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“A magia não pode ser reproduzida em série”, diz o cineasta Helvécio Ratton

Por Renata Penzani

Homenageado da Ciranda Cirandinha de Filmes, o pai do Menino Maluquinho das telonas defende o cinema anticonsumo e as histórias que tratam as crianças de igual para igual 

Franz Kafka, Walt Disney, Gabriel García Márquez. O que esses nomes têm em comum? A vocação para contar histórias. Na cabeça de Helvécio Ratton, eles se tornam ingredientes de uma mistura sempre urgente: a ficção e a vida. “O que me interessa no fantástico é quando ele se encontra com o cotidiano”, ele afirma.

Se é verdade que a arte é aquilo que “nunca termina de dizer o que tem para dizer” — como bem disse o escritor Ítalo Calvino –, Ratton, do alto de seus 71 anos e uma extensa trajetória fílmica, está aí para testemunhar esse fato. Ou melhor, aqui. O diretor e roteirista é o homenageado da Ciranda Cirandinha de Filmes 2020.

Para ele, que afirma estar bastante feliz com a homenagem, a honra dessa celebração à sua obra está no fato de que tanto a mostra quanto os trabalhos que ele já produziu compartilham a mesma opinião sobre a criança: o de que ela precisa ser respeitada em sua inteligência, sua sensibilidade, seus medos e fragilidades. Para falar sobre isso, ele cunhou dois termos que se contrapõem: “espectador de luxo” e “consumidor de lixo”. Para ele, a criança está no primeiro grupo, mas muitas vezes é tratada como se fosse o segundo. 

Autor de um dos clássicos infantis mais incontornáveis da filmografia brasileira, o longa “O menino maluquinho” (1995) de obras memoráveis do audiovisual brasileiro, como Dança dos bonecos (1986) e “Uma onda no ar” (2002), ele conversou com a gente sobre fazer cinema no Brasil pandêmico, sobre o fantástico, a ficção e a infância. 

Na sua fala, entrecortada pela angústia de todo artista que se vê incumbido do desafio de reinventar meios para existir em meio ao desmonte do aparato cultural do país, o cineasta continua criando, e se apega ao essencial: “toda obra é sonho, né?”, ele confabula. A resposta só poderia ser sim.

Com uma sensibilidade enérgica que celebra a arte sem deixar de criticar o que dela perdemos quando nos condicionamos a um olhar mercadológico, ele afirma que “cinema infantil não é para vender nada para a criança, é para contar uma história”. 

Antes de mais nada, o problema está no nome, segundo o diretor. Ele rejeita o próprio termo “infantil” na hora de categorizar a produção artística dirigida às crianças. À frente da produtora Quimera Filmes, ao lado de sua parceira Simone Matos, conhecida por realizar o que ele chama de “cinema para todos”, ele parece concordar em tudo com a escritora Ana Maria Machado, quando ela defendia que, quando o assunto é arte, o que importa mesmo é o substantivo, e não o adjetivo.

“Eu tenho muito pouca atração pelos adjetivos. O Drummond dizia isso sempre, quando ficava na dúvida entre um adjetivo e outro, colocava um substantivo. E eu penso assim também”, diz. Assim, o que se convencionou chamar de “cinema infantil” seria, na verdade, aquele cinema que inclui também a criança, mas não só. “Quem faz um filme, tem que se relacionar com a plateia inteira, para que aquele filme seja uma viagem compartilhada entre o adulto e a criança. Por isso eu sempre pensei mais em filmes para ver com as crianças do que em filmes para crianças”, afirma.

Cinema para sonhar, não para consumir

Uma das criações mais famosas de Helvécio, e também seu primeiro filme, é o longa-metragem “A dança dos bonecos” (1986). Produzido pelo Grupo Novo de Cinema e TV, o filme é um marco na carreira do cineasta, não só por ter sido premiado no Brasil e no exterior dentre as melhores produções para a infância e a juventude, mas também por representar a preocupação de quem começou a fazer cinema dito “infantil” para oferecer às filhas ainda pequenas alternativas ao audiovisual norte-americano. 

“Eu sentia que eram produções mal cuidadas, que tinham muito mais interesse em vender produtos derivados dos filmes para as crianças do que de fato contar uma história para elas. Isso deixa de tratar a criança como um espectador de luxo para tratá-la como consumidora de lixo”, explica o diretor.

Na história do longa em questão, três bonecos de uma menina chamada Ritinha são roubados por um artista saltimbanco, até que acabam indo parar nas mãos de um fabricante de brinquedos. Estava já aí uma das faíscas que acendem o trabalho de Ratton: a preocupação em colocar o cinema como arte, ou seja, como produto da fantasia e do sonho de alguém, e não do sistema econômico-capitalista. “A magia não pode ser reproduzida em série, não se fabrica industrialmente”, defende Ratton. 

“Eu entrei no realismo fantástico por causa dos meus filmes infantis”, conta o cineasta. “A magia é algo que me encanta. Mas eu gosto dela integrada a um contexto realista, de cotidiano da gente. Acho que ela surpreende muito mais quando funciona dessa maneira. Por isso eu me sinto mais próximo do universo do Kafka do que de García Márquez. Um lugar onde não é o absurdo que choca, mas sim a condição do absurdo naquele contexto”, explica.

Um Brasil de meninos impossíveis

“Maluquinho estreou há 25 anos e nunca mais parou de ser visto”. É assim que Helvecio define a potência da história do “menino que tinha o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés”, como diz o texto de Ziraldo. 

Quarentão, o personagem foi conquistando novas gerações de forma ininterrupta, e está mais jovem do que nunca, nesses tempos que parecem clamar por um retorno à simplicidade das ruas de paralelepípedo onde se pode brincar de bente altas. Com sua característica panela na cabeça, o que o menino mais famoso do cinema brasileiro teria a nos dizer hoje? 

Em uma das primeiras cenas do filme, quando o pai e a mãe do personagem são convocados à escola por conta de uma travessura de Maluquinho, o zelador e a varredora do pátio parecem anunciar essa tal de infância e sua eterna relação com o bagunçar das coisas. “Ainda não se acostumaram com as artes do menino”, ela diz. “É por isso que ele é assim: um menino impossível” – responde o zelador. Triste é pensar que, hoje em dia, as crianças no Brasil ainda precisam guardar em outro lugar sua impossibilidade de ser: na violência urbana, no trabalho infantil, no retrato da desigualdade.

O filme “O menino Maluquinho” será exibido na Ciranda Cirandinha de Filmes. Após a exibição, haverá um bate-papo com o diretor.

Inspirado no livro homônimo do escritor Ziraldo — cuja primeira edição, publicada em 1980, completa 40 anos em 2020 –, o filme é um marco afetivo e um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional. O longa atravessou gerações, mantendo firme sua atualidade como um símbolo do “menino que todos sonhamos em ter sido”. 

Já as quatro décadas de vida do Maluquinho de Ziraldo será celebrada em grande estilo, com uma reedição especial do livro pela editora Melhoramentos, com textos sobre o livro, curiosidades sobre o autor e sobre a trajetória internacional da obra.

Tanta comemoração em torno de um enredo tão aparentemente prosaica não é sem motivo. Se fôssemos investigar os porquês, chegaríamos não a uma, mas a múltiplas justificativas, como a universalidade do tema, a simplicidade da narrativa, o humor, a identificação das crianças com os personagens. 

De todos os diversos motivos metidos a explicadores, no entanto, ficamos aqui com a afirmação que Helvécio soltou nesta entrevista à Cirandinha: “Essa infância de anos atrás se transformou numa espécie de infância imaginária. A força do filme vem daí também, em situar a infância no lugar da imaginação”. Isso porque o Maluquinho retratado no cinema representa uma espécie de símbolo da criança ideal. 

Nascido em uma família de classe média, Maluquinho tem uma família presente, um teto seguro, acesso à escola, convívio social saudável e, principalmente, liberdade de ser. Essa realidade protegida e confortável ainda é privilégio de minorias no Brasil. 

Para Helvécio, é como se essa infância que pode brincar na rua, descer ladeiras de carrinho de rolemã e contar com o olhar atento dos vizinhos para zelar pelo seu bem-estar tivesse ficado congelada em uma utopia possível apenas em outros tempos. Como diz a canção-tema do filme, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant, “o tempo do Menino Maluquinho é um tempo que existe só na infância”.

“A ideia principal dessa história é mostrar que o Maluquinho se tornou um adulto legal porque teve uma infância feliz, então, o que o filme faz é contar como foi essa infância. Mais do que uma adaptação do livro, o filme é um complemento dele”, afirma Helvécio, abrindo as brechas para pensar que criança é essa que encontramos neste Brasil 2020, tão marcado por violências de diversas naturezas contra a infância. 

Não por acaso, a violência sexual infantil está no centro do projeto que Helvécio estava desenvolvendo pré-pandemia. Ainda em fase de desenvolvimento, trata-se da adaptação de uma novela gráfica chilena chamada “No abuses de este libro”, de autoria de Natichuleta. O enredo é sobre uma menina abusada sexualmente pelo padrasto dos 8 aos 12 anos. Após processá-lo na justiça, contra a vontade mãe, ela consegue dar a volta por cima, e resolve se vingar dele contando a história em uma HQ. “Ela cria uma super-heroína que invoca nos momentos de abuso. Ou seja, na imaginação, ela tem o problema resolvido, mas, na realidade, não”, conta o cineasta. Ratton trabalhou na roteirização do projeto baseado no livro, chamado “Só não posso dizer o nome”. O filme ainda não foi rodado.

A produção mais recente de Helvécio Ratton está em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa-metragem “O lodo”, realizado pela Quimera Filmes. Dirigido ao público adulto, o filme trabalha a linguagem do realismo fantástico para acompanhar a jornada de um homem sozinho e sem filhos que se vê mergulhado na própria banalidade. 

Para 2021, a plataforma de streaming Netflix anunciou uma série animada com novas aventuras do personagem Menino Maluquinho, com realização da produtora Chatrone.

A literatura e o cinema

Não é de hoje a proximidade de Helvécio Ratton com a literatura. Além de “O menino Maluquinho”, outros trabalhos seus são adaptações de obras literárias. É o caso de “Amor & Cia”, baseado no livro “Alves & Companhia”, de Eça de Queirós, e até mesmo de “Batismo de sangue”, inspirado no livro de mesmo nome de Frei Betto – este último mais um relato de experiência do que uma leitura literária; um retrato da ditadura militar brasileira nos anos 60 e 70.

Colecionador de histórias em quadrinhos, ele se diz um apaixonado por essa outra forma de arte sequencial, diferente do cinema, e deposita na literatura a exclusividade de contar algumas histórias. Para ele, algumas adaptações, mais do que difíceis, são mesmo impossíveis, como Guimarães Rosa, que ele exemplifica. “Tem algo específico da linguagem da literatura que é intraduzível. Há o lugar da literatura, e ele é único”, defende.

“Até mais do que o cinema, a literatura é a melhor forma de contar histórias. O que a criança acha que está faltando ali, é a imaginação dela que completa. Isso vale também para os filmes: não podemos preencher completamente a imaginação da criança, mas sempre deixar um espaço para que ela possa continuar no imaginário dela”, diz Helvécio. Questionado sobre qual é o seu filme infantil preferido de todos os tempos, ele cita “O mágico de Oz” (1939), adaptação do clássico literário infantil de Frank Baum, “The wonderful wizard of Oz” (1900). 

A pandemia que empobrece a infância

Pai e avô, Helvécio conclui a conversa com a Ciranda de Filmes mencionando o impacto da pandemia no processo de socialização e desenvolvimento das crianças. Do alto de quem já viu de perto uma infância que brinca solta na calçada de casa, ele se preocupa com as consequências desses primeiros anos de vida vividos entre telas e aparatos tecnológicos. “O isolamento tem sido muito duro para as crianças. A perda do brincar junto é algo muito sério. O fato de que elas só têm usado tablets, celulares e computador para se relacionar com os outros está empobrecendo muito a vida”, diz.

A violência a que se refere Helvécio parece ser inimiga da fabulação e da magia, que tanto engrandecem a nossa humanidade adormecida. Quando o assunto é o vírus que parou o mundo todo em 2020, não custa lembrar que “virulento”, dentro e fora dos dicionários, continua sendo sinônimo do que também é violento. Apesar de tudo, “O Menino Maluquinho”, “A Dança dos Bonecos” e muitos outros de seus filmes-convite continuam em seu eterno posto de inventores de futuro na História viva do audiovisual brasileiro. São eles que nos lembram que, se hoje as coisas não estão como gostaríamos, bom mesmo é continuar sonhando. E “tudo o que é bom é brincadeira”.

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O lugar do sonho na literatura infantil

Alexandre Rampazo, Lúcia Hiratsuka, Aline Abreu e outros escritores, ilustradores e profissionais do livro dividem suas histórias preferidas sobre sonhos

Imagem do Livro “Os convidados da senhora Olga”

Por Renata Penzani, jornalista especialista em literatura infantil

“ – Acorde, querida Alice – dizia sua irmã – mas que sono pesado você teve!

– Ah, eu tive um sonho tão esquisito! – disse Alice. E pôs-se a contar à irmã, até quanto podia se lembrar, todas essas estranhas Aventuras que vocês acabaram de ler. E quando terminou, sua irmã beijou-a, dizendo:

– Foi um sonho bem curioso, sem dúvida, minha querida , mas agora corra, é hora do chá, e já está ficando tarde.

Alice levantou-se e saiu correndo, pensando, enquanto corria, que sonho maravilhoso tinha sido aquele.

O diálogo acima faz parte de uma obra mística, mágica e  – por que não? – algo lisérgica da literatura para crianças. Estamos falando de “Alice no País das Maravilhas”, uma das narrativas oníricas mais conhecidas do repertório literário mundial. Até os dias de hoje, mesmo passado mais de um século de sua publicação, o livro ainda é um símbolo histórico de resistência contra o conservadorismo cultural. 

Na história, uma menina chamada Alice está entediada folheando um livro sem figuras quando de repente avista um coelho branco e adentra um mundo desconhecido. Tudo acontece depois que ela dorme debaixo de uma árvore na companhia da irmã. 

Publicada pela primeira vez em 1865, a viagem-sonho de Alice atravessou os tempos com uma espantosa atualidade, e se transformou em referência quando o assunto é a relação entre a literatura e o universo onírico. 

Afinal, um texto do século XIX não perder sua força é indício de que sonhar continua sendo ao longo dos tempos uma possibilidade universal de superação do real. Como diria a canção de Milton Nascimento, “sonhos não envelhecem” e nem têm pavio. Sua inacabável chama acesa parece ser, sempre, a necessidade humana de ir além da realidade.

Aqui, vamos refletir um pouco mais de perto sobre esse ponto de contato entre a ficção e o sonho, a partir de uma pergunta: qual o lugar do sonho na literatura dita “para crianças”? (e aqui as aspas envolvendo o adjetivo não são por acaso, afinal, a delimitação etária não deve limitar a quem serve uma história). 

Infância e sonho

Em “Alice no país das maravilhas”, um detalhe logo no início do livro faz toda a diferença na interpretação do que se passa: dentre as duas irmãs, uma delas vai, enquanto a outra fica. Uma está com os pés fincados na realidade, que lhe parece tão insuficiente quanto passível de ser superada, enquanto a outra passa a seguir um despropositado coelho falante e apressado. Ou seja, quais são as bases que nos prendem a experiência concreta, e como elas dialogam com as visões do sonho?

Se pensarmos na função social do ato de ouvir e contar histórias, podemos entender que o gesto de imaginar outros mundos além deste é uma forma de não sucumbir à ideia de que isto que vemos é tudo o que existe. Não é à toa que, desde o nascimento, estamos sempre contando coisas uns aos outros. “O universo é feito de histórias, não de átomos”, já diria a poeta Muriel Rukeyser, em “The speed of darkness”.

No célebre livro “O círculo dos mentirosos”, Jean-Claude Carrière compartilha sua ideia de que as narrativas que ouvimos na infância são a nossa primeira catapulta rumo ao além-mundo. “É por meio do ‘era uma vez’ que o ato de ir além do mundo, em outras palavras, a metafísica, é introduzida na infância de cada indivíduo, e talvez também na dos povos, a ponto de muitas vezes fazer se aprofundar ali uma raiz tão forte que nos faz tomar nossas invenções humanas, toda nossa vida, por uma realidade que não admite nenhuma discussão.”

Da mesma forma como o fazem as histórias, o ato de sonhar nos coloca em contato com outras narrativas de nós e dos nossos mundos individuais e coletivos, ao juntar e sintetizar imagens e aprendizados vividos quando estamos acordados. Segundo o neurocientista Sidarta Ribeiro, no livro “Oráculo da noite”, “a matéria dos sonhos é a memória; ninguém sonha sem ter vivido”. Para ele, “o sonho é um simulacro da realidade feito de fragmentos de memórias”. Nesse sentido, sonhos parecem se mover com a mesma engrenagem das histórias: o desejo de nos imaginarmos outros. “O sonho é a imaginação sem freio nem controle, pronta para temer, criar, perder e achar”, diz o pesquisador.

“A matéria dos sonhos é a memória; ninguém sonha sem ter vivido”

Sidarta Ribeiro

No final do livro de Lewis Caroll, é a vez de a irmã de Alice passar a sonhar, momento em que ela própria passa a tornar concreta a imensa quantidade de maravilhas vivenciada pela protagonista. “E enquanto escutava – ou pensava escutar, todo o espaço em torno dela tornava-se povoado das estranhas criaturas do sonho de sua irmãzinha”, escreve Carroll. 

Por que o escritor escolheu esse desfecho, e não outro? Por que em uma das histórias mais conhecidas da literatura clássica infantil a realidade é apresentada como aquilo que acontece no espaço entre duas dimensões? Ao leitor, fica a dúvida de qual delas é a verdadeira, se tudo de fato não passou de sonho ou se, ao contrário, o que chamamos de realidade na verdade talvez não passe de uma mal ajambrada ilusão. 

Parte daí a pergunta que move este texto e a própria edição 2020 da Ciranda de Filmes: afinal, qual o papel do sonho na vida das gentes desse mundo?

A jornalista Cristiane Rogerio, em um texto publicado em seu site Esconderijos do tempo, faz pensar na proximidade entre brincar e reinventar a vida – portanto, sonhar. 

“Certa vez, Lewis Carroll escreveu numa carta para uma criança sua amiga: “Você costuma brincar de vez em quando? Ou a ideia que você faz da vida é ‘café da manhã, fazer lições, almoço, fazer lições e assim por diante?… Essa seria uma forma muito organizada de viver, e seria tão interessante quanto ser uma máquina de costura ou um moedor de café”.

A ciência tem numerosas e diferentes respostas à pergunta “por que sonhamos?”. Mas afinal, na melhor das hipóteses, sonhamos e imaginamos outros mundos para escapar de viver como máquinas. Não por acaso, tudo o que existe foi, antes, o sonho de alguém.

Vamos à lista de livros!

Para fazer coro à famosa ideia de que sonho sonhado junto é quase realidade, convidamos 13 profissionais do livro para repercutir suas noções do que é, como é, e onde aparece o sonho nos livros para crianças. A lista abaixo foi produzida coletivamente, e cada obra foi sugerida por um profissional diferente ligado ao livro e à infância.

Aproveite as dicas e boa leitura!

Os convidados de senhora Olga, de Eva Montanari
(Jujuba)

“As imagens delicadas são muito divertidas e apresentam cenas com um nonsense que reforçam toda a atmosfera de um tipo especial de sonho: o sonhar acordado da imaginação. A escritora e ilustradora italiana Eva Montanari cria imagens luminosas e emprega a técnica do pastel seco de modo que cada elemento das cenas parece brotar do papel. Nessa história, Eva nos conta sobre uma senhora que vive sozinha no alto de uma colina. A senhora Olga não vê com os olhos mas sabe muito bem quem vem para jantar todas as noites, sempre um convidado diferente, cada um com suas manias. Eva Montanari apresenta uma série de convidados que são personagens de outras obras literárias bastante conhecidas e, ao final, quando descobrimos um segredo… as ilustrações mais uma vez mostram o poder mágico da imaginação. São muitos os livros que nos fazem sonhar com coisas que nunca vimos, viajar para muito longe ou bem para dentro, de olhos fechados ou abertos. É bom demais estar perto desses livros”.

Aline Abreu, escritora e ilustradora

“Hora de sair da banheira, Shirley!”, de John Burningham (Cosac & Naify)

“Tem este sonhar que habita na criança, esteja ela dormindo profundamente e navegando em seus sonhos mais profundos ou, o que é mais fascinante, quando a criança está desperta dentro da possibilidade que brota na poesia que percebe na vida, e ainda assim, se permite sonhar. A menina Shirley, na hora do banho, na contramão dos pedidos da mãe, sonha que, naquele momento que só à ela pertence, outros mundos são possíveis. O encantamento que há no livro é justamente esse: percebermos que para a criança, não há constrangimentos em habitar outras realidades e possibilidades do sonhar a todo momento, mesmo que estes sonhos aconteçam longe do travesseiro.”

Alexandre Rampazo, escritor e ilustrador

“A casa da madrinha”, de Lygia Bojunga
(Casa Lygia Bojunga)

“‘A casa da madrinha’, de Lygia Bojunga. Essa casa é o lugar do sonho que dá sentido à vida dura do personagem Alexandre, menino pobre, que vende sorvete na praia para ajudar a família. É um texto recheado de simbologias e fiquei impressionada pela forma como a autora conseguiu mesclar realidade e fantasia para falar de emoções tão profundas. Os diálogos ágeis também me encantaram.”

Lúcia Hiratsuka, escritora e ilustradora

A bicicleta que tinha bigodes, de Ondjaki
(Pallas)

“Eu não sei andar de bicicleta. Parece bobo, mas é um sonho que estou tentando realizar mesmo depois de virar “gente grande”. É por isso que indico o livro “A bicicleta que tinha bigodes”, obra infanto-juvenil do escritor angolano Ondjaki, que trouxe para mim a conexão com um sonho antigo. Esta é uma história que nos conduz a ver leveza e encanto na vida, mesmo diante de um cenário conturbado. Mostra também o papel da criança como símbolo de esperança e fonte de inspiração para a literatura em tempos difíceis.”

Kemla Baptista, contadora de histórias, educadora e autora

“Mandela, o africano de todas as cores”, de Alain Serres; Zaü
(Pequena Zahar)

“Quem sonha um país? Como viveriam as pessoas no país dos seus sonhos? O que fazer para se tornar realidade? Estas são algumas perguntas que o livro ‘Mandela, o africano de todas as cores’, de Alain Serres e Zaü desenha em texto, projeto e imagens um sonho que podemos chamar de coletivo e que passa por pesadelos descoloridos (ou sonhos reprimidos?) até uma conquista que muitos acreditavam ser apenas utopia da África do Sul de então! E como sonhos realizados inspiram novos sonhos!”

Magno Rodrigues Faria, educador, contador de histórias, e coordenador pedagógico do Instituto Acaia

Sulwe, de Lupita Nyong’o – (Rocco Pequenos Leitores)

“Sulwe é a história de uma menina negra retinta que vive com a mãe, o pai e a irmã, negros de pele mais clara. Com o tempo, ela se vê diferente da família e de todos que a cercam.  A menina quase não têm amigos, ao contrário da irmã, que vive sendo elogiada por sua beleza e claridade. Sulwe começa a viver infeliz com a sua aparência; triste pelos cantos. Sua mãe, ao perceber, explica sobre as diferentes belezas que há no mundo. Ela entende com a cabeça, mas não com o coração. Certa noite, uma estrela cadente aparece em seu quarto e lhe conta uma história. Através do sonho,  a menina compreende o encanto da sua pele, escura como a noite. Nessa fábula, percebemos o sonho, não como uma experiência cotidiana, mas como um exercício de busca por orientação para as escolhas da vida. Há quem encontre nos sonhos a cura, a inspiração e a resolução de questões práticas. Por vezes, o que não discernimos racionalmente, se manifesta e se resolve através dos nossos sonhos.” 

Anderson Barreto, ator, performer e contador de histórias

“Barriga de Baleia”, de António Jorge Gonçalves
(MOV Palavras)

“Comecei distraidamente, lendo para o meu filho Benjamin, numa noite qualquer de uns 3 anos atrás, minha relação com esse livro do português António Jorge Gonçalves. Adultos que dormem. Uma criança – Sari – que pode ser inteira enquanto os adultos se entregam ao sono/sonho. Sari também pode sonhar, desobedecer os limites da “própria casa”  para avançar rumo a uma experiência do litoral da paisagem até o mar bravio das vontades. Engolida por uma baleia, como Jonas, Gonçalves ilustra as emoções oceânicas da personagem. Os adultos despertam quando tudo pode ser devolvido a alguma normalidade. E esse será o retorno da menina ao aconchego da própria cama. Talvez só haja repouso para uma criança, quando sua parentalidade encontra a justa medida entre o sono e a vigília.” 

Giuliano Tierno, educador, contador de histórias e gestor da A Casa Tombada

O Cântico dos Cânticos, de Ângela-Lago
(Sesi-SP)

“Em que lugar seria possível encontrar reunidos um poema de amor escrito há 3 mil anos, labirintos, espirais, o dia e a noite, as obras do artista Escher, iluminuras medievais e islâmicas, encontros e desencontros, o fim e o começo? Em um sonho, é claro! Quando abrimos o livro ‘O Cântico dos Cânticos’, da incrível artista Ângela Lago, é como se estivéssemos entrando em um sonho. Ele traz aquela sensação de deslumbramento e mistério tão própria do universo onírico. Como é próprio de uma obra de arte, ‘O Cântico dos Cânticos’ se abre para uma infinidade de leituras, possibilitando que o leitor viva de fato uma experiência, bastando apenas que sejam sensíveis às delicadezas da arte e do amor.”

Amanda Miorim, professora e contadora de histórias

O meu amigo pintor, de Lygia Bojunga
(Casa Lygia Bojunga)

“Em ‘O meu amigo pintor’, meu texto preferido de Lygia Bojunga, dois sonhos do menino Cláudio, devastado pelo suicídio do seu melhor Amigo, são verdadeiras encruzilhadas que misturam memória e arte, vida e morte. Neles, o menino traz à vida um quadro abstrato do seu Amigo — a obra de um artista é, afinal, uma chave para sua vida e, às vezes, para sua morte. No primeiro sonho, Cláudio se assombra com o Amigo no papel de fantasma, deslocado no teatro da vida, perdido no palco da morte, quase arrependido de tê-la escolhido, num limbo que é dele e também do menino. No segundo, mais conciliador, as três grandes paixões do pintor em vida (a pintura, a política e Clarice) asseguram a Cláudio que seu Amigo vai viver feliz e em paz para sempre na morte. Tal qual uma tinta incorpora outra, seu amor pelo Amigo toda-a-vida absorve, aos poucos, seu luto e incompreensão, e então uma paz muito pequena, muito grande, abraça Cláudio e o leitor.”

Guilherme Semionato, escritor

Histórias de índio, de Daniel Munduruku
(Companhia das Letrinhas)


“Meu primeiro livro, ‘Histórias de índio’, tem um conto intitulado “O menino que não sabia sonhar”. O conto narra como um curumim, que nasceu com o dom para ser pajé, teve que aprender a arte do sonhar para poder seguir seu caminho como curandeiro dentro de sua comunidade.”

Daniel Munduruku, escritor e professor

Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll – (Clássicos Zahar)

“Difícil escolher uma única obra sobre sonhos, acredito que o motivo da viagem à mundos oníricos esteja na própria raíz de se contar histórias. ‘Alice no país das maravilhas’, de Lewis Carroll e “A menina do narizinho arrebitado” de Monteiro Lobato são marcos da literatura infantil que bebem dessa fonte. Mas vamos lá: logo de saída me vem ao coração ‘Little Nemo in Slumberland’, do genial Winsor McCay, um dos pais do cinema de animação. Seu traço elegante e maravilhosas aquarelas narravam as aventuras insólitas, cheias de beleza e toques de surrealismo no reino de Morfeu. Histórias que sempre terminavam com o menino Nemo despertando em sua cama. O mestre Maurice Sendak, em seu ‘In the Night Kitchen’ faz reverência ao pequeno Nemo. Em meu trabalho, ilustrei algumas histórias tendo sonhos como matriz, uma delas é ‘Sonhe-me!’, livro com bonito texto da escritora Padmini. Para narrar em imagens esta história, busquei abrigo nesses gigantes e também no querido Eduardo Galeano com seu ‘O livros dos abraços’ e seus sonhos de Helena.”

Mateus Rios, ilustrador

Harvey – Como me tornei invisível, de Hervé Bouchard e Janice Nadeau
(Pulo do Gato)

“É um livro em que o sonho se contrapõe à realidade para que o personagem possa sobreviver psiquicamente à morte súbita do pai. Para tentar elaborar a dor, proteger-se dos sentimentos desconhecidos que o invadem, ele recorre ao “sonho” acordado, resgatando o herói de um filme que assistiu escondido, em que, inexplicavelmente, o personagem vai encolhendo até se tornar invisível. Scott Carré é Harvey, Harvey é Scott Carré, um elo metafórico em que a identificação com outro dá recursos pra nomear o que está vivendo”.

Márcia Leite, escritora e publisher da Pulo do Gato

Coragem de sonhar, de Maria Dinorah
(Moderna)

“O livro é delicado e traz os sonhos não apenas no título, como no delicado conteúdo da obra que marcou minha infância. Nele – e a partir dele -, me percebi encorajado a tornar os sonhos de infância realidade, enfrentar os desafios do mundo e da (futura) vida adulta com brilho nos olhos e esperança no coração, apesar das provocações do destino e das limitações de uma cidade pequena. Foi através dessa coragem que, aos 17 anos, coloquei uma mochila nas costas e decidi ganhar o mundo, saindo de uma cidade pequena no Rio Grande do Sul para a capital de concreto em São Paulo, há quase 20 anos atrás.”

Diego de Oxóssi, babalorixá e editor-chefe na Arole Cultural

Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan
(Cosac Naify) 

O livro é uma espécie de série de cartas sonhadas. Começa meio sem começo e termina sem um final. Inicia-se na consulta a um sábio búfalo incompreendido e se finda  com um amoroso salvamento. Entre a sabedoria e o gesto, o australiano Shaun Tan nos eleva a possibilidades de mundos que, ao mesmo tempo que nos parece estranho soa familiar. Entre os 15 contos, ou nestas cartas de imaginar lugares, tem um tantinho ali que é um presente: a preservação da utopia. “Preservação” mesmo, como um cultivo: história a história, a acreditarmos mais em nós mesmos e no viver comum. É tudo assim. Cartas de sonhos entre o fantástico e o possível, nos confirmando que ambos andam mais de mãos dadas do que imaginamos.

Cristiane Rogerio, jornalista  e coordenadora do curso O livro para a infância na Casa Tombada

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Memórias da infância

Quando menina, em Manaus, nós gostávamos de correr na beira do rio. Na beira desse rio, nós pescávamos os peixinhos e tratávamos como as mães faziam… tinha água, tinha fogo, tinha terra… tinha tudo que a gente tinha de direito. Nádia Tobias Yanim

*depoimento concedido à “Ciranda de Memórias “, 2014. 

A matéria dos sonhos é a memória; ninguém sonha sem ter vivido.” Sidarta Ribeiro

Desde o seu início, em 2014, a Ciranda de Filmes se dedica a reunir materiais e coletar depoimentos de memórias de infância, que acabaram por se constituir parte do nosso repertório de inspiração.

Nesse mosaico de histórias, participantes da Ciranda e pessoas ligadas a projetos parceiros que deram origem à este encontro, como o Território do Brincar e o Sementes do Nosso Quintal, revisitados nesta primeira edição da Ciranda Cirandinha de Filmes, dividem suas lembranças e afetos que sempre têm os mestres, a música, a brincadeira e a natureza na sua essência. Estas histórias e memórias nos ajudam a descobrir, a experimentar e a criar as nossas próprias narrativas e sentido da vida.

Acreditamos que para manter vivo o sentimento de compromisso de cuidar das crianças e jovens, do mundo e de nós mesmos, através de uma educação de qualidade em espaços co-criados e compartilhados, passa inevitavelmente pelo resgate, pela escuta e pelo acolhimento da nossa própria criança interior, valorizando seus sonhos, dores e afetos.

Seriam essas lentes, da memória, das artes e dos sonhos que nos permitirão criar e enxergar horizontes mais saudáveis, inclusivos e significativos?

Assista aos vídeos e navegue por algumas dessas memórias.

Escute outras na playlist “Memórias de infância” no canal Ciranda de Filmes no Youtube.

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Dez filmes para crianças

ou melhor,

DEZ FILMES PARA VER COM AS CRIANÇAS

por Helvécio Ratton

Imagem do filme “O balão vermelho”

O grande desafio dos filmes infantis, ou filmes dirigidos a todos os públicos como prefiro chamá-los, é serem capazes de entreter tanto às crianças quanto aos adultos que assistem o filme com elas. São raros os filmes que conseguem a proeza de fazer o público infantil mergulhar em sua fantasia ou aventura e, ao mesmo tempo, seduzir os adultos com sutilezas e referências que só nós compreendemos, o que nos faz sentir co-autores da própria narrativa. Assistir filmes assim com as crianças enriquece a elas e a nós, e possibilita uma troca de opiniões e emoções que transforma o tempo que passamos frente à tela em um momento mágico. Nos tornamos companheiros de uma mesma viagem.

Mas não é fácil encontrar filmes assim. A grande maioria são histórias mal contadas e mal cuidadas, que muitas vezes funcionam apenas como vitrines de produtos dirigidos ao público infantil. Nesses filmes a criança não é tratada como espectador de luxo, mas como consumidor de lixo.

Na lista abaixo estão filmes que assisti na infância  ou anos mais tarde com minhas filhas. São filmes de épocas e estéticas diferentes, mas que ficaram gravados na retina e no coração. São dez filmes que atiçam a inteligência das crianças e tocam seus sentimentos. Dez filmes com alma.

O MÁGICO DE OZ, Victor Fleming (1939)

Um clássico do cinema americano, o musical O MÁGICO DE OZ conta a história da menina Dorothy e seus três companheiros de jornada: um espantalho sem cérebro, um homem de lata sem coração e um leão medroso,  que buscam algo que não sabem que já possuem. Produzido há mais de 60 anos, O MÁGICO DE OZ não envelhece, como os verdadeiros contos de fada.  

ET – O Extra-Terrestre,  Steven Spielberg  (1982)

Um pequeno ser extra-terrestre cai em nosso planeta e é acolhido por um menino que o esconde em sua casa. A moderna fábula de Spielberg trata de sentimentos de abandono e rejeição e traz uma das cenas mais emocionantes da história do cinema, quando a bicicleta do menino, com o ET a bordo, começa a voar e se recorta contra a lua.

MEU TIO, Jacques Tati (1958)

Com a cumplicidade do sobrinho, um tio excêntrico e um tanto desligado bagunça a vida de uma família rica que vive rodeada de modernidades inúteis. Dirigido e interpretado pelo genial comediante francês Jacques Tati, o filme é uma sátira bem humorada dos costumes burgueses, onde se dá mais importância às aparências do que aos verdadeiros valores humanos. 

DUMBO, Walt Disney (1941)

DUMBO, além de ser um dos melhores filmes de animação da Disney, o que não é pouco, é um dos melhores filmes de todos os tempos. A história do pequeno elefante de grandes orelhas, ridicularizado por todos e depois idolatrado por sua capacidade de voar, é uma fábula sobre a superação de obstáculos e o amor entre mãe e filho. Algumas cenas são antológicas, como o delírio alcoólico de Dumbo e o ratinho Timóteo e quando os urubus o ensinam a voar.

PELE DE ASNO, Jacques Demy (1970)

Adaptação do célebre conto de fadas de Perrault, tem uma jovem e linda Catherine Deneuve como a princesa com quem o pai quer se  casar e por isso é obrigada a fugir dele. A direção refinada de Jacques Demy soube utilizar bem os castelos e cenários da França para dar um clima de realidade à fantasia. Assim como o conto que lhe deu origem, o filme se mantem sempre atual, expondo sentimentos que parecem não mudar com o tempo.

BRANCA DE NEVE, Walt Disney (1937)

Primeiro desenho animado de longa-metragem dos estúdios Disney, BRANCA DE NEVE estabeleceu um padrão de animação que poucos filmes puderam acompanhar, mesmo os realizados depois pela própria Disney. A cena em que a madrasta se transforma em bruxa é de uma força dramática impressionante, uma das melhores representações do mal mostradas até hoje no cinema. 

O BALÃO VERMELHO,  Albert Lamorisse  (1956)

Uma pequena obra prima, este filme de curta-metragem conta a relação inesperada entre um menino e um balão que teima em segui-lo pelas ruas de Paris. Utilizando recursos simples, mas de forma muito engenhosa, o filme nos convence de que o balão realmente tem vida própria para extrair daí humor e poesia. O final é belíssimo, com milhares de balões voando no céu de Paris.

A GUERRA DOS BOTÕES, Yves Robert (1962)

No interior da França, dois bandos de meninos combatem entre si e os troféus das batalhas são os botões das roupas dos perdedores. Nessa guerra de meninos, como nas outras,  há fracos e fortes, corajosos e covardes, e os valores do grupo levam as crianças a entrarem em conflito com suas famílias e com a escola. Um ótimo roteiro que deu origem a um filme humanista e bem realizado.

UM DIA, UM GATO, Vojtech Jasny (1963)

O personagem central do filme é um gato que tem o dom de enxergar o caráter dos homens. Aos olhos desse gato, as pessoas ganham cores diferentes segundo suas virtudes ou defeitos. Os invejosos ficam amarelos, os apaixonados vermelhos e o filme vai por aí afora, falando do comportamento humano de forma leve e divertida, mas crítica ao mesmo tempo. Produzido na Tchecoslováquia socialista dos anos 60, no final vencem os bons e os falsos são desmascarados, como nas boas fábulas do gênero.

TOY STORY, John Lasseter  (1995)

Primeiro filme de longa-metragem totalmente criado no computador, conta a história dos brinquedos de um menino que têm medo de serem abandonados quando seu dono ganha brinquedos novos. Sentimentos como ciúme e rejeição, tão conhecidos das crianças, são muito bem trabalhados no filme. TOY STORY surpreende pelo poder de comunicação dos personagens e pela alta qualidade da animação. Foi um salto enorme, um marco  em relação às experiências anteriores de animação via computador. Os outros dois filmes que vieram na sequência mantem a qualidade no alto, o terceiro da série TOY STORY é ótimo.

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Olhares Olhares 2019

Um convite para ouvirmos a música do silêncio

or Mauro Muszkat

Levantei algumas reflexões para podemos trocar em um diálogo aberto inspirado por este documentário delicado de Mariam Chachia, da Georgia: Ouça o silêncio(Listen to the silence). O filme é, para mim, um convite para que ouçamos o silêncio, ouçamos atentamente a música do silêncio. Mas de que silêncio esse filme tão tocante e sensível nos fala?

Aquele que contrasta com a tagarelice ruidosa de nosso época, cheia de palavras sem qualquer ressonância com emoções verdadeiras? O silêncio daqueles que, como Luka [protagonista do filme], não têm as palavras como veículo para suas emoções e aprendizagem? O silêncio, necessário da nossa mente, para estarmos atentos para os sinais e ritmos sutis do nosso corpo?

A busca silenciosa e a resiliente necessidade de pertencimento das crianças, mesmo diante de tantas singularidades como o protagonista: surdo, hiperativo, impulsivo, as vezes aparentemente agressivo e desconcertante, mas essencialmente encantador, humano e comovente.

“Ouça o silêncio”não é apenas um convite, mas, acima de tudo, um chamado, é um chamado para todos nós: 1) Pais, que não compreendem a linguagem, o código ou o comportamento dos próprios filhos, mas não desistem de empreender afetivamente novas possibilidades de aproximação. 2) Educadores, que não apenas insistem nas regras e nos métodos formatados, que podem ser moldes ou ferramentas, mas que não servem para todos. Os passos síncronos da dança georgeana não possibilitam que Luka expresse sua individualidade e concretize seu verdadeiro sonho. Pelo contrário, a formatação o coloca diante de suas dificuldades, que quase o faz desistir. Não somos todos iguais. Somos essencialmente diversos e únicos, como Luka.

Despertarmos para o poder libertador da arte na emergência dessa singularidade é trazer a importância da experiência estética na educação das crianças, fundamental, pois elas nos libertam também dos muitos condicionamentos, dos enquadramentos limitantes que não permitem a expressão da nossa verdadeira identidade. Neste sentido, a arte, a dança e a música são ferramentas poderosas de expressão das crianças, já que orquestram comportamentos únicos e grupais enquanto linguagem universal de múltiplos significados que é, em sua essência, intrinsicamente emocional e compartilhada.

A música é talvez a mais subjetiva e humana das artes, pois ela é essencialmente emoção e consciência do tempo: “Além de se desenvolver em um suposto tempo, a música é o próprio tempo, e como acontecimento temporal, algumas vezes marca, delimita, e dá o tempo; outras vezes, pode trazer diferentes ideias, ora de coexistência, ora de suspensão, ora de ausência do tempo” (Craveiro de Sá; 2003).

A música é também o resultado da incrível transformação de vibrações de ar em um sistema subjetivo complexo, que traduz estados de tensão, expectativa e expressão da nossa identidade corporal e da nossa imaginação.

Quando Luka compreende a natureza da vibração da música na expressão tátil das ondas dos aparelhos de áudio – para ele, silenciosas mas orgânicas –, consegue também expressar sua identidade em um jogo orgânico de ritmo, emoção, sombra e imagem. Conectar-se com a música significa para ele ser livre para efetivar o sonho de pertencimento e de equidade.

Essa experiência foi essencial para que Luka pudesse reconhecer e abrir-se por inteiro para compartilhar com o outro, reconhecer-se com seus pais orgulhosos, seus pares e educadores e, assim, fortalecer sua cognição como ser social. Nossas crianças são extremamente carentes de experiências estéticas que as libertem de condicionamentos que aprisionam os sentidos e que possibilitem transcender e ocupar o espaço da singularidade essencial para o reconhecimento individual e social de sermos livres e espontâneos para compartilhar com o outro a nossa verdade e nossas diferenças. 

Hoje, em neurociência, fala-se de ‘“embody cognition” (ou cognição corporificava) enfatizando a importância das sensações corporais, dos sentidos para a aprendizagem efetiva. Isso vai no contrafluxo desta era digital, em que o corpo é cada vez mais negligenciado, inerte, em detrimento das enxurrada de imagens e palavras e do tempo vertiginoso, rápido de máquina, que é tão diferente do tempo real, tempo com sentido e sentimentos, tempo simbólico, veículo de emoções e sentimentos compartilhados. 

A música organiza basicamente as emoções, que não são necessariamente emoções utilitárias, como o medo, a raiva, o nojo, mas emoções estéticas que, além do prazer ou desconforto, envolvem dimensões transcendentes de maravilhamento, paz, sublimidade, poder e nostalgia. Precisamos , tanto na  escola quanto na vida, de maneira geral, mais de arte do que de tecnologia. Devemos nos questionar em que medida a introdução precoce de tecnologia não cria alienados digitais, que estão, na verdade, treinando, reforçando redes neurais, já que o cérebro tem plasticidade, de como não reconhecer o outro, como treinar o imediatismo, como alienar o própria corpo da aprendizagem. Diante da máquina o corpo está amortecido, enquanto a mente é poluída por imagens potentes e intrusivas que bloqueiam a reflexão, o silêncio e o compartilhamento de emoções. 

Nesse sentido o poder transformador da arte pode ser um antídoto potente para essa alienação. A música, enquanto aliada da educação e da vida das crianças, também deixa a sua zona hedonista de conforto, enquanto díade ouvir prazer, para tornar-se um veículo de inclusão, transformador da nossa consciência, fundamental para nos mantermos empáticos e essencialmente humanos em nossa natureza complexa corporal, singular, social e transcendente.

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Olhares Olhares 2019

Era uma vez: “tjamparanjani“!

“Somos poetas, poetisas e artistas do futuro

Cantamos o A B C da nossa alegria, da nossa dor, da nossa saudade”.

O filme “Tjamparanjani” (Miko Meloni, 2016), parte da programação da Mostra Itinerante da Ciranda de Filmes, mostra o primeiro episódio do programa de rádio de mesmo nome. Nele, foram apresentadas as obras de todos os participantes do novo curso de uma oficina de arte, atividade que revela um pouco sobre as crianças, seus gostos e vontades, além da própria comunidade, incluindo suas famílias. Em pinturas, contos e poemas, conhecemos as histórias desses pequenos (grandes) artistas.

As crianças da Escola Primaria Completa de Natite, bairro na cidade de Pemba, ao norte de Moçambique, ficaram surpresas com o pedido do diretor, que passou em cada sala pedindo para que seus alunos estivessem na escola no sábado. “Não nos disse o porquê, só nos disse para vir”, diz a menina Ornilda Eugénio, uma das entrevistadas do “Tjamparanjani” . Ao chegar à escola no final de semana, viu as salas divididas em várias opções de oficinas ‒ quem quer poesia vai para um lado; quem quer pintura, para outro. Ornilda juntou-se com a turma da poesia e lá encontrou professores voluntários que lhe ofertaram materiais e liberdade para poetizar. A garota escolheu homenagear a mãe, que lhe ajudou com o primeiro poema. Depois do incentivo, “comecei a falar lindas palavras, escrever belos poemas”. Durante a entrevista, ela confessa não saber se recitará o poema da maneira como o escreveu, mas, ao fazê-lo para o entrevistador, um dos artistas voluntários da oficina, Ornilda fecha os olhos e seus versos declama com sinceridade e intensidade.

E não é o único momento de integração familiar que acaba sendo promovido com a iniciativa da oficina. Junto de Ornilda, Latifo e Cláudia são poetas mirins convidados a explorar e aprofundar o conhecimento na poesia com suas avós, Avó Helena e Avó Awagi. Sentam-se juntos e ouvem os contos. As avós também são artistas. A poesia, cantada em língua macua, “busca um toque do saber antigo”, como diz o realizador do encontro, numa troca entre gerações.

Com isso, os artistas locais conseguem despertar nas crianças não apenas a sensação de pertencimento, mas um realce e uma afirmação das suas identidades. Cláudia, ou Clau, como chama o entrevistador, conta que em uma das aulas a professora perguntou: “O que é poesia?”, “O que faz um poeta?”, “O que faz uma obra de arte?”. 

Para a primeira pergunta, a poeta responde “a poesia exprime sentimentos”. Para refletir sobre quem é o poeta e sua obra, o que conduz é pensar em quem é Cláudia fora da oficina. Para ela, uma qualquer. “Foi na oficina de arte que eu me senti feliz; quando estou fora, sou uma qualquer”.

O que ouvimos ‒ e vemos ‒ na obra são crianças que passam a poder contar sobre si mesmas e sobre o mundo por meio da arte. Não à tôa, “tjamparanjani”, em língua macua, equivale ao nosso “era uma vez”. Mas as histórias não são individualizadas. A família e os artistas se misturam nesse momento, ouvindo e acompanhando as crianças em suas experimentações. A cada “tjamparanjani!” dito na roda, todos devem responder “shampatteke!”, mantendo o ritmo do conto.

Depois dessas e de outras histórias, o programa Tjamparanjani encerra seu primeiro episódio ‒ e o filme ‒ com uma roda artística em um dos centros culturais de Pemba. O artista que guiou as entrevistas, apresentando os artistas e poetas do futuro em seu programa de rádio e para nós, espectadores do filme, convida as crianças a fazerem um poema de pronto. O tema: descrever em versos o seu bairro, para saber como veem o mundo. As crianças tentam pensar rápido, uma rascunha versos no caderno, outra se mostra nervosa. Mas conseguem dizer com sinceridade, mostrando todo o resultado do projeto: “É no meu mundo que eu aprendo”.

Assista “Tjamparanjani – Era Uma Vez” aqui ou na página oficial do diretor.

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Casinhas habitadas de infâncias

A menina Clarisse Alvarenga era uma verdadeira arquiteta. Crescida em Belo Horizonte, ela não montava necessariamente casinhas, mas espaços para serem ocupados, habitados, por sua infância. Hoje, já adulta, ela constrói cuidadosamente os saberes que observa nas infâncias pelo Brasil em filmes como “Ô de casa” (2007), documentário que integra a Mostra Itinerante da Ciranda de Filmes, que passa por cinco cidades brasileiras. “Acredito que as brincadeiras são momentos importantes da vida do ser humano, pois é quando você experimenta o mundo a partir dos seus sentidos, do seu olhar, do seu paladar, do seu olfato, do seu tato.”
Quando começou a filmar as crianças brincando de casinha, a diretora não tinha certeza se essa era uma brincadeira da qual gostava, ou mesmo se tinha a intenção de fazer um longa sobre o tema. Enquanto terminava seu outro filme, Umdolasi, para o qual passou um ano filmando as crianças numa praça no Alto de Vera Cruz, bairro em Belo Horizonte, a casinha de um grupo chamou a sua atenção. A intensidade com a qual as crianças brincavam impactou a documentarista e inspirou uma pesquisa mais focada nessa brincadeira simbólica. Durante o processo, ela foi se deparando com memórias e lembranças da própria infância, que bateram na porta não só pela identificação, mas, principalmente, pela diferença.
Com outros pesquisadores da cultura da infância, mestres brincantes e sua equipe, buscou observar, escutar e brincar com as diversas crianças que encontrou, convivendo um pouco com elas. Visitou casinhas em quatro regiões diferentes: Médio Vale do Jequitinhonha (Jenipapo de Minas e Coronel Murta); na aldeia Imbirussú, em Carmésia, onde vivem os Pataxó de Minas; em São Sebastião das Águas Claras e em Belo Horizonte (Alto Vera Cruz). Assim, para investigar esse brincar, fez paradas em aldeia indígena, num território de uma comunidade quilombola, numa comunidade sertaneja, na periferia de um grande centro urbano.
Em cada parada, percebia as convergências e especificidades das moradas construídas por meninas e meninos. “A brincadeira é universal no sentido de que todas as crianças brincam e podem brincar de casinha e podem construir seu próprio espaço no mundo. Mas os mundos que cada uma dessas crianças constroem são muito diferentes, porque os territórios são diferentes, as maneiras de habitar esses territórios são diferentes e essa que é a grande riqueza.”
A cineasta não coloca o cinema como uma ferramenta de registro acima da infância. Por isso, para ser bem recebida nas casas, tirou os sapatos e pediu licença. Entendeu que partiria das crianças e das brincadeiras para chegar ao cinema – e não de qualquer ideia pré-estabelecida sobre as representações das crianças, a cena, o roteiro, a montagem, a infância, as brincadeiras. Com a câmera disposta sempre numa altura baixa, ao alcance das mãos das crianças, não quis captar a brincadeira de um ponto de vista adulto. Permitiu com que as crianças interagissem com as lentes e com a equipe num delicado jogo, como se filmar fosse também uma maneira de brincar. E com isso as crianças dispensavam aos equipamentos o mesmo cuidado que nutriam por seus próprios brinquedos.
Entre os galhos, folhas de bananeira e materiais de construção de segunda mão, as casinhas que “Ô de casa” revelam pequenos gestos cotidianos, as vivências e os ambientes dessas crianças. Carregam consigo narrativas domésticas, familiares, escolares. Também tinham visitas indesejadas, bagunça e arrumação, divisão de tarefas ‒ fazer o almoço com as meninas e colher palha com os meninos.
As estruturas dessas casas foram feitas de muito estudo e pesquisa. Sua arquiteta carregou tijolo a tijolo um conhecimento sobre cinema e infância que foi sendo montado, empilhado, solidificado. O trabalho de Clarisse na Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona e coordena Laboratório de Práticas Audiovisuais na Faculdade de Educação, também é de dar o material e ensinar a construir. Na instituição, ela trabalha com estudantes indígenas, do campo e professores, sempre pensando no uso que cada um desses grupos faz do cinema: “A ideia é possibilitar que o cinema esteja mais próximo dessas pessoas, seja uma realidade na vida delas, para se expressar e pesquisar por meio do cinema”. Reboca os pilares com uma metodologia de trabalho que parece simples, mas mostra uma inversão no próprio trabalho com o cinema. Pinta as paredes com a descrença que a infância é um território conhecido, a ser dominado, enquadrado, abrindo janelas para uma arte cinematográfica reinventada em conjunto com as crianças.
Há muito o que aprender ao observar as crianças ou pensar na construção da sua própria casinha. A cineasta destaca as muitas formas de viver, cada lugar a partir dos materiais que têm disponíveis, da sua geografia e ambiente, cada casa de um jeito singular, específico, próprio. “As diferenças entre as casinhas mostram isso. E é uma vida que leva em consideração a natureza, a floresta, os elementos que estão disponíveis ali, é uma vida sustentável, que habita esses espaços sem destruí-los. É interessante pensar como as crianças criam esses espaços sem comprometê-los. Elas fazem um uso muito ecológico desses lugares, acho que isso é algo que podemos aprender olhando para elas e olhando o filme.” A brincadeira pode refletir sobre essa construção, evocar as memórias das nossas casinhas.”
E é essa reflexão que se faz morada na nossa Mostra Itinerante. “Acho importante a iniciativa da Ciranda de Filmes no sentido de reunir esses filmes que dialogam muito uns com os outros e, ao dialogarem, ampliam os sentidos que são produzidos ali. É importante sabermos que existe essa produção no Brasil, que existem pessoas que estão interessadas em pensar a infância e fazendo uso do cinema para isso, abrindo um espaço no cinema para a criança e para a infância”, diz Clarisse.
Assista “Ô de casa” aqui ou na página oficial da diretora.

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A Itinerância da Ciranda

A Ciranda de Filmes é a primeira mostra de cinema do Brasil com foco em infância, juventude e educação. Nasceu do desejo de sensibilizar, provocar e mobilizar educadores, pais e outros interessados em refletir sobre as primeiras etapas do desenvolvimento humano, fundamentando ações em prol do cuidado dessas fases tão fundamentais para o indivíduo e a sociedade.
Apostando na potência do cinema para tocar mentes e corações, ao longo das cinco edições, a Ciranda vem promovendo encontros para inspirar e promover trocas entre pensadores, educadores, artistas, cineastas e o público, enriquecendo e aprofundando a reflexão sobre os temas propostos a cada ano.
A mostra reúne filmes e experiências capazes de emocionar e fortalecer caminhos e utopias, ampliando a percepção de que não estamos sozinhos. Pelos quatro cantos do mundo, pessoas “cirandeiam” juntas, tecendo sonhos e histórias ricas em sentido, aprendizado e beleza.
Em nossa primeira edição itinerante, apostamos numa proposta de retrospectiva para celebrar essa nova jornada a partir dos eixos fundadores da mostra: nascimento e infância, espaços de aprendizagem e movimentos de transformação. Para isso, selecionamos alguns dos filmes que nos marcaram e retomamos as reflexões e os temas propostos nas edições anteriores: família, criança e natureza, protagonismo infantil, mestres, o que te nutre? e música, linguagem da vida.
Estamos muito felizes com a realização dessa primeira mostra itinerante, um importante passo para ampliar o acesso do público de diferentes regiões do país a uma pesquisa que vem sendo construída ao longo desses anos com o intuito de realizar o sonho de compartilhamento de ideias, assim como a troca de saberes.
Ciranda é um poema que se canta junto. Esperamos dar as mãos aos novos amigos que vamos encontrar no caminho e abrir uma grande roda para que juntos tenhamos mais força para emocionar e transformar.
Fica nosso convite para dançarmos juntos essa Ciranda!
Fernanda Heinz e Patrícia Durães


Ciranda de Filmes – Mostra Itinerante
Animação – Longas
As aventuras do avião vermelho – Frederico Pinto, José Maia  (2ª edição, 2015)Animação, Brasil, 2014, 73 min, livreO filme conta a história de Fernandinho, um menino de 8 anos que perdeu a mãe há pouco tempo, tornando-se um garoto solitário, sem amigos e com problemas de relacionamento com o pai e na escola. Sem saber como lidar com a situação, o pai tenta conquistá-lo com presentes. Nada funciona até que ele dá para o filho um livro de sua infância. A bordo do Avião Vermelho e junto com seus brinquedos favoritos, Fernandinho visita lugares inusitados, como a Lua e o fundo do mar, e percorre diferentes territórios. Ao longo dessa jornada, Fernandinho descobre o prazer da leitura, a importância de ter amigos e o amor do pai. Baseado no livro homônimo de Érico Veríssimo. 
Window horses, a poesia de Rosie Ming – Window Horses – Ann Marie Fleming(4ª edição, 2017)Animação, Canadá, 2016, 85 min, livre
Rosie Ming, uma jovem poeta canadense, é convidada para se apresentar em um festival de poesia em Shiraz, no Irã, mas preferiria ir a Paris. Ela vive na casa de seus avós chineses super protetores e nunca foi a nenhum lugar sozinha. Uma vez no Irã, ela se encontra na companhia de poetas e de Persas que contam histórias que a obrigam a confrontar o seu passado: o pai iraniano que ela acha que a abandonou e a natureza da própria poesia. O filme trata de construir pontes entre divisões culturais e geracionais. É um filme sobre ser curioso. Estar aberto. E encontrar a sua própria voz através da magia da poesia. 
Ficção – Longas
A Família Dionti – Alan Minas(4ª edição, 2017)Ficção, Brasil, Inglaterra, 2015, 96 min, livreUm filme emocionante, em que o fantástico e a realidade se equilibram e tecem juntos uma trama envolvente e cheia de surpresas. Nas muitas histórias por trás da história, a mãe apaixona-se, evapora e desaparece; Josué sonha com a volta da mulher a cada chuva, enquanto cria sozinho os dois filhos, Serino, que é seco e chora grãos de areia, e Kelton, que se derrete com a chegada de Sofia, uma garota de circo. “A Família Dionti” retrata de forma especialmente delicada o tema universal do primeiro amor.
Documentário – Longas e médias
Crescer – Grandir – Etienne Moine, Bernard Josse (2ª edição, 2015)Documentário, Equador, 2011, 104 min, livre”Crescer” é um documentário que nos convida a dividir o cotidiano de crianças que, aos poucos, recuperam sua dignidade violentada muito cedo. Redescobrimos com elas a alegria de viver em um ambiente cuidadosamente preparado, que as levará à reintegração familiar e social. “Crescer” nos mostra uma nova relação adulto-criança e nos confirma que é possível crescer de maneiras diferentes. 
Língua mãe – Fernando Weller, Leo Falcão (4ª edição,2017)Documentário, Brasil, 2011, 81 min, livreNaná Vasconcelos, um dos maiores músicos do Brasil e mais atuantes fora do país, sonhava reunir um grupo de crianças e fazer música com elas em sua língua materna: o português. Atravessou três continentes para encontrá-las e daí nasce Língua Mãe, projeto musical realizado em parceria com o maestro Gil Jardim. 
Mitã – Lia Mattos, Alexandre Basso (1ª edição, 2014)Documentário, Brasil, 2013, 52 min, livreMitã. Criança brasileira. O ser humano em sua dimensão criadora transcende o tempo despertando para as possibilidades de um “Mundo Novo”. Uma poética da infância inspirada por Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Lydia Hortélio, trazendo importantes ideias sobre educação, natureza, espiritualidade e a Cultura da Criança. 
Ô de casa – Clarisse Alvarenga (1ª edição, 2014)Documentário, Brasil, 2007, 70 min, LivreCrianças e adolescentes se apropriam de espaços públicos ociosos, no interior ou na capital do estado de Minas Gerais, para brincar de construir casinhas e cabaninhas. Em cada casinha, uma pequena história se passa: a visita indesejada de um menino que tudo bagunça; a possibilidade de fundar um espaço de individualidade recuado em relação ao espaço da família; a preparação do almoço pelas meninas enquanto os meninos vão caçar e colher palha; o desentendimento decorrente da partilha do espaço; e a reconstrução de uma casinha destruída. Fora desses ambientes, é possível entrever um mundo feito do tempo da memória dos que, no passado, brincaram ali naqueles mesmos espaços. 
Pare olhe escute – Kátia Lund(5ª edição, 2019)Documentário, Brasil, 2013, 52 min, livreA música invadiu as ruas e vielas e entrou pela janela das casas, dando cor e melodia a uma rotina, outrora tão opaca, na pequena cidade de Barra Mansa, interior do Rio de Janeiro. Desde que se iniciou o projeto Música nas escolas, promovido pela prefeitura da cidade, Barra Mansa nunca mais foi a mesma. Dirigido por Kátia Lund e produzido por Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi, o filme Pare Olhe Escute mostra, com sensibilidade, a rotina de jovens músicos ao realizarem o sonho de sair em turnê com a orquestra da cidade, acompanhada da pianista Simone Leitão, pelas principais salas de música do país. 
Terreiros do brincar – David Reeks, Renata Meirelles (4ª edição, 2017)Documentário, Brasil, 2017, 52 min, livreO filme retrata a participação de crianças em 12 grupos de manifestações populares em 4 estados brasileiros, e a sua relação com um brincar coletivo, intergeracional e sagrado. 
Documentário –  CurtasDisque Quilombola – David Reeks (1ª edição, 2014)Documentário, Brasil, 2012, 13 min, livreCrianças do Espírito Santo conversam de um jeito divertido sobre como é a vida em uma comunidade quilombola e em um morro na cidade de Vitória. Por meio de uma genuína brincadeira infantil, os dois grupos falam de suas raízes e revelam o quanto a infância tem mais semelhanças do que diferenças. 
Meninos e Reis – Gabriela Romeu (3ª edição, 2016)Documentário, Brasil, 2015, 16 min, livreNo reisado, um dos folguedos mais populares do Cariri cearense, o palhaço pinta a cara de preto, crianças aprendem a jogar espada com destreza e meninas crescem como rainhas. Mas Maria, a rainha de um dos reisados mais tradicionais da região, está no último ano de reinado e encara o drama de passar a coroa para a irmã mais nova, vivendo um verdadeiro rito de passagem.
Mbyá Reko Pyguá, a luz das palavras  – Kátia Klock, Cinthia Creatini da Rocha(1ª edição, 2014)Documentário, Brasil, 2012, 18 min, livreA sensibilidade do povo Guarani em educar as crianças permanece viva apesar das influências da sociedade contemporânea. Mas os caminhos e esforços dos líderes espirituais e professores indígenas são marcados por dilemas, buscas, encontros e desencontros. Este registro todo gravado em Guarani na Aldeia Yynn Moroti Wherá, em Biguaçu, Santa Catarina, no sul do Brasil, comprova: espiritualidade, simplicidade e verdade são palavras que traduzem “a luz” dos Guarani no seu processo de educação. Waapa  – David Reeks, Paula Mendonça, Renata Meirelles (4ª edição, 2017)Documentário, Brasil, 2017, 22 min, livreO documentário propõe um mergulho inédito na infância Yudjá (Parque Indígena do Xingu/MT) e os cuidados que acompanham seu crescimento. O brincar, a vida comunitária e as influências de uma relação espiritual com a natureza são revelados como elementos que organizam o corpo-alma dessas crianças. 
Tjamparanjani – Era Uma Vez – Tjamparanjani  – Miko Meloni, Mahiriri Ossuka(3ª edição, 2016)Documentário, Itália, Moçambique, 2016, 34 min, livreDurante o primeiro episódio do programa de rádio Tjamparanjani! (Era uma vez, em língua macua) foram apresentados as poesias e os contos de todos os participantes do novo curso da Oficina de Arte. No bairro Natite, na cidade de Pemba (ao norte de Moçambique), alguns artistas locais dão aulas de arte aos mais jovens. Para incentivá-los, as avós também participam, contando suas fábulas populares: a cada “Tjamparanjani!”, deve-se responder “Shampatteke!”, mantendo o ritmo da contação de história. 
Uma nota só – Laís Bodanzky (5ª edição, 2019)Ficção, Brasil, 2012, 11 min, livreDe forma sutil e poética, a diretora Laís Bodanzky conduz o olhar do espectador por ruas e becos sonoros, onde caminham passos que parecem divergir da própria realidade. Mas esses caminhos, certo dia, não serão mais os mesmos… 

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E assim mais uma Ciranda girou…

Quantos ritmos cabem nesta Ciranda? Foi com essa pergunta-chamamento que as curadoras da Ciranda de Filmes, Patricia Durães e Fernanda Heinz Figueiredo, abriram a mostra de 2019, no Espaço Itaú de Cinema Augusta, em São Paulo. Era um chamado para percorrrer as sonoridades Brasil adentro e mundo afora, ouvindo os sons ao longo do rio Amazonas, os ritmos das quebradeiras de coco, a toada do bumba-meu-boi, as sonoridades dos ciganos em jornada da Índia à Espanha, um músico encantando elefantes em terras tailandesas ou as vozes da natureza nos rincões do planeta.

Ali se iniciavam quatro dias de programação intensa, com filmes, oficinas, vivências, trocas, escutas e reflexões. Já na abertura, uma diversidade de ritmos marcava a telona: “Amazônia Groove” (Bruno Murtinho) inaugurou o encontro com o ecletismo do carimbó ao technobrega, da música clássica à guitarrada. Aliás, guitarrada do mestre Manoel Cordeiro que, se fechou o documentário de Bruno Murtinho com um show, abriu a Ciranda de Filmes com outro. Foi surpreendente sair das salas de cinema e encontrar o músico paraense num coreto de fitas coloridas convidando todos a dançar ritmos de sua terra natal. Era só o começo.

Na quinta-feira, a primeira vivência foi o toré dos Kariri-Xocó. Com chocalhos nos pés e maracas nas mãos, cantaram e dançaram em roda, num ritmo que significa “o que a tristeza significa”, “para poder desabafar, lembrar-se”. Terminada a apresentação, abriram uma rodada de perguntas. Foi uma “maravilha de vozes”, observou um dos espectadores, uma reunião de diferentes timbres que formam uma unidade harmônica. O mestre Wyanã Uia-Thê Kariri-Xocó explicou a inspiração para tal maravilhamento: “Vemos o gesto do passarinho, o som do vento, o som da água. Não nos preocupamos muito em botar muita letra [nas composições], nos preocupamos com a espiritualidade. O sentir, daí nos deixamos levar”.

A potência da música foi reafirmada mais tarde, na exibição de “Vivo por dentro: uma história de música e memória” (Michael Rossato-Bennett), que relata casos de tratamento de Alzheimer a partir da musicalidade – a área do cérebro que responde a estímulos musicais é uma das últimas a ser comprometida. Assim, perguntar a esses pacientes quais suas canções favoritas, aquelas que marcaram suas vidas, ajuda a reavivar memórias. A importância da música na área da saúde entrou ainda mais na roda durante a conversa com o grupo Arte Despertar, que trabalha com sons e histórias em hospitais. Para o musicoterapeuta André Lindenberg, um dos integrantes do grupo, a música é capaz de ressignificar um espaço como o do hospital e de transformar o tempo. Experiências que dilatam o tempo.

Com Lydia Hortélio, a música adentrou o território da infância. “Qual a mais remota lembrança musical dos tempos de criança que vocês têm?”, perguntou a etnomusicóloga que no Brasil abriu caminhos para um cuidadoso olhar para a cultura da infância. Na palestra da educadora que até hoje exercita seu corpo brincante, ela relembrou sua meninice em Serrinha, cidade na Bahia, onde fez um extenso registro dos brinquedos musicais em diferentes décadas do século passado, reunindo mais de 600 cantigas. Numa fala em tom de urgência, falou também do “fosso que separa cidade e campo no país”. Na zona rural, “onde o Brasil está encoberto”, a música acompanha todos os gestos das comunidades que persistem em habitar a natureza. E convocou: “Temos que voltar a cantar”.  

Seguimos cantando e conversando. Ou melhor, seguimos com “O Piano que Conversa” (Marcelo Machado), um filme com muitos diálogos musicais protagonizados pelo instrumento do título, em parceria com o pianista Benjamim Taubkin. Quando perguntado sobre a sua relação com as sonoridades de outras culturas, Taubkin respondeu sobre a música ser “o próximo estágio da humanidade”, em que “quanto mais a pessoa puder ser o que ela é, melhor”. E as prosas desse instrumento continuaram ecoando em outros filmes, como o documentário “Nelson Freire” (João Moreira Salles), o curta “O Afinador” (Fernando Camargo e Matheus Parizi) e a ficção cubana “Esteban” (Jonal Cosculluela).

Na sexta-feira , a educadora Therezita Pagani, da escola Te-Arte, quintal para a vivência plena da infância, participou de um bate-papo após a exibição do filme “Música na Te-Arte” (Fernanda Heinz Figueiredo). Therezita, batizada de “talismã” da mostra por uma integrante da plateia, lançou uma pergunta às mães: “Qual foi o primeiro embalo que cantaram para seus filhos?”. Foi bonito o que elas entoaram em forma de resposta: de composições autorais a canções que há tempos rondam a noite infantil. A música é o primeiro elo para que a criança se entenda, conheça seu ritmo interno, a educadora explicou. Ao final da conversa, um último pedido da educadora: “Vamos continuar sensíveis à música até o fim da vida”.

Já na exibição de “Amazônia Groove” aberta ao público, o diretor Bruno Murtinho nos contou como musicalidade e espiritualidade caminham juntas. Falou das dificuldades de gravar na região Norte, território imenso, onde o deslocamento é oneroso e leva bastante tempo. Da imersão em um mundo desconhecido pelos brasileiros. Do trabalho de entrevistas de cinco anos. Ao final, um resultado que impressiona: “A Amazônia me deu tudo que eu pedi a ela”. Um filme sobre fé, que foi feito a partir de vários pequenos milagres.

Benjamim Taubkin, em parceria com os também músicos João Taubkin e Kabe Pinheiro, voltou a inspirar o público da Ciranda numa outra conversa (intensamente) musical. A partir de três filmes inspiradores para o seu fazer artístico – Encontro com homens notáveis (Peter Brook), Camelos também choram (Byambasuren Davaa, Luigi Falorni) e Todas as manhãs do mundo (Alain Corneau) –, dialogou sobre a potência da música, território imprescindível. Entre uma prosa e outra, ele e os outros músicos criaram na hora composições em sintonia com o que tínhamos acabado de ver e ouvir no cinema, onde um piano marcou todos os dias presença.

O sábado começou com a apresentação da orquestra das crianças da EMIA, que encantou o saguão do cinema com músicas como com Tico-tico no fubá. Para continuar o assunto de ensino musical, uma partilha de experiências se desenrolou com a presença de Claudia Freixedas, Jorge Fofão, Roseli Novak e Teca Alencar de Brito. Papo que rendeu reflexões sobre como entender a música como um jogo aberto, em que cabem inúmeras possibilidades e experimentações. Entendido como manifestação natural do ser humano, território também do brincar. Espaço em que é necessário respeitar a autoria das crianças.

A plateia surgiu com algumas questões a respeito de expressões musicais contemporâneas e como educar as crianças nesse sentido – e o tempo ficou curto para tamanha discussão. Como fechamento, a fala de Fofão emocionou a plateia e destacou a importância de procurar sentido nas letras, nos sons. Eles significam algo. O fazer musical é parte da existência, “a música está na essência do homem, quando ele perde isso, ele está se machucando dentro dele mesmo”.

A exibição de “Ouça o Silêncio” (Mariam Chachia) foi seguida por uma discussão sobre o papel da música no desenvolvimento humano com o médico neurocientista Mauro Muszkat. O ponto principal da conversa girou em torno dos impactos da tecnologia nesse processo. Sobre a velocidade de informação a que os jovens estão expostos e as dificuldades em assimilar todo esse conteúdo, o médico comentou: “Nosso cérebro é plástico, mas não é elástico”. É interessante estimular uma criança a partir de diversas ferramentas e instrumentos, mas perceber se elas estão sincronizadas com esse movimento é essencial. “Quando você escuta uma música, tem que ter tempo para processar”, se as crianças ficam conectadas digitalmente durante muito tempo, esse tempo não é respeitado.

A urgência da musicalidade em nossas vidas permeou muitos territórios. E adentrou as aldeias no bate-papo Cantos da floresta, com a educadora Berenice Almeida e o músico Gabriel Levy. Eles começaram pedindo que o público se levantasse e aquecesse o corpo com um canto Krenak. Relacionar voz, palma e pisada, para muitos, foi difícil e exigiu algumas tentativas. A intenção era justamente conectar a plateia com essa sonoridade tão distinta do que é consumido musicalmente em grande parte do Brasil, influenciado por um padrão cultural europeu. A educadora musical proporcionou uma sensibilização sonora. À medida que apertava o play no computador, pedia para que as pessoas dissessem as imagens e sensações que vinham à cabeça. Chocalho, aves voando, força, terra e fogueira, tudo coube na floresta que foi trazida à sala de cinema.

Sempre presentes no saguão, as crianças vieram para a sessão comKids, com as reações mais diversas para a seleção de filmes. Não faltaram dancinhas nas cadeiras para momentos alegres, choros para os momentos mais obscuros de “O Rapto” (José Luis Jiménez Díaz) e aplausos ao fim de cada filme. Entre um murmúrio e outro, uma menina pergunta à amiga, após assistir ao curta-metragem “Cassiopeia” (Paulina Urreta), obra mais introspectiva: “Mas, afinal, o que esse filme tem a ver com música?”, confusa. A outra lhe responde apenas: “É o silêncio”.

Mais tarde, houve a exibição de “Patrimônio imaterial número 82” (Emma Franz), sobre o baterista australiano Simon Barker em sua jornada por conhecer a música tradicional coreana. O músico encontra Kim Seok-Chul, um importante xamã que estava profundamente doente. O longa documental é permeado pela filosofia coreana, em que os xamãs-artistas se utilizam da música para trazer os espíritos antigos; em que essa linguagem artística se apresenta como uma forma de “comunicar a energia”, sendo energia sinônimo de ritmo. Assim são conhecidos, como xamãs-artistas, pois acreditam que “os músicos são uma ponte espiritual entre o Espírito Santo e as pessoas”.

Tudo isso está profundamente conectado à natureza. Para eles, o “yin” está presente no vale e o “yang”, na montanha. A cachoeira, então, seria o lugar onde esses dois elementos se encontram, um espaço de equilíbrio pleno, da “beleza rústica” da pedra, da água corrente. É onde muitos buscam essa conexão com os ensinamentos da Terra, da mudança, do caminho, do que chamam de “brilhantismo despertado”: “Você pode escolher ser um rio ou um lago”, diz uma voz, no filme, sobre as lições do refúgio no mundo natural.

Após essas reflexões de uma cultura tão distante geograficamente, um convite ao que está perto: Gustavo Gitti ofereceu a vivência TaKeTiNa, com ritmos tradicionais de diversas culturas, inclusive a coreana. O inventor desse método, o austríaco Reinhard Flatischler, aprendeu seus princípios com Kim Seok-Chul, o xamã do filme “Patrimônio imaterial número 82” . Todos, então, se juntaram no saguão do cinema, em uma roda, entoando sons em um mesmo ritmo, uma mesma sintonia. “Boa parte do nosso sofrimento vem da desconexão”, abriu Gustavo Gitti, chamando as pessoas a buscarem essa cura por ritmos arquetípicos, inclusive brasileiros, para trabalhar corpo e mente. A vivência de vinte minutos foi intensa, mas apenas uma amostra do método que costuma durar horas – e que já havia sido experienciada por alguns na oficina que Gitti ofereceu durante os dias da Ciranda.

Tony Berchmanns também encantou o público na exibição do clássico “O Garoto” (Charles Chaplin). Enquanto o filme passava, reproduzido em um projetor cinematográfico analógico 35mm, o pianista improvisava sua trilha sonora ao vivo. Em uma masterclass oferecida um pouco antes, contou algumas de suas técnicas: “A minha partitura é o filme, estou em intenso diálogo com ele”. Por isso, tem um “vocabulário de temas” em sua cabeça, o qual acessa quando está em uma sessão de Cinepiano. Mostrou diferentes variações de harmonia, ritmo, melodia e sonoridades que podem atribuir outros sentidos a uma trilha sonora, mais alegre ou mais triste, mais calma ou mais agitada. Tudo isso como uma construção de clichês que foram construídos durante a história da música. “Meu foco é tentar trazer o que a narrativa quer construir”, disse Berchmanns, aplaudido de pé.

A noite do sábado não findava ali. Marcelo Machado, cineasta consagrado que se especializou em filmes ligados ao tema musical, trouxe também a público histórias de bastidores de seu documentário lançado em 2012,  “Tropicália” – as entrevistas com artistas que participaram desse movimento cultural, pesquisa e montagem do longa, que foi exibido na mostra. Entre as curiosidades, o fato de que o filme foi pensado inicialmente de forma muito diferente. Seria a história de um artista estrangeiro que vem ao Brasil conhecer o tropicalismo, mas temeu que esse personagem externo “eclipsasse” as verdadeiras estrelas do filme, os brasileiros.

Decidiu, então, começar com a pesquisa, um trabalho de garimpo que durou dois anos. Pressionado pela produtora, colocou todo o material em uma linha do tempo e percebeu que já era suficiente. Começou as entrevistas com artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé, sempre em uma “caverna da memória”, espaço escuro e com uma grande tela que organizava especialmente para isso. Lá, mostrava a seus entrevistados “partituras”, trechos de vídeos da época não tão conhecidos, com dez a quinze minutos de duração.

Foi inevitável comparar aquele tempo com o presente, mesmo com diferenças bem marcadas. Isso veio nas perguntas do público, em que o diretor reconheceu as semelhanças. “Por mais que dialogue com o tempo atual, o grande mérito do filme é trazer a memória.” Sobre política, assunto que permeia todo o longa, resumiu: “Quando os tempos são de convulsão, os músicos são antenas como todo artista. Eles [os tropicalistas] viveram seu tempo com grande intensidade”.

Então já era domingo, dia de exibição do filme “Mantra – Sounds into silence”, em que um dos personagens do documentário começa definindo tal prática: man (“mente”), tra (“transcender”). O longa de Georgia Wyss traz o tempo todo essa busca pela calmaria interna, pelo desligamento do excesso de informações que nos cerca, pela liberdade. Sugere caminhos para desviar-se do “kali yuga”, o “tempo das máquinas”, e dedicar mais tempo a nós mesmos. São diferentes perspectivas mostradas no filme, diversas “comunidades sonoras”, incluindo a de presidiários que também estão nessa empreitada de desenvolvimento da espiritualidade e têm contato com o kirtan, um tipo de mantra. Afinal, a espiritualidade permite que qualquer um, de qualquer crença, envolva-se em tais práticas. “Espiritualidade é sobre sabedoria, e não sobre poder.”

Terminada a exibição do filme, fomos convidados a uma rica vivência com Fátima Caldas, do Instituto de Gestalt de Vanguarda Claudio Naranjo. Foi uma experiência de imersão para acessar nossa interioridade por meio da música. Bach, Mozart, Beethoven: suas composições conduziram uma meditação guiada, de acolhimento de si. A proposta era adentrar em diferentes tipos de amor, experimentar estados interiores, tudo por meio da música. Deixar que ela “fale através de você”. “Não importa a cultura, não importa a linguagem musical, precisamos de um lugar que a música acessa com facilidade […], que sempre clama por contato.”

Também fomos marcados por um documentário essencialmente musical que, sem falas ou diálogos, conta a história de migração dos ciganos, do noroeste da Índia à Espanha, trazendo tradições culturais e questões políticas ligadas ao povo. Assim é “Latcho drom” (Tony Gatlif), um dos últimos filmes exibidos na Ciranda de Filmes, seguido por uma conversa com o professor de mitologia Marcos Ferreira-Santos. Ele comparou o modo de vida das populações ciganos ao dos povos afros e indígenas. “Não são sociedades-museu, são sociedades vivas”, lembrou o educador, ao citar semelhanças como a vida em comunidade, a relação intrínseca com a natureza, a tradição oral e uma outra concepção de infância.

“Mais do que aprender a falar, aprendemos a ouvir”, diz, sobre uma “poética da escuta” exercitada pelos povos mencionados. Nessas comunidades, a saúde pessoal corresponde à saúde comunitária. “O ser humano não é essencialmente bom ou essencialmente mau. Ele é doente.” E o que é melhor do que a música para curá-lo? Afinal, “a nossa pátria é a música, a dança e a língua”, conclui.

Após tantas experiências transformadoras, chegou a hora da despedida da 5ª Ciranda de Filmes. O encerramento foi anunciado por uma grande mestra da música, que ressoa até hoje na nossa tradição popular: a fluminense Clementina de Jesus retratada em documentário de Ana Rieper. Considerada o “elo perdido” entre a cultura brasileira e suas raízes africanas, marcou o Brasil e o mundo com sua voz e suas composições, além do extenso repertório de canções africanas.

Era o fim? Ao sair da sala de cinema, ainda movidas pelas histórias e rimas da sambista, as pessoas se depararam com os brincantes do bumba-meu-boi comandados pelo mestre maranhense Tião Carvalho, com a participação do Grupo Cupuaçu. Todos entraram na roda e brincaram junto ao Pai Francisco e à Mãe Catirina, sem poder faltar, é claro, o boi e seus giros que tanto encantaram as crianças. A brincadeira foi tão intensa que transbordou para a rua, em plena Augusta, com os tambores ressoando em meio às buzinas dos carros e ônibus, abastecendo a cidade “de poesia, beleza e coragem”, assim como nos contou a professora Shirley Maria de Oliveira, que disse frequentar a Ciranda como quem “adentra um portal, um lugar de encantamento, encontro e afetos”.

Texto: Gabriela Romeu, Luísa Cortés e Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas

Fotos: Samuel Macedo

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Olhares Olhares 2019

De meninos e bois encantados

Desbravador desde sempre, filho do meio de uma família de sete irmãos, as janelas do artista Tião Carvalho se abrem rapidamente em imensas paisagens e profundas sonoridades quando é convidado a falar da infância, tempo marcado pelas imagens potentes da figura altiva da mãe, do povo a trabalhar no roçado, do balanço das fitas coloridas do chapéu do pai, da avó festeira a botar a Festa do Divino nas ruas. Do rio, das águas da lagoa, dos peixes. Da chuva. Do som dos carros de bois. Dos bois, muitos deles. “Os bois sempre foram muito encantados para nós”, diz o mestre de capoeira, também ator, cantor, músico e dançarino, ao se lembrar desse tempo de menino em Cururupu, município do litoral maranhense quase na divisa com o Pará, num Nordeste de ares amazônicos.

Situada em uma rota de antigos quilombos, que passa por Guimarães e Frechal, a cidade que tem hoje pouco mais de 30 mil habitantes carrega um histórico de resistência da população negra, berço de muitas culturas. Tal aspecto revela as raízes e marcas da ancestralidade do artista, fundador do Grupo Cupuaçu, em 1986, e responsável por trazer as festividades e sonoridades populares para São Paulo, onde é convidado especial a encerrar a Ciranda de Filmes 2019.

Curioso em saber o que existia para além da linha do horizonte, o filho de Floriana, Dona Florzinha, e Feliciano, Seu Pepe, não sofreu quando, aos oito anos, deixou a roceira Cururupu e foi morar com a tia materna, Edite (ou Didi), em São Luís. Ao contrário da família de seu pai, no entanto, que há duas gerações já participava e brincava com o boi nas celebrações da comunidade, sua tia Didi não tinha proximidade com essas tradições. Assim, o menino passou uma fase entre a infância e a adolescência um tanto afastado dessas manifestações populares. O encantamento do boi, no menino, ficou um tanto adormecido. Por pouco tempo.

Com mais ou menos 15 anos, o jovem das peladas de futebol conheceu o capoeirista Anselmo Barnabé Rodrigues, o Mestre Sapo, um “segundo pai”. Naquela idade foi decisivo ter a figura de um mestre, um dos primeiros, e ter entrado nesse universo da capoeira permitiu que aos poucos fortalecesse novamente a relação com suas raízes, que, no seu eu mais profundo, sempre estiveram presentes. Outros mestres viriam depois: Marciano, Tabaco, Chicotinha, Papativa, além do músico Arlindo Pipiu e do mestre da dança Klauss Vianna, entre diversos outros.

Nesses encontros com o passado, o multiartista relembra uma história que sua mãe sempre conta. Quando pequeno, ele e seu irmão mais velho imaginavam lugares para conhecer quando crescessem. Tião falava: “Eu vou para capoeira grande maior”. Dona Florzinha testava o filho perguntando se o lugar realmente existia. O menino admitia que não. É que nas brincadeiras de criança cabem outros mundos. Inclusive aqueles que ainda podem ser imaginados e explorados. Assim, já crescido, foi criando novos universos nas artes das ruas, nas rodas de capoeira, no teatro das esquinas, nas festividades populares, como os bois brincantes espalhados pelo bairro Madre de Deus, localizado na capital maranhense.

Aos 24 anos, em uma viagem a Ouro Preto (MG) com seu grupo de teatro, o Laborarte, conheceu o diretor argentino Ilo Krugli, comandante da trupe do lendário Teatro Ventoforte. Terminado o festival teatral nas terras das Gerais, retornou o artista ao Maranhão. Pouco tempo depois, então, recebeu uma carta do diretor do Ventoforte o convidando a participar de um circuito de apresentações nos Estados Unidos. Ficaram 40 dias por lá e, depois, ao chegarem de volta ao Brasil, emendaram um segundo festival, dessa vez, pela Europa. A “capoeira grande maior” do menino já era o mundo e, assim, decidiu se acomodar em São Paulo, mais especificamente, no Morro do Querosene, zona oeste, onde mora até hoje.

Nessas andanças de menino desbravador, Tião nunca deixou de trabalhar com aquilo de que mais gosta, a arte. Fundador do Grupo Cupuaçu, promove festas do bumba-meu-boi no Morro do Querosene e, assim, sempre em diálogo com suas raízes e sua gente, disseminou o brinquedo de sua Cururupu em São Paulo. Deu um pouco de cor ao cinza. É nesse território que o artista trabalha, no terreno do improvável, do surpreendente, onde cabem capoeiras grandes e maiores. “Quero de uma certa forma ocupar um espaço vazio, não quero fazer o que todo mundo está fazendo. Quero fazer diferente”, comenta. E, na junção de artes que permeiam sua vida, qualifica a música como o abre-alas, aquela que desobstrui os caminhos, vai na frente. Gênero musical do boi que também encantou São Paulo.

Texto: Gabriela Romeu e Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas

Fotos: Raquel Catão