Categorias
Olhares Olhares 2016

O tempo e a natureza como mestres da infância

A imersão foi total. Nessa fria manhã de São Paulo, a sala 1 do Espaço Itaú de Cinema Augusta esteve lotada por gente querendo ver, entender e sentir um pouco da experiência vivenciada por Suzanne Crocker e sua família. A canadense decidiu, com seu marido, deixar a vida na cidade – e seus confortos – e passar um período numa região inóspita e gelada no Território de Yukon com os três filhos. Chegaram a pegar – 51oC.

Lá, na cabana que construíram e onde passaram nove meses, não tinham eletricidade, água corrente, acesso para estradas e nem vizinhos.

“Todo o Tempo do Mundo” conta essa história, registrada pela própria protagonista-mãe- diretora – presente na sessão. Para quem tem reclamado da temperatura na capital paulista nos últimos dias, as cenas repletas de gelo, muita roupa, rio e galhos congelados estampadas na telona podem ter causado frio na espinha. Mas as relações entre os cinco membros da família, o afeto entre eles, a forte relação com a natureza, a criatividade das crianças em ocupar seus tempos livres certamente aqueceram a sala de cinema.

Suzanne queria ter uma outra perspectiva, criar uma nova relação com os filhos – com 10, 8 e 4 anos na época. Sentia, em alguns momentos, que estavam se separando. Surgiu então a ideia da viagem – bem anterior à decisão de registrar o dia a dia deles (e originar esse documentário). E agora, mesmo que cinco anos tenham se passado, ela conta que “sente tristeza todas as vezes que vê o filme: a tristeza de sair do mato”.

Foi a relação com a natureza – com seus ciclos e nuances – e a proximidade entre os pais e seus filhos que gerou tanta riqueza. Foi lá que Suzanne sentiu uma “grande alteração da mentalidade” ao dizer muito mais “sim” aos filhos que os habituais e preventivos “não”. Uma das crianças menciona “aquela grande cama familiar” como um dos momentos mais especiais da experiência. Em outro momento, ouvimos também vindo das pequenas: “não, não estou pronta para deixar o mato”.

Na conversa que se seguiu à exibição, a mãe / diretora reforça a questão do tempo e sua percepção. No documentário, ela pontua: “foi incrível o que aconteceu sem relógios: quando se retira essa estrutura do tempo, ficamos no presente”. Atualmente vivendo no Canadá em sua cidade de origem – com seus 1500 habitantes – Suzanne diz que não usa relógio de pulso, não tem celular e o computador necessário para o trabalho é trancado no armário quando não está sendo usado.

Para ela, é fundamental estar integralmente no momento presente. Seus filhos não têm tela à disposição – em nenhum formato – garante que não sentem falta e sabem usufruir de seus tempos livres. Suzanne defende que as crianças precisam de tempo e espaço; que com esses elementos, as brincadeiras surgem, a criatividade brota e as experiências acontecem naturalmente.

Gandhy Piorski, pesquisador da infância, presente no bate-papo, relembra uma fala de Ailton Krenak, líder indígena que esteve na primeira Roda de Conversa da Ciranda. Diz que “a natureza é mesmo como uma mãe rigorosa”. E ele elogia a coragem de Suzanne e seu marido em levar os filhos para um lugar gélido, isolado com o risco de se pegar a “febre da cabana” (referência a algo como o delírio, provocado por temperaturas muito baixas). “Poucas mães têm a coragem de mostrar, de fato, a severidade das coisas”.

Piorski enfatiza também a “busca de um propósito” vivida por aquela família. E destaca a importância das experiências: “As crianças precisam desse grau de inteireza”. Menciona como exemplo, o fato de todas elas manusearem instrumentos reais, como machados e brinca sugerindo que, se fossem de plástico, soaria “falso” porque não repercutiria no corpo.

Texto: Regina Cintra

Categorias
Olhares Olhares 2015

Mutum: o profundo do Sertão e da Infância

A infância sertaneja e sua profunda ligação com a natureza. De um diálogo com a obra “Campo Geral” de Guimarães Rosa e inspirado no personagem Miguilim, o filme Mutum“, da diretora Sandra Kogut é um dos destaques da programação da Ciranda.
Este é o primeiro filme de ficção da diretora. Antes disso ela realizou diversos documentários. Da delicada sensibilidade e olhar entre a ficção e a vida real, Sandra criou Mutum“. Conversamos com a diretora, que compartilhou com a gente seu profundo interesse pelas pessoas e pelo mundo que elas carregam.
Ciranda: Conte um pouco pra gente sobre seu interesse pelas pessoas, sua identidade, na conexão entre elas além dos limites sociais e das relações do homem comum e do sujeito-personagem. Como essas coisas permeiam o seu trabalho?
Sandra Kogut: Talvez seja o único motivo pelo qual eu faço filmes: meu interesse pelas pessoas, o mundo que elas carregam. Quando faço um filme, preciso sentir o que cada personagem sente, ir com eles aos lugares emocionais que eles vão, só assim consigo dirigi-los. Só assim sei o que fazer, para onde ir. Sempre penso que para fazer um filme eu preciso me sentir em casa. Mas me sentir em casa emocionalmente, entender o que cada personagem sente naquela hora. O resto é decorrência. Por isso achei que podia fazer um filme no sertão, apesar de ser uma pessoa urbana, distante daquele mundo. Eu sabia muito bem o que esse menino sentia. Sabia o que cada um ali sentia.
Ciranda: O documentário tem a escuta como parte penetrante no roteiro; o que o outro fala modifica as intenções de um filme. Conte um pouco pra gente o que seu repertório de documentarista, de se colocar, sensível, à disposição da história do outro, proporcionou ao “Mutum”.
Sandra: Primeiro teve a maneira de chegar no filme. A pesquisa, as viagens, a escolha do elenco – tudo isso foi um longo processo, onde eu ia confrontando a história do livro e do roteiro com um lugar, as pessoas que moravam ali, as relações entre elas. Como se estivesse buscando quem pudesse dar vida aquela história pela sua própria história de vida. Sempre chego nos lugares através das pessoas, o rosto pra mim é a melhor paisagem. Em seguida veio o trabalho com os “atores”. Nunca digo a eles o que fazer, e menos ainda porque faze-lo, mas tento criar neles a necessidade daquela cena, daquelas palavras. Isso se parece muito com o meu trabalho nos documentários.
Quando preciso que alguém diga algo num filme, tento criar a necessidade de dizer aquilo naquela pessoa, senão eu sei que vai ficar ruim, vai ficar falso. Se eu digo a um ator que ele precisa chorar, estou entregando o problema pra ele. Não trabalho assim. Crio uma situação que vai provocar aquela emoção nele. Nos documentários é a mesma coisa. Crio situações que vão levar as pessoas a dizerem e falarem certas coisas. Pego o problema para mim, em vez de entrega-lo à eles. Considero que isso é trabalho do diretor.
Ciranda: Você comenta sobre a visão romantizada do sertão e sobre o esforço que fez para que os elementos de Mutum permanecesse na vida de verdade, como ela é. Gostaria de fazer um paralelo com a visão romantizada da infância, que sempre tenta “abster” e “proteger” a criança dos dramas e conflitos da vida real. Na construção do roteiro, e no diálogo com Guimarães, que infância é esta que está em “Mutum”?
Sandra: Nunca tive uma visão romantizada da infância, apesar de saber que ela é o que há de mais clichê, mais comum. Pra mim a infância é uma época sombria da vida, na qual é difícil entender e aceitar as regras, que sempre parecem injustas. O seu pai dá gargalhadas com um amigo comentando uma batida de carro, e te deixa de castigo porque você derramou um copo de leite. Sei lá, coisas desse tipo. As crianças precisam de autorização para tudo, dependem dos adultos para tudo, e muitas vezes se sentem incompreendidas, sem saber o que fazer com aquele mundo interior gigantesco que elas carregam e ninguém entende. O mundo dos adultos é inaccessível, misterioso, e ameaçador. A infância é fisicamente apertada, cabe num quarto. Fora daqueles limites tudo é abstrato. A miopia de Thiago é a materialização mais bacana disso tudo. Na infância temos uma visão aguda do que está perto, ao alcance da mão, e nebulosa dos mistérios que cercam o nosso pequeno mundo.
Ciranda: Como a relação entre a natureza e Thiago  (protagonista) foi importante para compor a história do filme? Qual a importância dessa relação e seus potenciais poéticos em “Mutum”?
Sandra: A natureza do filme representa o mundo interno dos personagens, materializa seus medos, seus fantasmas, seus sonhos. Me interesso pela paisagem mental. A natureza no Mutum é assim: concreta, dura, real, e ao mesmo tempo totalmente mental. A natureza não é uma paisagem a ser contemplada, é um espaço de experiência, de muito trabalho, de luta pela existência (não só física mas também moral, e psicológica). Não tem nada a ver com a natureza cartão-postal. Não existem paisagens espetaculares no filme, nada é grandioso. Achei importante que a natureza permanecesse na escala humana. Porque a medida de tudo é sempre as pessoas, e como elas se relacionam com essa natureza.
Saiba mais sobre o filme aqui.
 
Veja no site do filme a linda entrevista feita por Franck Gargarz.
Categorias
Olhares Olhares 2015

A busca de Lila

“Ciências Naturais” é precioso filme do diretor argentino Matías Lucchesi. O filme trata a crise existencial de uma pré-adolescente que não tem qualquer informação sobre seu pai, exceto alguns detalhes que são suficientes para que Lila se aventure na busca deste que nunca chegou a conhecer.
Lila tem doze anos. Sua determinação e personalidade – apresentadas em várias tonalidades na tela – mostram uma pequena crescendo, se conhecendo e amadurecendo diante de sua situação, e diante dos nossos olhos. Nos tornamos testemunhas de seu crescimento. Ela toma decisões e segue o caminho que vai alimentando sua curiosidade e seu movimento.
Com grande interpretação da pequena atriz Paula Hertzog, esse personagem representa uma etapa da vida inquietante que implica na manifestação de muitas incertezas, conclusões e segredos. Nesse caso, a menina é certeira e direta para expressar seus desejos, exigir seus direitos, questionar certas atitudes dos adultos e exigir respostas às suas perguntas que vão desde a investigação sobre um nome, uma cidade até uma data. Nesses casos, a discrição não é uma característica de seu comportamento. Lila é autêntica e fiel às suas convicções.
Ela estuda, tem companheiros de escola em meio a um lugar hostil, frio, silencioso. Sem dúvida entendemos suas razões por causa disso, ao mesmo tempo que não é suficiente para saber quem é ela.  Nos tornamos cúmplices de sua jornada para entender suas origens e o seu mundo interior. Lila não luta contra o que sente; sua angústia é evidente frente a falta de respostas de sua mãe e o desinteresse sobre o que acontece na escola. Cada palavra e cada ação são manifestações de seus anseios para conseguir seu objetivo.
Logo nos primeiros vinte minutos do filme fica evidente que a menina não vai parar até conseguir o que quer. Quando ela consegue um aliado, sua atitude muda, volta a ser mais doce e infantil. É sua professora quem encara a situação e a ajuda sem tentar convencê-la de que está equivocada, ou de que sua intenção de conhecer seu pai é um erro. Ela a acompanha e, de algum modo, a deixa ser. Por isso não intervém nas conversas que Lila consegue ter com as pessoas durante sua aventura e vontade de ver e conhecer seu progenitor. Deixa que a menina conduza cada situação a seu modo. A menina de doze anos não tem nada. Ou melhor, não tem nada a perder ao tentar contatar seu pai.
Esteticamente a película estabelece um diálogo com o espectador do começo ao fim. A escolha de planos, dos diálogos, da luz, do design de som, dos cenários, das interpretações compõem um relato hamornioso com economia de recursos e com uma delicadeza extrema. O diretor escolheu compor uma narrativa de poucos personagens e pouco diálogo. Sem dúvida, cada um deles e cada frase dita são importantes para a leitura do filme.
Ainda mais importante é a apresentação de um conflito que acontece de maneira recorrente em nossa sociedade, e a potente construção dessa personagem que está crescendo e faz o que faz pela força do seu desejo e não para cumprir com uma exigência social.
 
Mais informações sobre o filme aqui.
Categorias
Olhares Olhares 2015

Inícios e tonalidades infantis

Sobre o  “Na idade da Inocência”, Dir.: François Truffaut. Filme participante da Ciranda 2015.

Um clássico de cinema tem a força de sua atemporalidade, marca uma época, a história inteira do cinema, e a história de várias gerações. François Truffaut fez parte de uma geração de cineastas e críticos franceses que colaboraram para, entre outras coisas, a consolidação da ideia do cinema de autor.

De forma recorrente, Truffaut fez uma série de inserções biográficas em seus filmes, como alguém que mistura sua vida à das personagens, na intenção de articular sentidos para si e compartilhá-los com os demais, como o próprio exercício do viver. Em todas as entrevistas concebidas,  ele sempre falou isso com muita naturalidade, identificando e abrindo sua história pessoal em meio as explanações sobre seus filmes e sobre o cinema de um modo geral.

O filme “Na idade da inocência” é uma dessas interações com uma forte declaração sobre a infância, seu desejo de autonomia e sua necessidade de ternura. Entre personagens criados, colhidos e descobertos em Thiers, uma pequeno município no Puy-de-Dôme, na França (onde foi gravado o filme), está a representação da força irreversível da vida e dos seus ritos de passagem, das descobertas e manifestos em favor da emancipação das situações dadas,  o amadurecimento precoce, etc. Todas as fases da infância são representadas, desde a sua espera, a primeira infância, os anos posteriores até os 12 anos de idade.

A infância e a adolescência se identificam com a vida como iniciação. A infância como início, nascimento e alumbramento. O filme vai fazendo descobertas e nos apresentando as realidades da vida infantil, seus traços de absurdo e tudo aquilo que a infância dilata e torna único. Na relação entre ficção e realidade, há conexões com a lógica e a construção de significados infantis.

Truffaut escolheu trabalhar com situações mais flexíveis que permitissem com que as crianças – oriundas dessa cidade – interagissem com as intenções do filme e inserissem, sem artificialismos, sua participação ao filme. Ele optou por não fazer das crianças arautos de uma história criada por ele; as crianças improvisavam – eram elas mesmas, a todo momento. O roteiro indicava apontamentos e objetivos das cenas e, muitas vezes, as falas dos adultos eram como “sementes” da espontaneidade infantil. Assim, nos aproximamos de um mosaico de tonalidades de ser criança, cada uma delas, ao seu modo, se encontra  à diversidade do ambiente escolar.

Os adultos não criam oposição às crianças. Na maioria das vezes, eles são colocados como fracos, algumas vezes como inválidos, outras vezes como prejudicados por alguma situação da vida. Eles não são colocados como pessoas ruins. Por sua vez, o professor é aquele que consegue fazer a mediação com as crianças. Mais do que isso, é aquele que quer estar perto delas.

A cidade se sensibiliza com a história de abandono e maus-tratos do personagem Julien. As crianças estão às vésperas das férias de verão e da finalização daquele ano escolar, uma passagem se enuncia. O professor faz dela um ritual para o crescimento e o amadurecimento, um conselho. Uma relação gente-com-gente, em favor dos direitos da infância, da sua produção de sentidos, significados da vida e de sua felicidade. Ele convida as crianças a acessar a vida, identificar as formas de poder do adulto sobre a infância, identificar o poder que perpassa suas subjetividades infantis na forma de vida e de direitos que devem ser permanentemente reivindicados.  O educador como iluminador de potências.

O professor estimula as crianças como seres políticos que intervêm, eles próprios, em suas realidades, munidas de seus direitos e da sua vibração de vida. Uma ode à infância como estado de início e emancipação.

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

Categorias
Olhares Olhares 2015

Visibilidade, afetos e desenvolvimento

Dentro de nossa estrutura social, a família sempre foi considerada uma das mais fortes instituições devido a sua representatividade de poder e influência. Por outro lado, em uma perspectiva psicológica, a família tem um papel fundamental no desenvolvimento infantil, baseado em seu apoio à construção de fortes estruturas emocionais e afetivas que irão determinar o desenvolvimento individual e social da criança por toda sua vida. Articulando a tradição institucional da família, a sua importância e a diversidade de realidades da vida contemporânea, temos várias condições e composições familiares que nos distanciam de modelos e normatizações e, por isso, nos indica a necessidade de olhar e estudar com atenção e sensibilidade.

 

A primeira Roda de Conversa da Ciranda 2015 reuniu Susan Andrews, Rosely Sayão e Ada Pellegrini para discutir, cada uma a seu modo, diversas dimensões familiares, sua relação com a espiritualidade, com a neurociência e a psicologia.

 

A família, seja qual composição tiver, oferece a criação das primeiras relações, vínculos e conexões fortes entre as pessoas. Essas conexões têm a ver com as trocas que elas realizam, com a raiz de seu desenvolvimento emocional e da ideia de si mesmo. Essas trocas são conhecidas como “trocas positivas”, que são aqueles atos entre um casal, a família, os filhos, os amigos; pequenas ou grandes comunidades nas quais estamos inseridos. Esse intercâmbio alimenta relações saudáveis que afastam o que conhecemos como ameaças ao desenvolvimento de alguém.

Uma ação negativa (maltrato físico, verbal, abusos repetitivos, etc.) tem graves consequências no desenvolvimento de uma pessoa. Não é uma tarefa fácil reverter os danos causados por esses tipos de feitos, embora tenham ações positivas que ajudam a restituir o bem-estar psicológico e um ambiente agradável.

 

E as crianças que vivem em situações familiares que não proporcionam essas trocas positivas? Do ponto de vista do desenvolvimento psicológico e social, como poderíamos considerar as outras situações, pessoas e influências que proporcionam o desenvolvimento infantil e o intercâmbio positivo? Vários filmes da programação da Ciranda foram citados, durante a Roda de conversa, enriquecendo essas reflexões. Tiveram destaque os longas; Sam” de Elena Hazanov, e “A Indomável Sonhadora” de Benh Zeitlin, e os curtas; “A Menina Espantalho” de Cássio Pereira dos Santos, “A Panelinha de Anatole” de Eric Montchaud e “A Conquista do Espaço” de Chico Deniz.

 

Há alguns tipos de situações em que a infância é tratada como um estado de invisibilidade. A família proporciona essa visibilidade, pertencimento e afeto tão necessários para vida. O trabalho dedicado às crianças tem também um papel importante para acabar com essa invisibilidade; os adultos têm uma importância fundamental na visibilidade das crianças.

 

É importante termos em conta o que significa a “superação dos limites” impostos por uma situação. Fundamentalmente, a família tem uma importância muito significativa, seja nas trocas positivas ou nas negativas; seja no desenvolvimento afetuoso e sereno, seja na necessidade de superação de uma situação dada. Adiante, quando a criança cresce, a família é superada para que ela possa assumir a sua própria vida. 

Roda de conversa: Famílias (2015)

Com Susan Andrews, Rosely Sayão e Ada Pellegrini

Moderação: Patrícia Durães


Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de filmes 

Categorias
Olhares Olhares 2017

O pão no centro da transformação

O pão é um alimento que passa por uma das mais incríveis jornadas de transformação. Que mágica acontece para que um pequeno grão de trigo vire uma bela massa de casca crocante, insuflada de complexos aromas e sabores?
Quando essa misteriosa transmutação acontece, algo também muda em quem faz o pão. “Existe algo de encantador em misturar a farinha e a água até eles virarem algo diferente. Isso mexe com a gente, desperta a nossa curiosidade e nos dá um outro olhar sobre a natureza da vida”, conta a padeira artesanal Vania Carvalho, fundadora do Quintal da Aurélia, em São Paulo, e que, durante a 4a Ciranda de Filmes, dará oficinas para quem literalmente quer colocar a mão a massa. 
Começamos a sentir essa transformação na ponta dos nossos dedos. Afinal, o pão só cresce se colocarmos a mão na massa, misturando bem a farinha e a água. É o que vemos as mulheres fazendo, ajoelhadas no chão, sovando e dobrando longamente a massa do pane carasau, um pão achatado típico da Sardenha, na Itália, no documentário “Il Pane dei Pastore” (1962).
Nesse ritual comunitário, elas permanecem em silêncio, devotando atenção total ao pão. Já os alunos de Vania são bem conversadeiros. “É interessante como esse fazer junto cria um senso de comunidade. As pessoas compartilham histórias, redescobrem sentimentos e, assim, algumas delas conseguem, por exemplo, superar um momento ruim.”
Depois de tanta sova, chega a hora de deixar o fermento agir sobre o trigo, sem pressa. A espera exige paciência, pois a massa ganha vida a seu tempo, sem seguir o nosso relógio, que tudo quer apressar. Quem se aventura no universo da longa fermentação aprende a controlar a ansiedade, pois um pão desses pode levar até 36 horas para ficar pronto. E não adianta apressar o processo, senão a massa cresce menos do que deveria e o pão desanda de vez.
A longa espera é uma oportunidade para desenvolvermos os sentidos e a intuição, essenciais para saber quando a massa está no ponto para ir ao forno, já que não existe uma fórmula pronta. O padeiro Nicolas Supior, por exemplo, usa as palmas das mãos para sentir, levemente, a consistência da massa que cresce em um grande tacho de madeira na cozinha onde ele prepara seus pães artesanais, no interior da França, como mostra o documentário “La Passion du Pain” (2007). Pelo tato, ele percebe se a massa está firme e aerada a contento. Enquanto isso, nada de mexer com ela. “A intervenção deve ser a mínima possível, e sempre no bom momento”, ele ensina, antes de moldar pequenas bolas que repousarão em cestos de vime até completar a fermentação.
A experiência de observar a fermentação nos mostra que até os micróbios têm seu lado bom. Para Vania, acompanhar esse processo é bastante educativo para as crianças, pois muda sua visão sobre os micro-organismos que tanto combatemos no dia a dia. Sai o nojo, entra a admiração pelo fermento que vai fazer a massa inflar até virar pão.
Ao convocar as crianças para por a mão na massa, transformamos também a sua relação com a comida e com a comunidade. De volta à Sardenha, enquanto as mulheres sentam em círculo para modelar os discos do pane carasau, meninos e meninas se ajeitam fora da roda e ganham um pedaço menor de massa para praticar também – segundo o narrador, é assim que aprendem a importância do brincar e do trabalhar. “Com as mãos, a gente transmite amor para o pão. Elas sentem que esse alimento não vai nutrir só o seu corpo, mas também seus afetos e tomam gosto por cozinhar”, explica Vania. “Quem não faz sua comida passa a vida toda na mão da indústria.”
O jornalista norte-americano Michael Pollan, autor do livro “Cozinhar – A Arte da Transformação”, concorda. Para ele, fermentar pães, compotas e iogurtes em casa é uma forma de protestar contra a homogeneização imposta pela indústria alimentícia. Quem cria sua receita, portanto, descobre novos e complexos sabores e, assim, torna-se independente de uma lógica econômica na qual somos consumidores passivos de produtos padronizados.
Mas a nossa transformação não termina quando o pão sai do forno. Para começar tudo outra vez, não dá para esquecer de alimentar o fermento natural, ou levain, avisa o francês Supior, mostrando a pequena tigela com a massa onde crescerão os novos micro-organismos que darão vida a um novo pão. Todo dia é preciso renovar a mistura de água e farinha, senão a colônia de micróbios se consome e morre. Fica aí a última lição: a disciplina e a serenidade para flertar, todo dia, com o frágil limite entre a exuberância e a podridão.
Texto: Bruna Fontes
Foto: Quintal da Aurélia
Categorias
Olhares Olhares 2020

Meu primeiro cinema: uma conversa com Alemberg Quindins

Por Mayara Penina

Você se lembra da primeira vez que foi ao cinema? Alemberg Quindins, fundador da Fundação Cultural da Casa Grande, contou sua relação com a arte desde criança.

“Meu nome é Alemberg Quindins, eu nasci no Cariri, uma região entre Pernambuco, Paraíba, Piauí e o Ceará, ao sul da Chapada do Araripe. Um território que chamamos de Cariri porque existia um povo chamado Cariri”, assim se apresenta Francisco Alemberg Quindins, produtor cultural, multiartista e fundador da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem do Kariri. Nesta conversa com a Ciranda Cirandinha de Filmes, ele compartilhou sua história com a sétima arte, como a primeira vez em que viu um filme nas telonas e como criou seu próprio cinema em sua cidade, aos nove anos. 


Foi com uma vizinha em Nova Olinda (CE), contadora de lendas e histórias, que Alemberg aprendeu a imaginar. “Ela era descendente de Cariri e me levava pra casa dela, ou melhor, eu ia até a casa dela porque eu gostava de ir lá. Ela pegava uma estatueta de madeira e começava a contar a história do povo Cariri”, relembra. Ali, Alemberg tinha certeza que conseguia ver o que a vizinha contava. Para ele, o cinema começou aí: por meio de “uma boca falando e uma língua imaginando”. Desde aquela época, o menino Alemberg Quindins aprendeu a sonhar.

De Nova Olinda, se mudou com o pai e o irmão em busca de outro chão e foi parar em Miranorte (TO), entre o rio Tocantins e o rio Araguaia. No novo endereço, a família conheceu o Cine Bandeirante, onde iam aos fins de semana. Ir ao cinema era um evento importante, que exigia uma preparação: “Meu pai botava música na vitrola enquanto a gente ficava tomando banho. A trilha ia tocando enquanto as crianças da cidade iam tomar banho”.

Foi no Cine Bandeirantes, em 1974, a primeira vez que Alemberg passou pela experiência mágica de estar numa sala escura cheia de imaginação. E tudo parecia realmente mágico: “o dinheiro do pai pra gente comprar um suspiro, que era docinho e que derretia na boca, a banquinha que a família botava pra vender bombom, a fila pra entrar com ingresso, uma parede onde tinha uns cartazes, aqueles posterzinhos promocionais mostrando cenas do filme que você via antecipadamente, as cortinas vermelhas com as franjas bordadas, as luzes ao lado e duas placas vermelhas assim dizendo ‘Não Fume’ e ‘Silêncio’. Aquilo era o cinema!”.

“O primeiro filme que assisti foi em 3D”

Naquele dia, o filme exibido no Cine Bandeirantes, visto por Alemberg foi “Sansão e Dalila” com Victor Mature, Angela Lansbury e Hedy Lamarr, um clássico do cinema hollywoodiano. “Quando abriu a cortina e começou aquela imagem rodando, eu me transportei para dentro do cinema. O primeiro filme que eu assisti foi em 3D. Por que eu digo que foi em 3D? Porque quando muito mais pra frente apareceu o cinema 3D, eu constatei isso e digo: foi isso que eu vi! E nunca mais parei de sonhar!”.

Desde aquele dia, o encantamento não acabou, nem a vontade do Alemberg Quindins de descobrir o audiovisual mais e mais. Depois de um tempo, ele passou a ver os filmes de um jeito diferente. Enquanto os meninos olhavam pra tela, Alemberg via de costas. Ele queria entender como funcionava aquela mágica e de onde saía o jato de cor. Passou a investigar com os olhos de análise que só uma criança tem. “Eu comecei a observar que era um jato de luz que saía forte, que passava por uma tirinha de fotografia. No jato de luz, eu via aqueles fragmentos de poeira. Era como se fossem aqueles pontos de poeira que levassem a imagem daquela fita para tela. E também tinha o som. Ele ficava por de trás de uma cortina, a cortina não fechava toda porque fechava só pra descobrir a tela. Quando abriu aquilo ali, pra mim abriu o mágico, o portal do encantado. Eu disse pra mim mesmo: “Eu vou fazer cinema!”.

Meu próprio cinema, o cineminha do Beg

Foi ainda com nove anos que começaram os estudos autônomos de Alemberg em busca do sonho de ter o próprio cinema. Em casa, foram realizados vários testes com materiais diversos. Plástico, durex, desenhos de cenas em pincel, lanterna, e ainda não estava dando certo. Até que um dia, à noite, com o lampião aceso, percebeu sua imagem refletida na parede de frente para o objeto. “Eu me vi bem grande como se fosse a minha grande sombra. E aí eu vi que, quando eu mexia no lampião, a minha imagem se mexia sem mexer. Quando eu me aproximava da parede, eu diminuía. Quando eu me distanciava da parede e me aproximava do lampião, eu ficava maior. Aí eu disse: “É o cinema!”.

Foi numa caixa de madeira, com personagens, falas e trilha sonora criada por ele,  que nasceu o Cineminha do Beg. Muitos clássicos foram exibidos lá, como “Sansão e Dalila”, “O Ouro de Mackenna” e “O Dólar Furado”. As crianças vibravam! “Eu fico pensando hoje como era que eu prendia a meninada durante uma sessão de cinema todo”, relembra.

“Eu sempre quis ter um quarto de brinquedos quando era criança, esse quarto de brinquedos é a ‘Casa Grande’. Eu criei uma instituição em que as crianças são  gerentes, são diretores, é toda gerida por crianças. Isso foi o cinema que me deu. Essa é minha história”.


Clique aqui para conhecer melhor a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri. Veja também este papo em que Alemberg Quindins conta mais histórias do seu cineminha

Categorias
Olhares Olhares 2020

A escuta da Ciranda Cirandinha

por Luciana Ferreira Tavares, psicóloga e psicopedagoga, atua como psicóloga escolar e terapeuta colaboradora do Instituto Gestalt de Vanguarda Cláudio Naranjo

“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias.” Eduardo Galeano

Como uma grande espectadora escutei as narrativas das crianças e adolescentes na mostra Ciranda Cirandinha de Filmes, uma iniciativa da Ciranda de filmes. Adentrei na proposta um pouco com o pé atrás de como seria conduzir essa roda de conversa de forma virtual e, para minha surpresa, foi lindo de se ver e de ouvir.

Afinal, criança é criança, adolescente é adolescente e cinema é sempre cinema. E com a mesma vivacidade, leveza, autenticidade, as trocas aconteceram, com direito a tudo o que envolve quando estamos imersos no universo do cinema e da infância.

Na primeira roda de conversa, com crianças até 6 anos, o curta escolhido foi Mitos indígenas em travessia. Apresentamos a temática e passamos o curta, solicitamos para as crianças fazerem um desenho do que mais chamou a atenção e abrimos espaço para a fala. Um espaço aberto, fenomenológico e sem roteiros.

Da narrativa das crianças, a forma como cada uma interagiu com as imagens e a história foi mágico: dos animais gigantes, do menino que virou peixe, as crianças disseram quais animais escolheriam ser: onça, peixe, tartaruga, gato, dragão entre tantos outros possíveis. Um imaginário a céu aberto, que contempla o mundo com olhos de infância. A cada fala, adentrávamos um pouco na visão de mundo de cada criança, das construções que estão tecendo em relação a vida, ao que escutam e ao que elaboram: do menino que queria ser peixe veio a crítica de como o ser humano não cuida da natureza, do tanto de plástico que jogam nos oceanos e de como as tartarugas estão morrendo. E do descontentamento, um manifesto foi sendo construído: Não joguem plástico nos rios, nós somos os oceanos! Os adultos, ou melhor dizendo, eu, fiquei tocada com a sabedoria das crianças e suas infinitas possibilidade de vir a ser já sendo, simplesmente crianças.

Desenho de Vinicius Matheus

No curta Dona Cristina perdeu a memória, fiquei sem palavras e uma lágrima escorreu imperceptivelmente na minha face. O curta por si só já é profundo e lindo, somado a narrativa trazida pelo grupo de adolescentes foi de uma poética avassaladora. Iniciaram suas narrativas timidamente, falando da memória e da saudade dos avós que já partiram, para adentrar a reflexões profundas sobre perdas, dores, cicatrizes e das superações que contribuíram para o que eles são hoje. Falaram das suas histórias de vida, dos fatos marcantes e das cicatrizes que são relíquias da memória. Os adolescentes foram tocados pela narrativa do curta e abriram suas memórias afetivas e nos presentearam como quem confia um tesouro a alguém. Guardei cada pérola recebida na minha memória, como uma relíquia, assim como Dona Cristina fez com suas histórias de vida. Fizemos do espaço da cirandinha uma grande roda da memória, com alegrias e tristezas, relembrando o que nos atravessa e nos transforma.

No terceiro curta, Viagem na chuva, mesmo que com um grupo menor de adolescentes, foi de uma riqueza cultural costurada com os sonhos das jovens. De imediato, a adolescente faz uma releitura do curta relacionando com um outro com uma riqueza de detalhes que me fez calar e ouvir. E ao falar do que o curta tocou, adentramos no campo dos sonhos que sonhamos e dos processos que acontecem neste universo interior que mora na cabeça de cada um de nós. Falar de sonhos sonhados e de sonhos desejados transcende qualquer discurso racional e promove a conversa para outro patamar imagético: da jornada do herói para a jornada do eu, falando do que cada uma sonhava para a vida. É sempre uma novidade onde as narrativas podem caminhar, não dá para prever aonde que vamos chegar, o final tem infinitas possibilidades de ser e a jornada é a grande delícia de vivenciar.

Agradecida pelo convite e pela jornada vivida, me sinto inspirada e nutrida pelo encontro entre as narrativas costuradas pelo eu, cinema e imaginário.

Categorias
Olhares Olhares 2020

A escuta-cura: curadores, curadorinhos, curandeirinhos

por Ataliba Benaim, gestalt-terapeuta, roteirista, documentarista e colaborador da Ciranda de Filmes

Como seria uma mostra de filmes curada pelo olhar das crianças? A indagação surgiu lá atrás, quando eu e minha comadre Fernanda Heinz (idealizadora e realizadora da Ciranda de Filmes, junto com Patricia Durães) nos encantamos pela obra de Javier Naranjo, poeta e mestre colombiano que se dedica a investigar e estimular a filosofia nata e sem filtros das crianças da escola onde é professor.

Entre outras publicações, Javier organizou a pérola literária “Casa das Estrelas”, na qual compilou afirmações espontâneas, poéticas e filosóficas de seus alunos (entre 4 e 12 anos) sobre os mais diversos temas.

Empolgadas com a ideia de construir esta edição da Mostra em parceria com as crianças, Fernanda e Patricia me convidaram para elaborar dinâmicas em que adolescentes e crianças pudessem testar algumas obras da programação antes de seu início oficial. E que, sobretudo, fossem estimulados a expressar as correlações entre os filmes e suas vidas.

Honrado com o desafio, propus que a ação (batizada de “Escuta Cirandinha”) fosse a terceira parceria entre a Ciranda de Filmes e o Instituto Gestalt de Vanguarda Cláudio Naranjo, que vem ampliando sua atuação em atendimentos sociais com adultos, adolescentes e crianças. Com isso, recebi de presente o reforço mais que especial da Luciana Tavares, que além de psicóloga especializada em terapia com crianças e adolescentes, é também uma das gestalt-terapeutas do Instituto, assim como eu.

Juntos e com a ajuda indispensável de educadores e responsáveis, propusemos às crianças e aos adolescentes três dinâmicas riquíssimas, cada uma com uma turma de idades, cidades e regiões diferentes do país. Nelas, todxs soltaram o verbo e a imaginação. (Conto mais detalhes dessas “Escutas” abaixo).

Tenho certeza que plantamos sementes que poderão ser germinadas em outras experimentações nos próximos anos.  Assim, seguimos praticando o exercício de escuta atenta às crianças, para podermos nos reconectar com a sabedoria perdida e avançar para o começo.

Cito e disponibilizo aqui outra experiência que fiz, também inspirada pela admiração que tenho no trabalho de Javier Naranjo: o curta metragem “Pequenos Filósofos, Grandes Verdades” –

1.ª Escuta_Criança e natureza, um pleonasmo evidente.

Já imaginou o que o realismo fantástico das lendas indígenas brasileiras podem nos ensinar sobre como nos relacionamos com a natureza?  Como toda mitologia que se desdobra no tempo, cabem nessas histórias toda a sorte de interpretações e analogias, que poderiam resultar em publicações interessantes e cabeçudas.

Mas e se a gente substituir antropólogos, indigenistas e mitólogos por crianças de 4 a 6 anos? Imagine. Sim, as subjetividade dos pequenos sobre essas lendas as fazem ainda mais instigantes e amplas.

Foi o que fizemos nesse primeiro encontro da “Escuta Cirandinha”, pautados pela deliciosa tarefa de ouvir os mais novos curadores, reunidos pela Maria de Lourdes Gomes da Silva, coordenadora do CEI Agostinho Pattaro de Campinas, SP

Diante da síntese infantil , meu vício pela elaboração racional é confrontado de forma aguda e sou convidado a lembrar que a intelectualização deveria exercer um papel coadjuvante se eu quiser viver e sentir mais a vida do que tentar entendê-la. 

Joaquim, Sol, Helena, Elisa, Felipe, Sophi, Bárbara, Maria Luisa e Giovana assistiram atentas as três primeiras histórias da animação “Mitos Indígenas em travessia” : “EMA – do  Kadiweu, o Menino-Peixe, do povo Kuikuru e As Mulheres Sem Rosto, do povo Javaé, todos da região centro-oeste do Brasil.

O resultado dessa prosa foi um caleidoscópio hipnotizante que me deixou num vazio fértil onde só brotou a convicção de que, se quero me reconectar verdadeiramente com a natureza, preciso avançar para o começo.

*Mitos indígenas em travessia

Animação, Brasil, 2019, 22 min. Dir. Julia Vellutini, Wesley Rodrigues

2a Escuta_Dona Cristina perdeu a memória e nós ganhamos esperança.

O segundo filme posto à prova dos olhares atentos dos pequenos curadores foi um curta-metragem que tem nada menos que Jorge Furtado como um de seus roteiristas.

“Dona Cristina Perdeu a memória” foi assistido e debatido pela turma de 12 a 14 anos da professora Neimara Ramos Américo dos Santos, da Escola Estadual Ivens Vieira, da cidade de Angatuba-SP.

A síntese entre complexidade e simplicidade que o roteiro do filme propõe, foi captada em cheio pela Corina, Luana, Mariana, Vinicius, Karolina, Tiago, Vinicius Matheus e Bruno Henrique, que teceram várias observações sobre a história de amizade entre uma senhora com Alzheimer e um garoto curioso de 8 anos.

O curta da Casa de Cinema de Porto Alegre joga com a construção e a perda de memória, com o começo e o final da vida e sugere como esse espelhamento entre infância velhice pode se refletir em símbolos que nos questionam em qual fase da vida estamos e o que estamos fazendo desta fase.

Me marcou bastante quando, por exemplo, Vinicius percebeu-se equilibrando alegria e tristeza ao mesmo tempo durante o filme e esta experiência o conectou com histórias de superação pelas quais passou em sua breve vida de 13 anos. Pra mim, foi um recado de como sentimentos contraditórios são férteis se pudermos aceitar o diálogo entre eles.

*Dona Cristina Perdeu a Memória.

Drama, Brasil, 2002, 13 min. Dir. Ana Luiza Azevedo

3a Escuta_Viagens oníricas com meninas do Cariri.

O terceiro encontro da “Escuta Cirandinha” foi uma viagem com as meninas Ana Letícia e Ana Luísa, da Fundação Casa Grande, do Cariri, Ceará. A viagem-filme-conversa, organizada com a ajuda do educador Aécio Diniz, me fez lembrar que a psicodelia é inata e pode ser acessada gratuitamente, todos os dias.

Assistimos juntos ao curta de animação “Viagem na Chuva”, que conta a história de um menino, ou de um velho que vê a passagem da chuva ou de um circo. Que está feliz ou triste, que morre ou renasce, que sou eu ou você. Ou não.

Nessa dinâmica fiquei encantado com as falas reflexivas dessas meninas de 15 e 11 anos, que me mostraram que entendem muito mais de sonhos do que eu, que sou terapeuta e muitas vezes faço deles ferramentas do meu trabalho.

Talvez porque sonhos não sejam mesmo de “entender”, pelo menos da forma como me acostumei a significar (ou limitar) este verbo. Sonhos são muito mais de se deixar viver do que de se esforçar para entender.

Passamos um terço da vida neste estado onírico que nos arrebata todas as noites em um viver de emoções fortes, gostosas ou assustadoras, com pouca lógica e muita criatividade.   Quem tem a sorte de lembrar dos sonhos e reproduzi-los, tem à disposição um professor que ensina a ampliar a consciência transcender as possibilidades do viver.

Agradeço pela experiência de escutar essas meninas como se eu estivesse escutando uma outra parte de mim mesmo. De fato escutei.

*Viagem na Chuva

Animação, Brasil, 2014, 12 min. Dir. Wesley Rodrigues

Categorias
Olhares Olhares 2020

Veoveo: é preciso aumentar nosso repertório

por Renato Nery e Vicky Romano, fundadores da Veoveo

Ludo tinha 4 anos quando viu pela primeira vez a Patrulha Canina. Depois de alguns meses quase enlouquecemos! A música de abertura insistia e quando menos esperávamos surgia em looping em nossas cabeças. Naquele momento, em 2017, ficou claro que, no meio de tantos brinquedos, livretos para colorir e todos os produtos transmídia lançados, que a série era um chiclete com grande poder de persuasão. O fascínio estético induzia a hipnose, a trama flat com sua confortante e controlada modulação baseada em causa e efeito criava uma sensação de que não existia conflito. Aqueles personagens fofos e estereotipados escondiam uma estrutura hierárquica velha que reforçava junto com o combo padrões de preconceito que não queríamos!

Pela primeira vez ficamos incomodados com todo aquele desejo. Afinal, até então foram alguns anos dedicados aos conteúdos para crianças. E agora com a audiência ali, bem pertinho, tínhamos que desenvolver todo tipo de estratégia para resgatá-lo daquele poço sem fim. A ironia era que quase 80% dos temas da série se referiam a algum tipo de resgate e para resgatá-lo começamos a buscar e catalogar conteúdos diferentes, alternativos, uma luta contra o algoritmo da rede que insistia em não mostrá-los. Aquela internet dos anos 90 já não existia mais, toda aquela promessa de acesso livre tinha sido subvertida pelo hábito e exploração econômica. Tudo está automatizado. O algoritmo reforça apenas o padrão. Este discurso “smart”, na verdade, esconde um usuário pouco inteligente. Então, se o seu filho sabe mexer em um sistema de navegação intuitiva, num smartphone, não significa que ele esteja desenvolvendo o cérebro, significa que ele está funcionando dentro do padrão, sendo condicionado a não pensar. Foi justamente pensando  numa alternativa a isso que começamos a desenhar Veoveo

O primeiro passo foi observar e comparar. Em nossa infância tinha o que tinha, no tempo que tinha. Hoje temos muito do mesmo, em grandes quantidades, em qualquer momento, e de qualquer jeito. A escassez de antes exigia momentos de compartilhamento e espera. Duas qualidade importantes para serem desenvolvidas numa criança, a generosidade e a paciência. Sem paciência e acostumados ao mundo do seu jeito, dizer não ganhou peso. Muitos adultos, querendo evitar o conflito e silenciar a infância delegam a missão de educar a uma tela. Só que a tela não educa, a tela forma, ou informa, cria os contornos, que não são percebidos pelo indivíduo como contorno ou a impressão de conhecimento, o recheio. Portanto, a tela não cria o conjunto de experiência que o mundo real e as relações criam, que uma educação viva e dialética cria.

Dizer não virou um desafio, principalmente para os adultos que cada vez mais distantes dos universos das crianças e dos conteúdos infantis não conseguem oferecer o diferente. Mas, como diria o alto executivo daquele famoso canal – “ as crianças são exigentes e sabem o que querem, por isso elas gostam do meu canal”. Sim! Elas querem chocolate, e é missão dos pais, mães e adultos minimamente atentos ofertarem o diferente. Não é à toa que estamos vivendo um tempo de fome e obesidade.

Com isso, desenvolver o olhar é preciso, conhecer minimamente a linguagem parece ser o caminho para perder o medo de se aventurar em acervos e conteúdos não navegados. Perceber que o conceito de qualidade não pode ficar preso ao ultra realismo dos 3Ds ou aos movimentos frenéticos e gags bem construídas dos cartoons. Para resgatar as crianças das mesmices é preciso aumentar nosso repertório e a capacidade de reconhecer e perceber as muitas maneiras de se contar histórias.

Arrisque-se! As crianças gostam do que os pais gostam, se você descobriu um conteúdo diferente e sente prazer ao assisti-lo a criança irá perceber e sentirá também.

A indústria do audiovisual, como qualquer indústria corre atrás da fórmula do sucesso e encontrou nos sistemas da internet um perigoso aliado. O mapeamento dos hábitos e a constatação do consumo automático aprofunda a oferta de conteúdos preocupados apenas em atender expectativas. O resultado é o que estamos vendo, conteúdos ordinários, e um sistema viciado que nivela a criação por baixo. Conseguimos algum respiro garimpando conteúdos fora das grande plataformas de streaming, dos grandes circuitos de salas de cinema, ou dos grandes canais. Em Veoveo buscamos por criadores que expressam em seus conteúdos seus anseios, inquietudes e sua visão de mundo. Não são muitos, mas os poucos que persistem fazem toda a diferença e irão enriquecer o olhar das nossas crianças.

Por último, a chave não é o radicalismo e criar a criança numa bolha de conteúdos “cabeça”.  Os conteúdos de sucesso criam um código e a sensação de pertencimento típico da comunicação de massa. A chave é assistir juntos, ritualizar, tornar o ato de assistir uma experiência de surpresa, encantamento e conversa.

Esperamos que desfrutem de Veoveo, nós adoramos todos os filmes que estão aqui.