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Olhares Olhares 2019

A galeria de sons de Hermeto Pascoal

Uma piscina de 100 litros de água, muitas abelhas, um tanto de sapos, uma chaleira, o ronco, o movimento peristáltico do intestino, algumas rezas, o chafurdar dos porcos, um copo de leite, o som do corrupio, um berrante, a bacia, uma bomba de ar e a própria barriga. Tudo vira instrumento musical nas mãos de Hermeto Pascoal, 82 anos de muitas sonoridades, um dos nossos mais inventivos instrumentistas, também compositor, artista alagoano, estrela do documentário “Hermeto Campeão” (Thomaz Farkas, 1981), parte da programação desta Ciranda de Filmes. Para esse inventor sonoro, que começou sua pesquisa musical na casa dos pais, “tocando para os pássaros”, em Lagoa da Canoa, sua cidade natal, a música está em todos os lugares.

Tanto que ele chega a compor quatro canções por dia. Suas inspirações surgem de todos os poros e, ao sinal de uma nova melodia, ele anota rapidamente onde for possível: um papel, a parede, um rolo de papel higiênico. Diz já ter composto mais de 10 mil delas. Esse exercício é tão natural ao “bruxo dos sons” que, em 2000, ele lançou pela editora Senac o Calendário do som, resultado de um ano em que compôs uma canção por dia, cada uma homenageando um de seus aniversariantes.

Que música é essa que fica “dando voltas” em sua cabeça? Nem mesmo ele sabe bem explicar. Chama de “música universal”: “Eu não me defino. Como eu vou definir a minha música? Eu sou. O que eu sou? É isso. Eu sei que sou. Eu não sei o que eu sou. Eu sei que sou. Eu não sei o nome da música. Eu sei que é música”, conta, em outro documentário do qual foi tema, Quebrando tudo (Rodrigo Hinrichsen, 2004). Mistura o baião de sua terra ao jazz estadunidense, ao zunir das abelhas e aos sons que sua boca faz quando encontra um copo com água. Sua produção frenética e intensa dispensa fronteiras, e sempre arrisca novos mundos.

“O Brasil não existe. Existe o mundo. A música, que eu chamo de música universal, é exatamente aquela música que não tem preconceito nenhum. Na mistura de uma coisa com a outra, aí é que vem o negócio”, já disse, em entrevista para o jornal Folha de S.Paulo. Essa fala acompanha a sua trajetória peculiar, desde a infância em Lagoa da Canoa, cidadezinha cravada no centro do estado alagoano, já cheia de rima no batismo, onde ganhou o seu primeiro acordeão e vivia tocando para as aves do quintal.

Desde então, viajou com o irmão para tocar em festas das cidades vizinhas, fez parceria com o sanfoneiro Sivuca, passou pelo Quarteto Novo, foi aos Estados Unidos, onde encontrou o jazzista Miles Davis, com quem compôs duas músicas (Little church (1970) e Nem um talvez (1971), do álbum Live-Evil, e a quem desafiou para uma luta de boxe. Levou, então, Asa branca ao Festival de Montreux numa performance histórica com Elis Regina. A cada passagem, novas sonoridades, instrumentos, experiências. Registramos numa galeria inventiva alguns dos muitos sons desse gigante instrumentista.

Sanfona

Antes de ser mencionado por seu mestre Sivuca como o “maior sanfoneiro do Agreste”, os dois músicos percorriam o Nordeste tocando em festas, casamentos, batizados: eram Sivuca e Sivuquinha. Já aos 19 anos, tocava o instrumento na Rádio Jornal do Commercio, de Pernambuco. Sua relação com a sanfona, nessa fase, foi fundamental para a sua consolidação como músico.

Natureza

Sim, Hermeto experimenta diferentes sons em diferentes ambientes. Talvez por isso seja tão interessante tocar flauta na lagoa, explorando as sonoridades do instrumento de acordo com a proximidade com a água. Faz lembrar a infância vivida em Lagoa da Canoa (AL), em que a natureza teve lugar importante no seu interesse pela música.

Piscina

Se em um palco não há como explorar os sons do lago, o artista dá um jeito: pede que lhe tragam uma piscina, dessas infláveis, e a lagoa de plástico vira logo objeto de experimentação. Batidas na água, espirros, mergulhos do berrante, tudo misturado com um lindo canto sobre Iemanjá, orixá conhecida como “mãe d`água”, ao melhor estilo Hermeto Pascoal.

Copo d`água

Gargarejar num copo d`água também pode dar em música. É uma brincadeira antiga, lá da infância do músico. Aqui, ele conta um pouco sobre esse costume de menino que virou parte de sua produção artística.

Porcos

O disco Slave mass, de Hermeto Pascoal, foi composto nos Estados Unidos e lançado em 1977. Até hoje impressiona por uma particularidade: para a gravação da faixa principal, homônima ao álbum, foram levados porcos ao estúdio. A bicharada ajudou a compor o som.

Sapos

Para fazer um som com os sapos, é preciso chegar a um entendimento. Entender quando é hora de tocar, quando é hora de calar. Não foi diferente para Hermeto, que teve essa experiência no documentário Hermeto, campeão, de 1981, dirigido por Thomaz Farkas. “Teve que ter uma preparação para eu dizer para eles: ‘Olha, eu cheguei’. Para depois eles dizerem para mim: ‘Olha, mas o dono da festa aqui sou eu. A lagoa é minha. Você está aqui, para você tocar, você tem que entrar na nossa’.”

Abelhas

Ainda sobre o documentário “Hermeto Campeão”, que será exibido na Ciranda de Filmes, também podemos conhecer o processo do músico alagoano ao tocar com as abelhas. “Eu toquei junto com elas, como se eu estivesse escrevendo um arranjo em cima do som das abelhas, e foi diferente, porque são tantas as abelhas que são vários timbres de uma vez só”, diz, no curta.

Voz

Em sua produção musical predominantemente instrumental, a voz tem uso nada convencional, de falas, sussurros, assobios, gargalhadas, tosses, rezas e até sons guturais, como explica o pesquisador Luiz Costa-Lima Neto (UNIRIO) no artigo “O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz“: “A quem interessa dividir arbitrariamente a música em duas metades, `vocal`, de um lado, e `instrumental` de outro? Folclórica, popular ou erudita? Brasileira ou internacional? Modal, tonal ou atonal? Para o compositor, multi-instrumentista e cantor Hermeto Pascoal, a música é uma só”.

Ronco

Não é novidade que o corpo é instrumento vital para o músico. Foi numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que ele inventou de roncar ao som de um dos nossos maiores clássicos, Asa branca.

Chaleira e brinquedos infantis

Não há limites para a música. Aqui, Hermeto improvisa tocando uma chaleira e um brinquedo infantil.

Bacia

Uma bacia também pode ser um bom instrumento de percussão – enquanto ela durar nas mãos de um músico que tem como lema “quebrando tudo”. (minutagem: 1:05)

Berrante

Para Hermeto, o berrante não serve apenas para chamar o gado, uso recorrente dos vaqueiros. Como é de praxe, ele reinventou o instrumento e ali toca tudo quanto é tipo de música (até o Hino Nacional), o que não deixa de causar espanto no público.

Corpo

Em 2012, o músico lançou um disco utilizando instrumentos musicais bem próximos de todos nós. Em Hermeto Pascoal de corpo e alma, ele criou canções com batimentos cardíacos, assobios, os movimentos peristálticos do intestino, a barba e até o som de sua válvula mitral, aquela que separa o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo do coração e que, segundo ele, diz claramente a palavra “Nelma”.

Bomba de ar

Até uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta ou bola de futebol, vira instrumento musical nas mãos de Hermeto Pascoal.

Instrumentos inventados

Hermeto, nada satisfeito com os instrumentos já criados pela humanidade, seguiu a vida inventando os seus. Nas mãos do multi-instrumentista, um pedaço de metal ou qualquer tubo pode se transformar em objeto de criação artística.

Texto: Luísa Cortés/Estúdio Veredas

Foto: Gabriel Quintão/site www.hermetopascoal.com.br

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Olhares Olhares 2016

Quando o cinema vai à escola

A data era junho do ano 2000. Na França, o Ministro da Educação Jack Lang decidiu reunir uma série de consultores para um projeto cultural, denominado Mission. Queria trazer educação artística e ação cultural às escolas de seu país. Um desses convidados foi o cineasta, crítico de cinema e professor universitário Alain Bergala, que garantiu a ressonância da iniciativa pelo mundo, mesmo que a experiência francesa se mostrasse, anos depois, inacabada.

Nas escolas, o cineasta europeu sempre buscou desviar o foco de uma leitura analítica e crítica dos filmes. Acreditava que seria mais proveitoso o que chama de leitura criativa, “que coloque o espectador no lugar do autor; que o leve a acompanhar, em sua imaginação, as emoções de todo o processo criativo, suas escolhas e incertezas.” É o que explica a pesquisadora Adriana Fresquet ao comentar o trabalho de Bergala. Ela teve uma experiência semelhante com escolas públicas do Rio de Janeiro.

Com a consultoria do cineasta francês, coordenou a ação que criaria escolas de cinema em seis instituições públicas do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2013. Tudo isso como parte de seu estudo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde leciona na Faculdade de Educação e coordena o projeto de pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na Educação Básica e o Programa de Extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Reuniu suas impressões no livro Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e fora da escola.

A obra traz levantamentos sobre o lugar do cinema na escola. Um dos pontos levantados é o da potência artística de despertar a imaginação, plano essencial à infância. Cita Vygotsky ao assumir a esfera imaginativa não como  um “divertimento caprichoso do cérebro”, mas sim “uma função vitalmente necessária”, já que não parte apenas de nossos acervos mnemônicos, relativos às memórias, mas também é capaz de sonhar e projetar um futuro. O cinema traria, então, o que ela chama de uma transformação contínua da realidade. Desta vez citando Migliorin, relembra que “o que talvez o cinema tenha para ensinar seja a sua essencial ignorância sobre o mundo, ponto exato em que criação e pensamento se conectam”.

Além disso, a imaginação dá lugar à alteridade. A uma criança que nunca esteve na Amazônia ou até no antigo Egito, o conhecimento de outras realidades pode “alargar as possibilidades do conhecimento”. Isso porque a arte faz pensar, sim, mas também faz sentir. Vale-se de afetos, sensações; nos faz intuir, adivinhar, suspeitar. Parte na contramão do chamado conhecimento formal para nos apresentar o conhecimento sensível. “Trata-se de um conhecimento que, como as imagens do cinema, fica tensionado entre a crença e a dúvida, pelo que nos oculta e revela de seu processo”, explica em seu livro.

Esse tipo de conhecimento valoriza a experiência (em alemão, erfahrung), aquilo que “se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (viajar em alemão éfahren)”. Vai além da vivência do conhecimento formal (erlebnis), a “impressão forte que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”, relação cada vez mais presente entre as crianças e as velozes imagens às quais têm acesso.

Escolher um jeito de ensinar em detrimento de outro é, por fim, um ato político, como percebeu a documentarista Anita Leandro. “E se a longa história da relação entre cinema e pedagogia não passasse de uma feliz coincidência de pontos de vista, ou seja, uma confluência de posições políticas na escolha do lugar a partir do qual se constrói uma imagem do mundo?”, questiona. “As dimensões éticas e estéticas desse processo ficam inseparáveis, e desse modo, viram uma questão de educação, particularmente da escola, que, como o cinema, precisa lidar com os problemas de organização do espaço, da relação com o tempo e do questionamento do poder discursivo”.

Leia abaixo entrevista completa com Adriana Fresquet, que atua no grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD), e destaca projetos de educação audiovisual pelo país, espaços onde um filme “pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento”.

Você participa do grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Poderia contar um pouco sobre o grupo e seus estudos? Em quais pesquisas estão trabalhando no momento?

O grupo de pesquisa e extensão CINEAD nasceu em 2006, com uma forte vocação para aproximar o cinema da educação, articulando nessa ponte a Universidade com a Educação Básica, seus professores e estudantes. Os projetos de pesquisa chamam Currículo e linguagem cinematográfica na Educação Básica e Cinema no hospital? Em ambos, procuramos identificar a potência do encontro do cinema com professores e estudantes, uma potência que é pedagógica, ética, estética, política.

Poderia explicar o que denomina “desaprender” em seu conceito de Cinema para Desaprender, falar um pouco sobre a complexidade desse termo?

Desaprender é lembrar de aprendizagens antigas e escová-las a contrapelo, isto é, identificar aprendizagens que hoje carregamos transformadas em (des)valores, quase crenças, por tê-las aprendido em contextos afetivos importantes dos quais é difícil dissociá-las sem arriscar alguma destruição da relação onde nasceram. Aprendemos (quase) sem defesas quando confiamos no/a outro/a. Nessas aprendizagens vêm misturadas todas as misérias, preconceitos e gestos de discriminação próprios da incompletude e imperfeição  da condição humana e inclusive das coisas, como afirma Passolini, ao afirmar que há uma potência pedagógica das coisas que vemos desde que nascemos que nos ensina de modo quase irrevogável uma determinada classe social, perspectivas do mundo, modos de estar e ser.Desaprender é fazer o esforço cotidiano e coletivo de revisar os nossos aprendizados, colocá-los sob suspeita, aderir a alguns, rejeitar outros, como se fosse possível arrancá-los de debaixo da pele. Desaprender é condição para reaprender com os outros, com o mundo, renovando significados e sentidos do conhecimento.

Parece que esse termo implica em uma noção de educação e de infância que vai além de seu conteúdo pedagógico. Está mais relacionada a uma experiência. Há espaço para esse tipo de vivência nos dias de hoje? Como o cinema pode contribuir pra isso? 

Desaprender constitui também uma parcela da educação e da infância que habita em nós. Se analisamos etimologicamente, educação vem do termo latino educare, é composto pela união do prefixo ex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir” ou “levar”. E efetivamente hoje entendemos a educação como esse espaço/tempo dedicado a endereçar a atenção ao mundo. No sentido de sair um pouco de si, e da tendência autocentrada e self-maníaca que volta para nós mesmos até os celulares a cada nova fotografia. O termo escola vem de skolé, “tempo livre”.

É justamente esse espaço escolar o cenário principal para ela dedicar um tempo para orientar a atenção para o mundo, afastando-na um pouco dos próprios desejos individuais, singulares, tão infelizmente produzidos pelo mercado e pelo capital. Entendemos também a infância como gesto, como nascimento, como pergunta. Nesse sentido, o cinema, seja na tela da projeção ou no display de uma câmera quando fazemos produções na escola, nos convida a expandir esse “tempo livre”, para olhar através delas para o mundo, um mundo que está aí, dado de uma determinada maneira aqui e agora, mas que é produto de infinitas escolhas e ávido de alterações.

Ao ver uma imagem do trânsito no Rio de Janeiro, por exemplo, podemos ter uma noção dessa realidade, mas também podemos imaginar como poderia ser diferente e ativar o pensamento para mudar, para inventar um outro modo de distribuição do trânsito na cidade. Entender que o plano que vemos resulta de uma câmera que foi colocada a uma certa altura, a uma certa distância, a uma certa hora do dia, que ativou uma determinada paleta de cores na montagem, mixando camadas de som gravadas em diferentes dias… significa imaginar que o mundo (ou a imagem que vemos dele) também poderia ser outra. E o melhor, que cabe também a nós a possibilidade de alteração. Desse modo, o cinema e a educação acabam coincidindo na sua matéria-prima: a realidade. E na sua maior aposta: olhar para ela visando imaginá-la como sonhada. Sonhada com os olhos bem abertos.

Para o velho Vygotsky, cada geração sonha a próxima e a acorda no ato de sonhá-la, assim a transformação (da realidade, do mundo) parece ser a promessa que traz por efeito focar no desenvolvimento da atenção ao mundo, objetivo fundamental da educação.

Existem experiências em escolas que compreendem o cinema como uma manifestação artística e cultural, e não como um simples instrumento?

Bom, eu acredito que nas escolas onde se vê cinema e se faz cinema (entendendo o cinema na escola como um tipo de cinema expandido), ele entra de maneira perturbadora, alterando os espaços e tempos escolares, um certo status quo. Provocando a imaginação e a memória para ver, rever e transver o mundo, assim como queria o poeta Manoel de Barros.

Agora bem, o cinema reduzido a “simples instrumento”, o filme utilizado como “recurso didático” pode ter efeitos independentemente da intencionalidade do professor. Isto é, mesmo que um professor projete o filme Vidas Secas para falar de Graciliano Ramos, numa aula de literatura, ou para falar da seca no Nordeste, o encontro dos estudantes e de outros professores e funcionários que eventualmente também o assistam tem um espaço de autonomia totalmente emancipado dos objetivos docentes. Uma cena pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento, contagiar a urgência de dar a ver esse filme a familiares, entre outras possibilidades não previstas necessariamente pelo professor. E acho que é aí onde radica a brecha principal que fura toda opacidade da relação do cinema com a educação.

Como o educador hoje pode criar um repertório maior da arte cinematográfica, além de, claro, assistir aos filmes? Quais os desafios de formar educadores preparados para trabalhar a linguagem audiovisual nas escolas?

Hoje é mais fácil pensar na ampliação de repertórios que outrora. Haja vista que muitos filmes estão disponíveis na rede e de modo gratuito. Acredito que boas curadorias de cinematecas, museus de imagens e sons, cineastas, professores de cinema, cinéfilos, cineclubistas podem ser dicas válidas para quem está iniciando os primeiros passos. Depois, as conexões rizomaticamente o levarão a desviar-se do caminho, que não é outra coisa, segundo Kafka, que o desvio, do desvio do desvio. A ampliação do repertório é sempre a outra cara da moeda que reconhece a cultura do estudante, do professor. Mas como o tempo das artes é tão curto na escola, efetivamente privilegiamos as ações que visam ampliar repertório. O melhor modo que temos encontrado de reconhecer a cultura do aluno ou do professor nos cursos de formação é trabalhar com motivos visuais do cinema. Por exemplo, um adulto falando com uma criança. Quantos filmes apresentam uma situação como essa? Se solicitarmos aos estudantes trazer fragmentos de filmes onde haja planos com essa situação, podemos projetá-los juntos dos que nós mesmos estejamos propondo e ponderar a multiplicidade de possibilidades que uma filmagem de uma determinada situação pode gerar.

Acredito também que é preciso multiplicar experiências de formação dos professores de pedagogia e licenciaturas em experiências mudas coletivas de assistir filmes juntos, comentá-los, ouvindo de preferência análises de pessoas que entendem da linguagem para não ficar em simples análises críticas de conteúdo, em lugar de fazer análises criativas, aprofundando conceitos de história, linguagem e estética. Paralelamente considero necessário que novas licenciaturas em cinema continuem a surgir para ampliar e aprofundar os conhecimentos dos profissionais que trabalhem com essa temática nas escolas, inclusive junto dos professores sem formação ou com uma formação mais básica.

Você tem notícias de experiências ricas de cinema na escola? Poderia dar exemplos?

Nós tentamos fazer experiências ricas em cinema, em primeiro lugar, com o Colégio de Aplicação, onde começamos refletindo sobre a infância no cinema, assistindo a filmes e desenvolvendo seminários de leituras, depois sugerimos às próprias crianças, estudantes, agir como co-pesquisadores, refletindo juntos sobre esses filmes e a partir de 2008, convidamos a crianças e adolescentes a fazer seus próprios filmes inspirados no cinema.

Desse piloto, surgiu um processo de criação de escolas de cinema em escolas públicas do Rio de Janeiro. Entre 2011 e 2013 o grupo/programa CINEAD da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro criou seis escolas de cinema em escolas públicas de Ensino Fundamental no Rio de Janeiro. O projeto contou com a consultoria do cineasta e professor Alain Bergala e promoveu um ano de formação e um ano de acompanhamento dos trabalhos desenvolvidos nas escolas. Bergala acompanhou a elaboração do curso, assistiu às produções dos professores e no ano seguinte os primeiros trabalhos dos estudantes. No final, gravamos um abecedário de cinema para compartilhar seus saberes e práticas com qualquer interessado em ouvir suas reflexões sobre cinema e educação.

Existem vários antecedentes muito importantes de cinema na escola, por exemplo, o CINEDUC, no Rio de Janeiro, que há quase 50 anos vem desenvolvendo atividades de formação de professores e de oficinas de produção audiovisual. Dez anos também tem já o maior projeto audiovisual de um Estado: o Programa de Alfabetização Audiovisual, em Porto Alegre, que coordena ações do Ministério de Cultura, Educação, da FaE/UFRGS, da Cinemateca Capitólio e ainda dialoga com as secretarias do Estado e do município, é único no país com essas características. Mais recentemente, encontramos um projeto de grande capilaridade em todo o pais que é o projeto Inventar com a Diferença (IACS/UFF). Um outro projeto maravilhoso que faz parte do projeto internacional francês é Cinema: 100 anos de juventude, coordenado pela cinemateca francesa. Na UFMG, o grupo Mutum também vem desenvolvendo atividades potentes inclusive em espaços sócioeducativos.

Na Bahia, destaco o projeto Janela Indiscreta com mais de 30 anos de caminhada levando o cinema nacional e oficinas de produção desde a terra de Glauber, Vitória da Conquista, até infinitos pontos do sertão baiano. Na Paraíba, projetos como Cinestésico tem feito uma enorme contribuição ao cinema nacional. Correndo o risco de ser injusta por estar omitindo projetos importantes no país, apenas destaco alguns que conheço mais e melhor por fazer parte da REDE KINO e para poder responder essa pergunta tentando abarcar alguns exemplos no pais, cada vez mais é impossível ter não esse conhecimento de modo acabado.

“A pedagogia do cinema frequentemente esbarra no modo como se apropria de seu objeto. Ora, importa muito mais, diante deste objeto complexo, vivo e indócil, ter uma atitude justa do que se agarrar a um saber tranquilizador.” Poderia comentar essa citação de Alain Bergala? Ela se relaciona com a sua ideia do Cinema para Desaprender?

Para Bergala, é preferível trabalhar com um professor que não sabe nada de cinema do que com professor que acha que sabe porque sabe um pouco, algo apenas. Saber algo pode tranquilizar o professor e deixá-lo passivo. O professor que sabe que não sabe e está interessado não para de querer saber, de procurar, de estar alerta a tudo o que pode ser uma aprendizado. O conceito de desaprender, como respondi na segunda pergunta, refere-se mais a necessidade de colocar dúvidas nas nossas certezas, de manter uma relação viva com o conhecimento do mundo, sem considerá-lo como acabado, pronto, inalterável. Suspeitar da veracidade dos próprios valores para assim, ratificar ou retificá-los a cada dia.

 

Orson Welles era cético quanto ao ensino de apreciação das artes nas escolas. Defendia que mesmo que um jovem soubesse todos os poemas de Shakespeare, não necessariamente se tornaria um poeta. O que o professor poderia fazer é o que chamou de “comunicar entusiasmo”, deixando o aluno com as suas próprias experiências. Poderia comentar essa afirmação de Welles? Afinal, é possível ensinar a apreciação da arte nas escolas? 

Como ouvi uma vez dizer, as artes se contaminam, se contagiam, se há uma forma de ensinar, realmente é por contágio, por comunicação de uma inspiração fundamentalmente. Bergala faz uma crítica do ensino das artes, especialmente quando ela parte da linguagem. Quando uma certa “gramática do cinema” predomina sobre a experiência sensível das imagens e sons.

Mas, no nosso caso, temos sim uma defesa do ensino de artes na escola, porque é um espaço conquistado pelos professores de Artes Visuais, depois de muitos anos das artes serem consideradas algo inferior em termos curriculares, sem a categoria de disciplina. Hoje Artes já é uma disciplina escolar “hierarquizada”, mas paga esse direito tendo que se ajustar a formas e formatos típicos de disciplinas como Matemática ou Português, tais como fazer prova, por exemplo. O conceito de desaprender consiste em revisar as aprendizagens tentando situá-las cronologicamente, identificando preconceitos e desvalores que foram aprendidos em outros momentos, um gesto ou um esforço por questionar permanentemente as próprias crenças, fundamentos, hábitos, valores.

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Olhares Olhares 2016

A complexidade da vida nas narrativas infantis

Bonnie, uma menina de 9 anos apaixonada por elefantes, está desolada com a morte da avó. À noite, enquanto a avó permanecia imóvel, no quarto ao lado, ela tentava dormir quieta. Mas logo se lembrou de como agem os elefantes numa situação difícil: nunca deixam os seus “parentes” para trás. Foi quando decidiu ir ao encontro da avó morta, sobre a cama. Deitou-se ao lado dela, sem receio do corpo inerte. A mãe de Bonnie, que viu a cena ao entrar no recinto, não hesitou em (estranhamente) cobrir com um lençol as duas, filha e mãe morta, aconchegando ambas em um terno abraço.

Quem escreveu essa cena tão inquietante quanto afetuosa foi a roteirista holandesa Mieke de Jong, autora de dezenas de séries e filmes para crianças. Premiada por suas criações cheias de personagens densos, em situações intrigantes, tais como a descrita acima, ela ministrou em fins de setembro uma master class no Fórum Pensar a Infância, do 15FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil), em São Paulo. Numa sala repleta de realizadores e educadores, difícil quem não saiu inspirado com a fala potente sobre como escrever obras que não consideram a criança “pequena”, assim como define a roteirista. Uma aula e tanto.

“Como fazer filmes sérios de um jeito divertido?”, questionou de pronto. É que “sem humor, a vida fica insuportável”, completou na sequência. Nos filmes da roteirista, os personagens infantis enfrentam desafios da vida real, como abandono, conflitos familiares, preconceito e pais difíceis, como a mãe bipolar de Bonnie, ao mesmo tempo em que têm um elefante no quintal, podem ganhar asas para voar ou ter um professor que se transforme em sapo. A fantasia, no entanto, nunca é uma fuga. “Um bom filme, assim como um bom livro, ajuda a gente a entender um pouco mais o mundo que habitamos”, diz Mieke, que sabe abarcar a estranheza em suas histórias.

A explicação para a criação de histórias com temas desafiadores, que levam seus personagens ao extremo, está na busca por entendê-los. “Em tempos difíceis, você conhece seus personagens. Eles se mostram. Só nesses momentos vemos quem realmente são, como se sentem, o que desejam”, conta Mieke, que propõe filmes críticos e reflexivos às crianças. São obras que falam da vida em sua mais pulsante verdade. “Gosto de levá-los a sério. Gosto de filmes com personagens complexos que me surpreendam, fazendo o que você nunca esperaria que eles fizessem, mas que entenda quando os veja fazendo.” Difícil não se comover (e também se divertir) intensamente com seus personagens, que, acredita, vêm antes da narrativa.

“Do ponto de vista das crianças, dá para contar todas as histórias, abordar todos os temas”, diz Mieke, que fala inclusive de sexo, ainda um tabu nos dias de hoje, na história da menina Bonnie. Tal preceito, que faz parte da bíblia de qualquer profissional empenhado em produzir para crianças, raras vezes é aplicado com tamanha habilidade. Em Mr. Frog (Professor Sapo, em tradução livre), por exemplo, ela conta a história de um professor que se transforma em sapo, em uma alegoria ao tema da homossexualidade. Tudo é contado pelo ponto de vista de uma de suas alunas, uma menina solitária, sem pai e cuja mãe vive ocupada. É ela quem o ajuda na tarefa de entender diferente. Mieke nos descortina o mundo infantil em seus filmes.

 

“Quanto de tristeza podemos mostrar às crianças?”, questiona Mieke, convidando a plateia de produtores a pensar. Uma de suas produções mais recentes é uma série de TV (20 episódios de 10 minutos cada um) intitulada Sem família (Nobody’s Boy, em inglês), inspirada num tradicional livro francês do século 19, escrito por Hector Malot – várias outras produções nasceram dessa história. A série traz as desventuras de um menino órfão pelas ruas da Holanda dos dias de hoje para encontrar sua tão sonhada família.

 

Escrever para meninas e meninos é tarefa de grande responsabilidade, já que as crianças ainda estão em processo de conhecer o mundo que lhes está sendo narrado. Na tela de cinema são expostas a diferentes realidades, diz a roteirista. “Você pode viver a vida de outra pessoa por um tempo. Você descobre o que ela sente, pensa e fala, pode se tornar uma pessoa mais compreensiva.” Para atender a essa missão, busca uma conexão com a criança que um dia foi. O universo infantil está ali, em cada espectador. Todos já passamos pela experiência de ser criança, e é isso que busca resgatar.

Ela não defende finais felizes em suas histórias, mas destaca que nunca escreveria um filme sem esperança. Nem sempre seus personagens conseguem necessariamente o que buscam. “Mas conseguem outra coisa. Algo que precisavam até mais.”

Em Tony Ten, o protagonista faz de tudo para manter unidos os pais que vivem em desavenças. Diferentemente do esperado, não vence no final, quando descobre que o melhor é que se separem de vez. É o que ela chama de “moral winner”, uma espécie de vencedor moral. “Nos meus filmes, as crianças sempre vencem, mas nem sempre conseguem o que sonhavam inicialmente”, conclui a roteirista, que bem sabe abarcar a tristeza e a estranheza numa mesma receita recheada de empatia. Traz a vida como ela é, com todas as suas complexidades, enredada com poesia, humor e fantasia de um jeito suave, tal como o voo da menina-passarinha do longa-metragem Iep!.

 

Para saber mais, leia entrevista que Mieke de Jong deu à jornalista e roteirista Gabriella Mancini há alguns anos.

Texto: Gabriela Romeu e Luisa Cortés

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Olhares Olhares 2017

Slam: a poesia da resistência

“Os meninos passam liso pelos becos e vielas. Vocês, que falam ‘becos e vielas’, sabem quantos centímetros cabem em um menino?”, provoca a poeta Luz Ribeiro, o olhar firme seguindo o ritmo das mãos que serpenteiam como quem se esgueira para abrir caminho para suas palavras. Ela vai em frente, narrando a vida das crianças da periferia, a vida à margem, invisível a quem vem de fora: “Não tem prestígio, não tem respeito, é sempre suspeito de qualquer situação”. Suas faltas, seus sonhos – “Tudo coisa de centímetros: um pirulito, um picolé, um pai, uma mãe, um chinelo que lhe caiba no pé”. Luz encerra o poema, dedo riscando a garganta: “Quanto mais retinto o menino, mais fácil ser extinto. Seus centímetros não suportam nove milímetros. Esses meninos sentem metros.” Entre palmas e gritos, quem assiste vai à loucura.

Essa performance poética é a alma do slam, um tipo de poesia falada, ritmada à semelhança do rap, só que livre da cadência musical. O que vale é a força da palavra, crua e direta, sem adereços nem firulas; sem figurino nem música, e às vezes até sem microfone. Sozinho no centro, o poeta interpreta um depoimento pessoal, em geral sobre questões sociais que o incomodam, mas vale falar de tudo: de amor, de feminismo, de política, da vida fora dos padrões sociais dominantes. Só não vale se restringir ao formalismo de seguir regras e métricas.

“É um estilo muito livre e democrático, qualquer um pode participar”, explica a MC atriz Roberta Estrela D’Alva, precursora da modalidade no Brasil e curadora de uma batalha de slams nesta quarta edição da Ciranda Filmes, que contará com as presenças da poeta Mel Duarte e da dupla composta pela poeta surda Catharine Moreira e por Cauê Gouveia, do Slam do Corpo, o primeiro slam entre surdos e ouvintes da América Latina.“A ideia do slam é devolver a poesia às pessoas, fazer com que elas sejam ouvidas.” Assim, na rua, na praça ou no teatro, os encontros de slam têm um caráter de arena, uma eletrizante competição entre poetas. Cada um tem três minutos para falar; quando terminam a performance, jurados escolhidos na plateia exibem suas notas. É assim que se define o vencedor, que geralmente leva um prêmio cultural, como livros. Esse aspecto de jogo cria um interesse imediato no público. “A competição deixa a performance mais intensa, mais dinâmica. O slam é uma poesia que só faz sentido porque existe um público que se envolve. A performance implica presença, ouvido, sentidos, emoção. É um encontro verdadeiramente humano.”

O slam nasceu nos anos 80, em Chicago, mas os primeiros encontros só começaram a ser organizados no Brasil em 2008. A cena está crescendo: hoje existem mais de 50 grupos em dez Estados. Além das disputas locais promovidas por esses grupos, existem competições de nível nacional. Com os versos de “Menimelímetros”, que abrem este texto, a poeta Luz Ribeiro foi campeã do Slam BR 2016, interpretando também outras de suas criações.

Ao dar espaço para a voz a quem em geral não tem lugar de fala na sociedade – adolescentes, mulheres, negros, gays, da periferia ou do centro –, o slam é considerado uma poesia de resistência. Numa primeira camada, essa resistência é evidente como ação política: o poema como uma maneira diferente de manifestar a insatisfação social. “A poesia abre horizontes, e nesse momento o slam vira um exercício de cidadania. A política partidária está esgotada em sua linguagem viciada. O campo da poética é o novo campo político”, diz Roberta, citando o filósofo Paulo Arantes.

Mas o que está em jogo nessa arena não é só o falar. Participar de um encontro é fazer silêncio em meio a uma cidade barulhenta. Abrir os ouvidos e a mente a visões de mundo diferentes, praticar a escuta empática, resistir à comunicação unilateral das redes sociais. Nas palavras de Roberta, é manter viva a tradição de uma oralidade que nos confere um sentido de comunidade. “O slam abre espaço para a criação de uma nova coletividade. De certa maneira, os encontros recuperam essa necessidade social de nos juntarmos em comunidade para ouvir e contar as nossas histórias.”

Texto: Bruna Fontes

Foto: Renato Nascimento

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Alimento para o corpo, o coração e a alma

E assim mais uma vez a Ciranda girou. Foram quatro dias incríveis e intensos, com exibição de 68 filmes, muitas prosas em roda e diversos (re)encontros. O cheirinho de pão, saído quentinho do forno, nos lembrava o aconchego da casa materna. Muitos fios coloridos eram um chamado para bordar rios que desaguam memórias e lembranças em nós. Entre uma atividade e outra, uma parada para a meditação. Sim, todo o Cirandar se fez em pausa para a reflexão, momento de reconhecer aquilo que nos fortalece enquanto humanidade.

A palavra falada, em sua extrema potência poética, abriu esta quarta edição da Ciranda de Filmes, cuja curadoria de Patricia Durães e Fernanda Heinz Figueiredo captou fortemente uma necessidade coletiva de nutrição de alma em tempos tão difusos. Os versos dos poetas do slam, que nos desafiaram em batalhas performáticas, deram o tom do encontro logo na abertura. Foram como um antídoto contra um mundo que nos automatiza, nos dilui em cotidianos áridos. A fala poética defendeu o lugar da mulher, questionou a (in)visibilidade da infância, enalteceu a força da negritude, entre outras lutas proferidas em versos pelos poetas no centro da arena.

Na telona, os sonhares. Jovens de todos os cantos do país ganharam voz em “Nunca me sonharam”, longa documental de Cacau Rhoden produzido pela Maria Farinha Filmes que inaugurou a mostra. O filme, que fala desse tempo de “tempestades e trovões”, como o psicanalista Christian Dunker bem define a adolescência, traz o ensino médio como uma espécie de rito de passagem entre o ser jovem e o ser adulto. São muitos os desafios para atravessar tal portal.

Os sonhos serviram de matéria-prima para um debate, envolvendo estudantes participantes do filme e outros responsáveis pelo projeto. Foram muitas as questões apontadas depois da exibição do documentário. Alguns, ainda sem esperanças, questionaram “se ainda é possível sonhar no Brasil”. Logo, no entanto, a esperança por um futuro melhor foi reestabelecida, como feito por uma educadora presente: “Não tenho esperança porque sou uma Pollyanna, mas porque a história é assim, feita de avanços e retrocessos”.

Mas os sonhos foram apontados como importante nutrição para a vida. Nesse sentido, o professor torna-se um vendedor de sonhos aos adolescentes que, ainda não contaminados, ingressam nesse mundo doente. Têm em si todos os sonhos do mundo, de policial a presidente da República. Renovam a sociedade adulta, trazem força àqueles já cansados de lutar. A lição que fica é de inspiração nesses jovens que não desistem, apesar das dificuldades enfrentadas diariamente – da exclusão social ao assédio do tráfico. Ainda sonham. E sonham alto.

E seguimos cirandando por muitas narrativas, as do telão ou não. No saguão do tradicional cinema na rua Augusta, há tempos meca da cinefilia paulistana, as memórias das águas também nos acalentaram a alma nas oficinas bordadeiras de “O rio que mora em mim”. Com tecidos tingidos por jabuticabas e nozes, entre outros frutos, os irmãos mineiros Marilu e Demóstenes Dumont nos convocaram a mandar uma mensagem para as águas que correm nos subterrâneos da terra e da gente. E jorravam palavras como “Paraíba em mim” e “O rio grande é minha fronteira”, que se misturaram aos bordados de muitos fios.

O alimento não era só o pão que saia quentinho da oficina da padeira artesanal Vania Carvalho. Configurou-se em imagens de imensidão nos filmes e nas rodas de conversa. Assim, adentramos territórios brincantes Brasis afora (“Terreiros do Brincar”), nos vimos de longe e de tão perto (Humano), cantamos o amor e a poesia (A Família Dionti”“Window horses – A poesia de Rosie Ming”), enaltecemos o ritmo em nossas vidas (Foli – Não há movimento sem ritmo” ), reacendemos a potência imaginativa (Banquetes imaginários” ), visitamos muitos recônditos infantis (David”  Rauf” ), celebramos o riso com os curtas dos mestres Charles Chaplin, Jacques Tati e Buster Keaton e reverenciamos também a morte e os recomeços (Verdade Passageira”  e Quando os Dias Eram Eternos” ).

A criança também esteve no centro da roda. A sessão especial do curta “Criança Fala”, que retrata uma intervenção no bairro do Glicério, em São Paulo, garantindo à infância mais espaços para brincar, mais lugares para ser criança, foi precedida por uma vivência organizada por Nayana Brettas. Ela  convidou os participantes a relembrarem as suas infâncias, recapitularem aqueles momentos que foram importantes para a constituição do que são hoje, as memórias afetivas – tudo o que nos fortalece. Veio à tona a criança interior que todos nós possuímos, às vezes enterrada debaixo da rigidez do mundo adulto.

Na exibição de “Waapa”, foi discutido o que as culturas indígenas têm a nos ensinar. Nos campos da espiritualidade e da medicina, abordados no filme, vale destacar a busca pela essência das coisas, em que não há espaço para o supérfluo. Se um indígena do povo Yudjá quer passar a capacidade de tecer à sua filha, passa literalmente a aranha em suas mãos, deixa que ela a pique, pois entende que o poder será transmitido pelo contato com o animal. A natureza ao redor, assim como a natureza interior, são nutrientes da vida.

Na sessão especial do filme de “Era o Hotel Cambridge”, a conversa com as crianças que habitam a ocupação do hotel muito nos inspirou. Foram levantados temas como preconceito, comunidade, coletividade. A força dos outros também nos revigora. O filme de Eliane Caffé evoca o poder do coletivo. Uma pessoa sozinha vive na rua. Em conjunto, são capazes de se organizar, ocupar um edifício abandonado, enfrentar as forças policiais, lutar na justiça pelo direito social à moradia. Fica ecoando um grande ensinamento.

 

E a Ciranda girou em muitas prosas. A Roda de Conversa Subjetividades, que  contou com a participação de Christian Dunker, Fatima Caldas, Kika Melhem e Mariana David, foi um convite a olharmos a nossa constituição como sujeitos ao longo da vida, a começar na infância, tempo que visitamos mais de uma vez. Também percorremos as memórias afetivas das comidas que nos permearam.  A partilha ao redor da mesa é um chamado da coletividade, da tradição e da ancestralidade.

E então chegou o fim (ou só um novo recomeço?). O encerramento da Ciranda celebrou de novo a poesia, sem fim… E depois de assistir ao último filme do cineasta Alejandro Jodorowsky, o instigante “Poesia Sem Fim”, os tambores femininos do bloco afro Ilú Oba de Min ecoaram alto – e fundo –, acordando o que ainda restava de adormecido em nós. Fortalecidos e alimentados (corpo, coração e alma), era hora de voltar para casa. Mas já não éramos mais os mesmos.

Ano que vem tem mais!

Fotos de Aline Arruda e Pablo de Sousa

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O cinema e a construção da subjetividade

Ver um filme às vezes é uma opção que fazemos para escapar um pouco da vida real. Mas será que é isso que acontece quando a tela do cinema captura por completo a nossa atenção? Na verdade, a narrativa apresentada como ficção nos faz olhar com mais profundidade para a nossa subjetividade e para os nossos caminhos de transformação, aponta o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e organizador da Coleção Cinema e Psicanálise (editora nVersos) e Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo).

O cinema “faz parte das redes discursivas que criam a nossa verdade em estrutura de ficção”, diz o psicanalista, que esteve na Roda de Conversa Subjetividades, da Ciranda de Filmes. Para ele, filmes são essenciais, e servem como um bom ponto de partida para conversar com os jovens sobre seus sonhos e sofrimentos – mas nunca como substitutos do diálogo. “Filmes em vez da palavra, sem mediação, conversa ou reflexão são a pior babá que pode haver, porque passam a ser um signo da displicência e demissão dos pais em termos de cultura e educação. Como dizia Goya, o sono da razão cria monstros.”

Leia mais no bate-papo a seguir.

Como o cinema nutre a subjetividade e o sonhar dos jovens?

De muitas maneiras, mas vou salientar duas. A primeira é criando narrativas que nos ensinam como nos transformamos. Isso inclui desde a construção de alteridades até o suporte para fantasias, inclusive a sexualidade e o amor. O cinema ensina qual sofrimento devemos aceitar, qual convoca um processo transformativo em nós e qual impõe uma modificação do mundo ou dos outros. Ele faz parte das redes discursivas que criam a nossa verdade em estrutura de ficção. Por outro lado, o cinema é também a arte do real, como pensavam tanto Bazin como Badiou, em sentidos diversos. Ele funciona como um ponto de unificação e convergência de linguagens, como dramaturgia, fotografia, literatura, música, que a cada momento criam e fixam o que pode ser dito, o que não deve ser dito e o que é impossível de dizer.

 

Qual é a influência do cinema na construção da intimidade, do aprender a amar, a separar?

De onde surgem as soluções práticas para problemas nunca antes enfrentados? De formas míticas, narrativas ou discursivas que estavam lá, encostadas no fundo do baú, justamente porque quando foram inventadas ninguém sabia muito bem para que elas serviam. É a arte, como invenção de linguagens para um mundo que ainda não existe, mas um dia, às vezes, ele chega.

 

Você acha que os jovens de hoje têm menos espaço para essa construção da intimidade?

Sim, porque a relação entre a experiência pública e a privada sofreu uma mutação. O avanço da individualização baseada no contrato, a judicialização, a intolerância das relações de diferença e a padronização narrativa das formas de falar de si tornaram o fundamento da intimidade, ou seja, compartilhar uma experiência produtiva de indeterminação, algo cada vez mais raro e mais difícil, portanto mais precioso. Falar de si autenticamente para um outro é um risco que nossa época tolera muito mal. Preferimos fazer outras coisas, por outros meios: escrever, beber, rir, trabalhar, trocar interesses ou sensações corpóreas.

 

Na vida real eles se sentem mais reprimidos?

Tendemos a achar que a repressão é um processo inerentemente ruim e a ser evitado, porque limita a liberdade e a emancipação. Isso é mais verdadeiro quando pensamos em formas culturais estáveis e em reprodução. Mas a repressão é também o processo pelo qual ocorre o que antigamente chamava-se o “progresso da civilização”. Em certos momentos de transição aguda, anomia ou crise das formas reprodutivas de vida, ou seja, trabalho, linguagem e desejo, percebemos que é mais fácil e importante deixar coisas para trás, negar práticas instituídas ou reprimir formas expressivas do que inventar novas formas de vida, até porque neste momento não sabemos como e por onde isso pode ser feito. Quando isso acontece, surgem efeitos curiosos, como os de hoje, nos quais os jovens aparecem como moralistas, vigilantes reprimindo costumes e imagens, de si e dos outros, apegando-se à lei, transformando em bullying o que for possível, “esquecendo” a revolução sexual que nos precedeu. A responsabilidade sexual, como desejo subversivo e invenção de novos mundos, transforma-se assim apenas em errância de sensações sem consequência, um exemplo de repressão neoliberal.

 

A ficção que aborda problemas como bullying e suicídio, como a série 13 Reasons Why, ajuda ou confunde o jovem?

De um lado ajuda, porque narrativiza o problema, coloca a contradição, mostra o conflito. Por outro atrapalha, porque desencadeia o desamparo, a angústia e o contágio identificatório por via da retomada de soluções regressivas. A série 13 Reasons Why é desesperadora para os psicanalistas, pois mostra o deserto da ausência de escuta, mas também a indiferença e desistência subjetiva da personagem para falar de si. É lindo que quando ela o faça isso ocorra por meio de um “instrumento” antigo, que são as fitas cassete, da década de 1980. É didático como isso acontece, reeditando um pouco a função dos antigos diários íntimos. Ela se abre para o risco de falar com alguém, o psicólogo da escola. E aí a coisa fica ainda mais exasperante para os psicanalistas, porque o que vemos é uma aula de “surdez clínica”, uma lição básica de tudo o que não fazer nesta situação. Sim, até mesmo nós, os psicólogos, desaprendemos a potência da escuta e da fala, preocupados em manter os interesses de imagem funcional e contribuir para nosso “belo quadro social”.

 

Por que você acha que o jovem de hoje enfrenta suas experiências de modo mais individualizado?

Acho que a individualização requerida por nossa época inventou a figura do empreendedorismo narcísico, pelo qual rapidamente a criança aprende a importância de administrar sua imagem e seus interesses, individualizados, de modo a amplificar seus ganhos em termos de capital cultural e capital social. Aquele que não sabe capitalizar seu sofrimento, de modo a torná-lo produtivo – por exemplo, expondo-o na rede, transformando-o em ódio que o faz trabalhar mais, fortificando sua identidade e seu lugar de fala – será percebido como fracassado, excluído ou perdedor. Isso padroniza o sofrimento no laço social, destrói a potência da intimidade e isola as pessoas, o que obviamente aumenta o sofrimento.

 

Como essa intimidade precisa ser reinventada, então?

Outro amor é preciso. Intimidade é conflito, e não só zona de conforto e segurança. Estamos encalhados entre uma forma debilizante, infantil e incondicional de amor – que quando dá certo, dá errado, por exemplo: o casal vira um par de irmãos colaborativos e sem sexo – e um amor funcional tipo Tinder, que enquanto estiver “pagando bem continua, senão fecha”, que justamente por dar errado, dá certo, por exemplo: casais que são verdadeiras holdings jurídicas, unidades de combate e predação orientadas para resultados.

 

Texto: Bruna Fontes

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Beth Beli: o pertencimento do tambor

Nascida na Brasilândia, zona norte de São Paulo, Elisabeth Belisário cresceu ouvindo do pai militar, um homem rigoroso, que era preciso batalhar para “ser alguém na vida”. Só entendeu melhor o que o conselho significava quando seu mundo foi se expandindo, para além das quebradas. Numa sociedade de profundas raízes racistas, a menina negra da periferia tinha que provar que “era mais”, que podia ir além. E escolheu seu instrumento de luta, inicialmente a contragosto do pai. Virou Beth Beli, forte referência feminina nos tambores.

Aluna de colégio militar na juventude, hoje ela lidera um outro exército. Só de mulheres (trezentas!), atentas a seus sinais para fazer ecoar os sons de agogôs, xequerés, alfaias e djembês. Sua farda é também outra. De camisa colorida e chapéu adornado, ela comanda o bloco afro Ilú Obá de Min, nome iorubá que significa “mãos femininas que tocam tambor para Xangô”. Sua batalha é pelo empoderamento feminino, pela força da cultura negra, pelo direito de ocupar os espaços públicos. “Aqui as mulheres podem cantar, podem dançar e podem tocar”, anuncia ao microfone durante uma apresentação do grupo em São Paulo. Seu comando é o da “suavidade”.

Era jovem quando conheceu sua mestra, uma amiga inspiradora: Girlei Luiza Miranda, filha de bamba, um mestre de bateria, criada nas batidas de escolas paulistanas como Peruche e Rosas de Ouro. Num dia, batucando num balde por brincadeira, Girlei logo percebeu que na menina pulsava um ritmo. Foi sua primeira incentivadora e juntas passaram a frequentar muitos barrões. Tempos depois, criaram com uma turma de amigos a Banda-Lá, sendo esse “lá” a África e todo o seu legado ancestral. “Nessa época só tocava xequeré, não me deixavam tocar tambor”, lembra. “Ainda não era o meu tempo”, diz sabiamente com um jeito doce, sorriso nos olhos.

Era uma banda de ativistas negros, um total de 22 pessoas, entre músicos e dançarinos, que reverenciavam os orixás. Nessa época, foi iniciada nos terreiros de candomblé, onde ouvia atentamente o som dos tambores, que batia fundo na jovem, em seus vinte e poucos anos. Mas revela que o som era também recebido com um certo temor, algo originário lá na infância. “Não sei bem por que, mas eu tinha medo de mar e de tambor”, lembra. Seu medo virou sua matéria-prima. “Eu não escolhi o tambor, foi o tambor que me escolheu”, afirma, ciente de sua missão espiritual – e também social, feminista e artística.

A Banda-Lá durou uma década. Depois muitos dos seus integrantes decidiram ocupar lugar nas universidades. Beth e Girlei herdaram os tambores – e seguiram em busca de suas próprias batidas. Depois vieram a passagem pelo bloco Ori Ashe, grupo afro-sampista, com a participação de homens e mulheres, e os trabalhos teatrais com Zé Celso, Renato Borghi e Ligia Veiga. Também se enveredou pelos caminhos da arte-educação. Mas não demorou muito e reverberou um novo chamado. “Muita gente dizia que eu devia voltar com o trabalho de percussão ecoando a cultura negra. Então eu disse: ‘Eu volto, mas só se for para trabalhar para Xangô, o orixá da justiça. E que seja um grupo só mulheres: no pensar, no dizer, no cantar, no tocar, no dirigir. Em tudo. Queria inverter os acessos”, diz a filha de Oxóssi com Iansã.

Foi nesse período em que o grupo estava em gestação, ainda sem nome, que encontrou uma de suas parceiras até hoje: a sambadeira do Recôncavo Baiano Nega Duda, filha de Xangô. Muitas outras filhas do orixá surgiram em seu caminho. Era um sinal. O Ilú Obá de Min, explica Beth, é regido por Xangô e Iansã, “o casal mais quente do Orum”, o panteão dos orixás. O grupo, que teve também em suas origens a participação de Adriana Aragão, completou 12 anos em 2016. 12 é o número de Xangô. “Estamos no momento de olhar para essa filha e esse filho que está com 12 anos”, diz a fundadora.

O trabalho cresceu, desdobrou-se em muitos projetos, que levam o pensar para a roda (Ilú na Mesa), com encontros entre mulheres da tradição oral e da academia, e também para as escolas (Tenda Afro-Lúdica), com atividades que trabalham a Lei 10.639, sobre o ensino das culturas afro-brasileira e africana na sala de aula.

Nessa trajetória, já cantaram a história de muitas mulheres, Leci Brandão, Elza Soares, Raquel Trindade, Maria Carolina de Jesus e Rainha Nzinga, que nem de longe passou em suas aulas no colégio militar. É cantando a saga dessas personagens femininas inspiradoras, muitas delas esquecidas dos livros escolares, que segue na sua missão de desconstruir 500 anos de história. “Faço isso nas brechas que eu tenho, com os meus alunos nas aulas de arte-educação, com as mães dos meus pacientes [faz há tempos um trabalho com crianças com câncer em hospitais], com as mulheres no Ilú, nas palestras.”

Beth Beli é percussionista, regente, compositora, arte-educadora e cientista social, sua formação mais recente, depois de muito frequentar escolas informais nos barracões, nos teatros e nas ruas. É a caçula de sua família. E também seu esteio. Foi ela quem levou a cultura negra de volta para casa e dialogou com os seus sobre velados processos de silenciamento e branqueamento, historicamente enraizados na nossa sociedade. “Minha mãe me liga pra falarmos de tudo, todas as questões. De algum modo, materializo o que estou fazendo. Quando boto meu paramento, não sou mais a Beth, estou sob o comando de Oxóssi, a força da caçadora, aquela que caça para nutrir a família em todos os aspectos”, diz, ainda vibrante depois de reger uma apresentação. “Onde meu pai estiver ele deve estar contente.”

Texto: Gabriela Romeu

Foto: Vanderlei Yui

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O ritmo está em todo lugar

O som seco e alternado das mulheres batendo seus bastões nos pilões para fazer farinha atravessa uma aldeia Malinkê na Guiné, na pontinha oeste da África. No embalo desse apiloar, acompanhamos a percussão do cotidiano: o peneirar da massa, os secos passos das mulheres que cruzam a savana carregando gravetos na cabeça, o tempo da menina puxando a corda para trazer a água do fundo do poço. “Todas as coisas são o ritmo”, diz um veterano Malinkê na abertura do curta-metragem “Foli – Não existe movimento sem ritmo”, dos holandeses Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg.

Do outro lado do oceano Atlântico, o percussionista Naná Vasconcelos passeia por Salvador (BA) captando essa cadência da vida: os múltiplos sons que nascem dos estreitos corredores do mercado popular, a remada no rio, o trem em seu trilho, o talher triscando o prato, a onda do mar que bate na pedra. No documentário “Diário de Naná”, de Paschoal Samora, as crianças escutam atentas o que o mestre tem a dizer.

“O primeiro instrumento é a voz. E o melhor instrumento é o corpo”, diz Naná, que das palmas das mãos tira o som de um pandeiro imaginado. O ritmo é a música que nasce da escuta do corpo, e não da abstração da alma, inspirado pela atenção ao compasso do mundo.

Para dois jovens irmãos portugueses, o ritmo está nas cordas do violão e do violino. Já para o menino angolano, sai dos braços, dos quadris e da cabeça, acompanhando a música que toca. E, para o brasileiro, corre com a bola de futebol no quintal de terra de uma casa que ficará pronta a seu tempo. No ônibus, a caminho do ensaio, até tabuada vira canção para os estudantes de Ceilândia (DF). Seus sotaques e vidas tão diferentes entrarão em compasso quando os meninos de Portugal, Angola e Brasil se encontrarem para cantar junto com Naná e o maestro Gil Jardim em Brasília (DF), a jornada que acompanhamos em “Língua Mãe”, de Fernando Weller e Leo Falcão.

No filme, o berimbau de Naná faz a ponte entre essas culturas. A primeira batida espanta e encanta os alunos portugueses. Um menino faz uma entrevista com ele e quer saber como aprendeu a tocar o berimbau. Naná diz que desde criança foi seduzido pelos encantos do instrumento. “Fiquei fascinado porque o som dele é aqui perto do corpo. É tudo aqui perto do coração, dá uma emoção muito forte.”

Na toada do coração, o pulsar ritmado que nos move. Da cave escura ouvimos um canto em uma língua africana, um lamento profundo que nos transporta a tempos ancestrais, como um feitiço marcado para evocar o nosso divino. Desacelera o tempo, até que o grande gongo de Naná soe, grave, aquiescendo a dor e nos trazendo de volta ao compasso presente. À luz do dia, ele canta sozinho na praça: “Mãe minha, ô, mãe minha / ai que dor no coração.” As mãos largam os chocalhos e acolhem a cabeça baixa. Mas o ritmo é também alternância. Logo ele está aos risos com o amigo à beira de uma palafita fincada no oceano. Com um pequeno chocalho e algumas palmas, a conversa logo vira música. Eles param. “Se atravessar esse mar vai dar na África?”

Na tribo Malinkê, o silêncio nos mostra que, para o ouvido, tudo tem uma cadência: o machado que golpeia a árvore até ela cair, as pancadas que moldam o ferro do agogô, as mãos que esculpem e forram um futuro tambor. O trabalho de virar música. Os meninos batem latas na beira do rio, aprendendo o som dos homens. De volta a Salvador, outros meninos tiram sua percussão da sucata, transformando latas de tinta e bombas plásticas em seus instrumentos.

O trabalho também vira música. Foi nos quilombos baianos que a enxada perdeu o cabo para ser batucada e puxar o som do tambor e da cuíca — “capinasom”, define Naná. Em Cachoeira (BA), dona Damiana, veterana do samba de roda, conta como aprendeu a compor seus ritmos nos intervalos do ofício de charuteira, batendo as tabuinhas de madeira que usava para fazer charutos. “Olhe, gente, o samba é a vida, é alegria”, sorri. Para ela, o fim do nosso pulsar não é o fim do ritmo. “Até os mortos levantam da sepultura”, diz, ouvindo a levada acelerada de seu samba de roda.

Texto: Bruna Fontes

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Que a educação transcenda a mente patriarcal

“A missão inconfessada da educação é manter as pessoas iguais; para que não mudem. Penso que a educação é ‘o sócio invisível’ do que Einsenhower chamava de  ‘complexo militar-industrial’”; “Neste formato, a educação está feita para criar  trabalhadores e não para o desenvolvimento humano. E eu acredito que sem desenvolvimento humano não há evolução social”, disse Claudio Naranjo a um entrevistador, em sua última passagem por Moscou.

Aos 84, Naranjo parece ter pressa, pois não se aquieta em Berkley, EUA, onde vive desde a década de 70. Nessa época, tornou-se um dos expoentes de Esalen (o célebre Instituto contracultural de estudos humanistas), professor da Universidade da Califórnia e sucessor de Fritz Perls – o “pai” da Gestalt-Terapia.

 

A despeito da idade, sua caminhada parece progressivamente intensa nos últimos anos. Além de escrever livros, dar aulas, pautar a Escola SAT e gerir sua Fundação (FCN), entre outras atividades, o sábio de Valparaiso viaja de um canto a outro do planeta se acercando de públicos variados – de jovens estudantes a autoridades do setor educacional – para difundir ideias e apresentar suas práticas com o objetivo de dispor uma postura inovadora diante do ofício de educar. “Proponho uma educação que transcenda a mente patriarcal”, diz. Por seu trabalho, recebeu a indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2015.

Naranjo poderia ser chamado de “um filósofo de campo”, aquele que cria alicerces para a implementação prática das teorias que vem desenvolvendo ao longo de décadas. Durante esse tempo, alinhou-se diretamente a muitos professores notáveis – de cientistas, pensadores ou artistas ocidentais, como Tótila Albert, até líderes orientais, como Tarthang Tulku Rinpoche. Já há algum tempo, ele é reverenciado como mestre para centenas de pessoas que têm contato com o seu trabalho em diversos países, principalmente por meio da Gestalt Viva (considerada por especialistas como a evolução criativa da filosofia e das ferramentas processuais de F. Perls); do desenvolvimento do Eneagrama da Personalidade e da constituição da Escola SAT.

 

Seria bem frustrante elaborar um resumo de sua trajetória em tão curto espaço. Para isso, a internet está aí com uma vasta pulverização de suas pegadas mundo afora, além de já ser possível encontrar boas biografias publicadas, como  Claudio Naranjo – La vida y sus enseñanzas, do jornalista espanhol Javier Esteban (o mesmo que escreveu o celebrado Psicomagia, em parceria com Alejandro Jodorowsky).

 

Os atributos do pioneiro da Psicologia Transpessoal são inúmeros: médico psiquiatra, cientista, investigador acadêmico, professor, filósofo, pianista clássico, terapeuta, autor de mais de 50 obras literárias que, publicadas em variados idiomas, abordam da meditação à educação, passando pela neurociência, pelo estudo de enteógenos e derivados, pelo cruzamento de técnicas terapêuticas e medicinais, ligações entre desenvolvimento humano e espiritualidade etc.

 

No entanto, não é por conta de seus títulos nem só pela sua extensa obra que a Ciranda de Filmes se sente honrada em ter a presença de Claudio Naranjo, mesmo que virtualmente, em sua programação.

A deferência é principalmente pelo ensinamento de um ativista que, já octogenário, opta por colocar a mão na terra e dedicar seus dias a semear algo que provavelmente não lhe trará o prazer da colheita: a ansiada Revolução Social através da Educação.

 

O exemplo precede as palavras. Por isso, até mais do que por suas férteis ideias, é pelo modelo de sua disposição militante que, simbolicamente, abrem-se todas as Rodas de Conversas deste ano com o trecho de uma palestra (cuja íntegra está disponível abaixo) que Naranjo dedicou especialmente à Ciranda de Filmes 2017.

 

Texto: Ataliba Benaim

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A receita da longevidade

Folhas verdes fresquinhas vão direto da colheita da agricultura familiar para a da merenda escolar no interior paraense, uma horta é cultivada em meio a cidade de São Paulo, um banco de sementes “dos avós” garante a segurança alimentar de comunidades rurais do interior da Paraíba, crianças são “alfabetizadas” na cartilha de alimentos saudáveis, sem excesso de açúcar, em uma ONG paulista.

Com essas e outras histórias, o documentário “Fonte da Juventude”, de Estevão Ciavatta, nos leva a viajar aos grandes centros urbanos e aos rincões do Brasil em busca de uma receita da longevidade. Sua câmera sobrevoa diversas paisagens, das mais rurais às mais urbanas, das monoculturas e das plantações que preservam a biodiversidade, e aproxima o foco dos alimentos que chegam processados ou em natura ao nosso prato. O que nos alimenta ou como nos alimentamos?

Na busca por algumas respostas, há números que assustam: um terço da população do mundo está doente porque come mal. O Brasil vem seguindo esse padrão, mas com um agravante. “O crescimento do excesso de peso é mais rápido do que em muitos países”, afirma Ana Lydia Sawaya, escritora e cientista especializada em nutrição, uma das muitas especialistas que debatem o tema no filme. E esse quadro já compromete as gerações futuras, uma vez que a taxa de obesidade entre crianças tem aumentado 7% ao ano, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

José Graziano, mentor do programa Fome Zero e diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), acha que é possível reverter essa situação. “Está sobrando alimento. Nós desperdiçamos praticamente um terço do que produzimos.” A grande questão é que as pessoas, especialmente as mais pobres, não têm acesso a frutas, verduras e legumes.

A câmera de Ciavatta viaja pela periferia de São Paulo (SP) para mostrar a realidade de quem vive em um deserto alimentar, ou seja, onde não dá para comprar produtos frescos em um raio mínimo de 400 metros. Passamos pelas prateleiras de um pequeno mercado na zona leste da cidade: só embalagens, nada de hortifrúti. “Eu não dou muito o natural, porque nem tudo a gente encontra aqui, e não dá pra cultivar. Se eu estivesse lá na Bahia, era tudo natural”, diz o segurança Manoel Santos, falando da alimentação de seu filho, Daniel.

O que ele nos conta é um exemplo de como o desenraizamento cultural de quem migra da roça para áreas urbanas leva ao abandono do consumo de alimentos frescos. Comendo biscoito e tomando refrigerante cedo demais, Daniel chegou a pesar 19 kg aos dez meses de vida, um quadro que só foi revertido com reeducação alimentar. Como ele, 60% das crianças brasileiras ingerem açúcar antes dos dois anos. “É uma situação gravíssima, pensando na formação do hábito alimentar”, afirma Gisela Solymos, do Centro de Recuperação e Educação Nutricional.

Cuidar da boa alimentação das crianças, descobrimos, é o primeiro passo para reverter esse quadro e, ao mesmo tempo, estimular a produção agrícola. “O ambiente escolar é o mais estratégico para discutir a alimentação”, diz a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Afinal, uma rede pública que alimenta 43 milhões de crianças tem o poder de fortalecer a agricultura local, como vemos em Paragominas (PA). Lá, as escolas preparam a merenda apenas com alimentos comprados de produtores da região. “Tem dia que a gente vende 700 pacotes de cheiro verde, 300 pés de alface”, demonstra o produtor José Carlos Ferreira.

Na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), conhecemos Vanessa Danciger, que virou uma pequena agricultora urbana para ajudar o pai a se alimentar melhor e se livrar do excesso de peso e de problemas como diabetes e hipertensão. Deu certo: depois de passar a comer mais vegetais e frutas, o fotógrafo Maurício Danciger deixou de ser um cara de 130 kg que tomava cinco remédios por dia para chegar aos 90 kg sem precisar tomar mais nenhuma medicação.

De lá, entramos na mata para aprender que a flora brasileira tem 46 mil espécies, das quais 10 mil são comestíveis, segundo o biólogo Valdely Kinupp, professor do IFAM (Instituto Federal do Amazonas). Essas PANCs (plantas alimentícias não convencionais) podem ser consumidas como salada, em sopas como o caldo verde ou empanadas. Ele arranca uma folha verdinha de urtigão. “É riquíssima em boro, molibdênio, ferro, zinco, que são elementos que faltam, inclusive, em alimentos ultraprocessados”, conclui, comendo a folha que estava enrolando.

Seguindo viagem, chegamos a Santarém (PA) para ver como se prepara a mujica, uma sopa grossa de peixe amassado com uma farinha feita com uma das 41 variedades de mandioca da região e que leva vários tipos de PANC, como o cariru, a vinagreira e a alfavaca. “O ato de comer vai além de se alimentar. É cívico, é cultural, é social. É a primeira alavanca em defesa da biodiversidade. Quanto maior for o nosso paladar, mais seguras estarão as nossas reservas naturais”, defende o chef Alex Atala.

Sobrevoando canaviais, passeando por hortas urbanas, entrando na selva e mergulhando em sementes típicas do Brasil, percebemos que o que colocamos no prato não muda só a nossa saúde. Essa escolha tem o poder de transformar todo um modo de produção.

Comer melhor, portanto, é uma maneira de incentivar um novo padrão agrícola. É decidir se vamos fortalecer os 4,5 milhões de agricultores familiares ou os 500 mil trabalhadores de grandes latifúndios; definir o sucesso de um produtor orgânico ou dos produtores de defensivos. “A comida é um ato político. Se a gente não pode escolher o que comer, a gente está sendo refém da política dos outros”, conclui a culinarista e apresentadora de TV Bela Gil. 

Texto: Bruna Fontes