etapas do desenvolvimento motor, no bebê, na criança, na adolescência, idade adulta e na plenitude do idoso.
Venha se divertir e adquirir algum conhecimento com Ivaldo Bertazzo.

Foto do destaque: Kiko Ferrite
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O tempo passa, os rostos mudam

“Os jovens têm esse sentido de coragem, de imortalidade. Eu acho que os adultos secretamente sentem inveja disso, inveja desse momento das suas vidas onde você pode passar os dias de verão curtindo com os amigos esses momentos de descuido, de despreocupação.”
“Virando adulto” do diretor Ross Killen é um filme que fala sobre a juventude e o crescimento nas horas de descuido. O filme é um retrato muito habilidoso sobre uma juventude de Dublin.
Os adolescentes pulam, correm, se empurram e se elevam. Uns segundos no ar e então submergem na água de um canal sujo, infestado de ratos e outros roedores. Durante vários anos, diversos jovens fizeram deste o seu lugar.
O tempo passa, os rostos mudam. O lugar continua o mesmo e todo verão está repleto de crianças.
A imagem em câmera lenta e em preto e branco são fortes opções estéticas.  A memória marcada e sentida. Elas acompanham a cuidadosa composição da narração com as sonoridades desse lugar. A música completa o relato.
A voz nostálgica e poética evidencia a autenticidade da língua: é dela a função dramática e a aproximação com os signos desta cultura e idioma. A voz é um recurso valoroso para nos mostrar o que está acontecendo. Uma narrativa de memórias de um adulto que foi jovem, desfrutou desse lugar e lembra dele com tranquilidade. Pelas palavras, entonações e nuances percebemos isso, percebemos sua história. Ainda que seja apenas uma voz, ela se múltipla em muitas vozes que compartilham um ritual de felicidade, sem forçar que este seja um momento determinante para outra etapa da vida.
Mais informações sobre o filme aqui.