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Olhares Olhares 2019

O cinema nunca foi mudo

“Quando as `terminações nervosas` do músculo-música e da epiderme-imagem se conectam, pode-se ver uma nova criança multimídia surgir no mundo, começando a respirar (…). Esse feliz casamento entre imagem e música é um exemplo fascinante de quando o todo é alguma coisa muito maior que a soma das partes.”

Assim o compositor sueco Johnny Wingstedt, artista pesquisador da narrativas musicais, define a imbricada ligação da música a outros meios narrativos. Esse é também o tema de Tony Berchmans, compositor, pesquisador e produtor musical, que há tempos estuda como composições sonoras e conjuntos de imagens se mesclam no trilhar da história no cinema e estará na Ciranda de Filmes 2019! Na mostra, o pianista ministrará a oficina A música do filme e também brindará a plateia com uma sessão do Cinepiano,  projeto no qual improvisa a trilha sonora musical ao vivo durante a exibição de uma obra, utilizando temas de sua autoria e excertos de música folclórica ou clássica, sempre em diálogo com as narrativas da telona.

Grande apreciador do gênero música para cinema, ainda criança, aos 7 anos de idade, ele começou seus estudos musicais; aos 21, passou a trabalhar com composição e produção de música para imagem; aos 36, lançou o livro A música do filme – Tudo o que você gostaria de saber sobre a música de cinema; e aos 41, criou o projeto Cinepiano, com o qual realizou mais de 140 apresentações em lugares diversos, incluindo diferentes públicos e variados temas. “Considero este meu projeto do coração. Além de tentar trazer uma experiência única para o espectador, também busco ilustrar de modo mais claro o poder narrativo da música.”

A música num filme acompanha movimentos, provoca emoções, determina contextos históricos e geográficos e cria suspenses. No cinema, “a princípio, a música é funcional, aplicada, programática, descritiva, narrativa. Em geral, as composições musicais estão ‘a serviço’ do filme e são reunidas pelo conceito da funcionalidade”. E completa, citando o maestro e compositor italiano Ennio Morricone: “Quando componho música para um filme, trata-se de uma obra minha, mas ela está a serviço da obra de um outro autor, o diretor”. Tal abordagem é o que caracteriza a composição para cinema como algo particular: “O músico que compõe para cinema por vezes é considerado um dramaturgo musical, e sua música pode ser considerada um elemento conarrador do filme”.

A música sempre existiu no cinema, diz o artista. Até no período do chamado “cinema mudo”, o cinema não era silencioso, já que frequentemente as exibições recebiam algum acompanhamento sonoro. Com a participação de um pianista solo e até de grandes orquestras sinfônicas, a música estava presente, o que transformava a experiência de se ver um filme numa imersão audiovisual singular, única. Com o surgimento dos primeiros filmes projetados com som (sendo O cantor de jazz, de 1927, um dos marcos dessa leva da sétima arte), imaginou-se um cenário em que a música ao vivo não seria mais necessária para criar climas e contextos emocionais, já que ela rapidamente deu lugar à gravação ótica do som no mesmo suporte físico do filme – a trilha de som ao lado dos fotogramas da película, o que deu origem ao tão famoso termo “trilha sonora”.

O cinema assumiu as melodias e seus potenciais sugestivos para enriquecer suas narrativas. E se vale desse uso até os dias de hoje, mesclando os recursos tecnológicos com a música ao vivo, que permitem a criação de trilhas sonoras extremamente complexas, ricas e diversas: projetos como o Cinepiano, a captação de sons da natureza, naipes tradicionais de uma orquestra, instrumentos étnicos ou paisagens sonoras criadas por potentes softwares e geradores eletrônicos de sons. “Espere um minuto, espere um minuto, você ainda não ouviu nada”, escutamos na cena de O cantor de jazz, considerada a primeira frase falada do cinema. Era só um aviso para o que se sucederia nessa arte.

Segundo o artista, no entanto, a música é o elemento mais subestimado do complexo conjunto da construção audiovisual. “Apesar da unânime e pregada importância da música na narrativa fílmica, os mecanismos que lhe conferem essa importância são frequentemente misteriosos até para profissionais reconhecidos da área. A música original composta para os filmes é um dos aspectos menos discutidos da linguagem cinematográfica e daí vem meu fascínio pelo aprofundamento nesse estudo tão carente”, defende o compositor.

Ao considerar que o olhar é um sentido que se sobressai num primeiro momento de apreciação de uma obra, precisamos então treinar nossos ouvidos para uma escuta mais consciente dos sons no cinema. Para isso, Berchmans busca desmistificar no público a magia da música no cinema, trazendo conceitos e informações que façam as pessoas apreciar os filmes com outros ouvidos. Ele explica como notar que determinada música influencia sua interpretação em relação a uma específica construção audiovisual, desencadeando uma reflexão produtiva.

E logo sugere: “Ao ver uma cena, tente identificar qual a responsabilidade da música em relação à emoção que a cena transmite. Hoje, com tanta tecnologia, além de aplicativos e streaming, não é difícil testar pequenas mudanças sonoras para identificar o poder da música. A brincadeira de se mudar a música de uma cena conhecida é habitual e ilustra como ela é de fato uma poderosa ferramenta”. Resta, então, na próxima ida à sala de cinema, ampliar a escuta para se permitir (de ouvidos abertos) desvendar as muitas nuances dessa sétima arte.

Texto: Carolina Tiemi/Estúdio Veredas

Fotos: Divulgação

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A menina que rege o Pelourinho

Uma Rocinha, em Salvador, acomoda-se como quintal do Pelourinho. A comunidade que serve de habitação para uma população que se equilibra na corda bamba para garantir a sobrevivência fica encostada num dos principais pontos turísticos da Bahia e recebeu esse nome justamente por trazer o aspecto de roça à cidade, com árvores frutíferas e chão de barro. É um ponto verde no conglomerado de casas do centro histórico; hoje, refúgio de muitos meninos e meninas percussionistas. De lá, escuta-se o som do mar, o som das árvores, o som dos bichos. É onde a cidade canta. Essa música, orgânica, sempre esteve presente na região, mas anos atrás faltava um projeto que tirasse as pessoas do papel de ouvintes e as incluíssem ativamente no fazer musical.

Foi nesse contexto geográfico, social e cultural que, aos sete anos de idade, uma menina chamada Elem Silva, idealizou um projeto de ensino musical e fundou em 2003 a banda de samba-reggae Meninos da Rocinha do Pelô. E sua trajetória pouco convencional, de como passou a comandar uma banda com tão pouca idade, inspirou outra jovem, a norte-americana Falani Afrika, à época com apenas 18 anos, instigada a produzir o documentário “Maestrina da Favela”, um dos destaques exibidos nas telonas da Ciranda de Filmes deste ano. Elem (ou Elisete, como consta na sua certidão de nascimento) tinha 13 anos quando ocorreu o primeiro contato entre elas. Desde então, as duas passaram a ter encontros anuais durante dez anos, período em que Falani registrou o crescimento de Elem e a evolução de seus processos.

O aprendizado da música, o compartilhamento desse saber com outros adolescentes, a relação da menina com a mãe e a maturidade que tinha para lidar com as adversidades são questões abordadas no filme, que também foca na importância do gênero do samba-reggae para a região, como importante afirmação da identidade afro-brasileira. Sendo Salvador a cidade com a maior população afrodescendente do mundo, o estilo musical relacionado ao candomblé, marcado pelo som de surdos, dobras, repiques e caixas, reforça, claro, a cultura local.

Quando bem pequena, Elem tentava reproduzir o som desse estilo musical já familiar com baldes que pegava de um comércio próximo de casa. Aos cinco anos, ganhou de duas freiras norte-americanas atentas ao talento da menina seu primeiro instrumentos: um pequeno atabaque. Outra grande incentivadora foi a mãe, que, dois anos antes de vir a falecer, usou o dinheiro que conseguiu com a venda de um bar que tinha na Rocinha para comprar para a banda da filha alguns instrumentos, usados até hoje. O episódio da morte da figura materna impactou as gravações do documentário. Era muito difícil conversar sobre um sonho sem ter sua maior apoiadora ao lado.

Numa trajetória cheia de batalhas cotidianas, outro ponto de virada sensível na vida de Elem ocorreu em 2007, quando, aos 13 anos, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral). Após uma série de suspeitas e exames, ela foi diagnosticada com uma doença rara. Em 2015, dois anos depois de seu segundo AVC, como consequência de uma embolização cerebral, outro desafio: teve perda de memória recente. Ao chegar ao Pelourinho depois de deixar o hospital, a jovem que conhecia sua comunidade como a palma da própria mão, de repente, não sabia mais identificar onde estava. Nas caminhadas, esqueceu os nomes das ruas e, na música, algumas batidas. Os meninos da banda, assim, ajudaram a maestrina a relembrar esses ritmos e retomar sua posição de regência.

Autodidata, ela foi com o tempo observando como os donos de bandas regiam seus grupos, analisando cada toque e gesto. E explica quais foram as suas intenções ao adentrar esse universo musical: “O que me impulsionou a sair tocando foi a vontade de ensinar às crianças da minha comunidade, pois elas estavam dentro do Pelourinho, mas eram esquecidas. Muitas pessoas tinham preconceito, até mesmo com a nossa banda, só por ser de uma favela”, diz Elem, sempre preocupada em aliar com maestria educação musical e desempenho escolar.

Os desafios de sua saga tão pessoal quanto vocacional vêm sendo recompensados. Depois da produção do documentário, novas oportunidades relacionadas à música começaram a surgir. Por causa de uma iniciativa da produtora do filme, recebeu a doação de mais 12 instrumentos da escola de música Global Music nos Estados Unidos e, em 2012, foi para Londres participar de um evento no SouthBank Centre para aprender como se organiza um festival. No ano seguinte, a sua banda realizou no Pelourinho um festival com duração de 12 horas, incluindo a participação de 10 jovens multiplicadores de arte, representantes de diferentes projetos.

Há dez anos, a Rocinha está fechada para a conclusão de um projeto de revitalização. Recuperar o contato com esse lugar que serviu de berço para sua musicalidade por enquanto não é mais possível. Apesar disso, mantendo firme seu olhar para no horizonte, os trabalhos com a banda continuam. O instrumental da música Asas de Luedji Luna que havia sido tocado durante depoimentos ao longo do filme, nos créditos, enfim, recebe o acabamento vocal. Em dois versos, deixa clara a potência de Elem: “Para que te quero, asas? / Se eu tenho ventania dentro”. Versos que bem definem uma menina que movimenta tempestades, maestrina.

Texto: Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas

Foto: Divulgação e acervo pessoal Elem Silva 

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Caçadores das vozes da natureza

Nas cidades, recebemos passivamente todos os sinais ao redor, compondo uma espécie de playlist caótica de sonoridades compostas por passos de transeuntes, buzinas de carros, freadas de ônibus, murmurinho do comércio. Já na natureza, uma melodia silenciosa tem cadência com o correr das águas, o cair das folhas, o som dos pássaros, compondo uma paisagem musical sem intervenção direta do homem. Para conviver nesses arranjos de muitas massas sonoras, nos meios urbano ou rural, é preciso, antes de tudo, saber ouvir as notas.

“Ao invés de ouvir um som, eu simplesmente ouço o lugar”, diz Gordon Hempton, um mestre cuja habilidade é uma arte que arrefece pouco a pouco: ouvir. Para o músico, protagonista do curta-metragem “Being Hear” (Palmer Morse, Matthew Mikkelsen; 2016), um dos destaques da Ciranda de Filmes 2019, a quietude permite que cada som receba sua importância original. Em busca de lugares livres de poluição sonora, encontrou na natureza o estado mais bruto dos sons, com conjuntos sonoros inumeráveis e multifacetados de um ambiente que se comunica de modo tão cheio e rico quanto nós humanos o fazemos.

O silêncio é o melhor conselheiro da alma. Numa narrativa subjetiva, em primeira pessoa, a voz de Gordon faz ecoar reflexões como essa, dirigidas a uma sociedade que vive em plena era da informação, repleta de ruídos, entre outros tantos excessos. Suas indagações tocam as falas constantes e matizadas da natureza, sempre ávida em comunicar, a alarmante extinção de lugares não afetados pela atividade humana e o modo como a quietude pode abrir nossos olhos (ou melhor, ouvidos) para renovadas percepções. Ao gravar sonoridades genuínas da natureza, seu interesse não é só o som ou o silêncio em si, mas o treino para se tornar um melhor ouvinte.

Outro caçador dessas vozes da natureza é o músico norte-americano Bernie Krause, reconhecido mestre da bioacústica (estudo dos sons de animais vivos) que, desde 1960, roda os rincões do planeta, por desertos, pântanos, mares e florestas, entre outros lugares com diminuta intervenção humana, para gravar as sonoridades de uma ampla diversidade de paisagens. Krause, que já fez som com lendas do showbiz como Bob Dylan, George Harrison e Stevie Wonder, coleciona há décadas uma biblioteca de sons abarcando mais de quatro mil horas de gravação e 15 mil espécies em seu habitat natural. E quantos estamos nós atentos a ouvir as muitas falas da flora e da fauna, para além das reverberações humanas?

Quando menino crescido em Detroit, o músico lembra que se deitava à noite ao som dos pássaros e dos ventos. De sua janela que se abria para uma ampla paisagem, ficava imaginando que mundos sonoros seriam aqueles distantes e desconhecidos. Mas, criado por pais que inacreditavelmente “odiavam” animais, proibidos dentro de casa, isso foi o máximo de aproximação que experienciou com o mundo natural na infância. Já a música chegou bem mais cedo em sua vida: ainda garoto, começou a estudar violino. Ao perceber que com tal instrumento na mão não atrairia a atenção das garotas, decidiu dedilhar o violão. Percorreu um longo caminho até chegar ao estudo da orquestra existente (para quem está aberto a ouvir) na natureza.

É essa música do mundo natural que ouvimos ecoar no curta-metragem documental Nature’s orchestra: sounds of our changing planet (Robert Hillman; 2016), em que o pesquisador ressalta a necessidade da humanidade se desconectar um pouco dos sons das cidades e das máquinas. Numa sociedade tão orientada pela visualidade, um tanto dispersiva, ele aponta que os sons da natureza nos conectam com que nós somos, com o nosso mais profundo interior, num verdadeiro chamado imersivo.

Ao gravar os sons naturais, ele explica, é possível interpretar muito rapidamente as consequências da atividade humana no planeta. Os cientistas e ambientalistas estudam geralmente o que veem – e não o que ouvem. E o que vemos é bem diferente do que ouvimos. Os habitats podem parecer o mesmo, mas dificilmente soam o mesmo, ele defende. Cada espécie sussurra algo único, singular. “Mesmo em uma floresta densa como a da Amazônia, se você cortar apenas algumas árvores ali, as consequências serão sentidas em grande escala pelos animais que ocupam esse lugar há muito tempo. Ou seja, um efeito profundo no som que será sentido muito rapidamente. Nós temos que pensar nas formas como estamos afetando esses lugares e perguntar a nós mesmos se é isso o que queremos, o silêncio do mundo natural”, diz o pesquisador em entrevista à revista Galileu.

No filme desse colecionador de sons naturais, muitos deles captados em terras brasileiras, em cantos da floresta amazônica ou da mata atlântica, escutamos de perto suas buscas numa expedição às paisagens inóspitas do ártico, nos arredores do Arctic National Wildlife Refuge, uma das últimas fronteiras do nosso planeta, onde é possível andar semanas em qualquer direção, norte ou sul, sem ouvir um som de carro na estrada ou o ruído do trinco enferrujado de uma porteira. Ao desembarcar lá com sua equipe, incluindo sonoplastas, naturalistas e poetas, no fim de primavera, quase verão, registra sons tão sutis e imperceptíveis quanto o derreter do gelo. É que “a música do mundo natural contém os segredos do amor de todas as coisas, especialmente de nossa humanidade”, conclui.

Texto: Carolina Tiemi e Gabriela Romeu/Estúdio Veredas

Fotos: Divulgação

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Olhares Olhares 2019

Eduardo Coutinho: canto no escuro

O cinema de Eduardo Coutinho (1933-2014) se constrói em dois tons: o de sua voz e o da voz de seu interlocutor. Assim, a partir de um emaranhado multivocal, um conjunto de poucas notas e acordes descomplicados concebe uma sinfonia. O falar e o ouvir, a voz e o ouvido, aos pares, comandando partes de uma narrativa que tem geralmente como foco as histórias banais de personagens comuns.

Assim como em “As Canções”, filme integrante da Ciranda de Filmes 2019, longa-metragem em que homens e mulheres anônimos contam e cantam músicas que marcaram suas vidas.

No filme, o penúltimo filme que dirigiu e o último que finalizou, três anos antes de sua morte, em 2011, o cineasta chega melodicamente a algumas histórias sobre amores, saudades e perdas, depois de uma pesquisa, uma escuta atenta e cuidadosa, envolvendo 237 homens e mulheres, com idades entre 22 e 82 anos, em diferentes localidades do Rio de Janeiro, do Largo da Carioca ao Leblon, do Arpoador ao Morro da Babilônia, da Feira de São Cristóvão a Ipanema.

O cenário, o mesmo já aproveitado em Jogo de cena (2007), o palco de um teatro, é pensado para criar uma outra atmosfera, evidenciando uma nova versão de Coutinho. Totalmente em preto, o plano de fundo dos depoimentos põe em destaque os entrevistados. Atrás das câmeras, o diretor se coloca mais participativo na narrativa. Nem tanto orientado a contestar a fala dos personagens, permite-se ser envolvido por aquelas palavras, por vezes cantaroladas. É como explica Fábio Andrade em O canto dos mortos – As canções de Eduardo Coutinho: “O Coutinho de As canções não mais acentua as lacunas no relato do entrevistado; ao contrário, ele se instala nelas […]”.

Como exemplo poderia ser citado o momento quando ele completa a música de Noel Rosa que a personagem Déa cantava e da qual esqueceu um trecho da letra. Ou, ainda, quando deixa escapar um canto baixinho de Fascinação junto com outra personagem, Maria Aparecida. Além delas, outros quinze protagonistas se apresentam no palco, onde compartilham histórias ligadas a grandes amores, relembram o remorso de palavras não ditas. Alguns só cantam, sem ter falas explicativas incluídas no corte do diretor. Outros, cantaram desde pequenos, cantam pela vida e cantam mais de uma canção.

Seus filmes dão abrigo para as histórias que são contadas e, desse modo, se expõem aos riscos de lidar com substância sensível, frágil, “palavras ditas por quem não costuma ser escutado”. “Ao criar um cinema tão dependente da invenção narrativa de outros, Coutinho abre mão de uma parcela da soberania que lhe pertence como autor. Ao confiar nos seus personagens, renuncia parte de sua autoridade”, comenta João Moreira Salles, no prefácio do livro O documentário de Eduardo Coutinho – televisão, cinema e vídeo, de Consuelo Lins.

As canções deixa claro a concepção de um projeto cinematográfico sempre em movimento. E trata de acrescentar camadas a sua personalidade de entrevistador, a de entrega e espontaneidade. Reforça a captura do agora. O filme, que tem por intenção contar memórias das pessoas relacionadas à música, transforma o recurso da entrevista, já conhecido pelo diretor, em “uma verdadeira celebração do encontro”, como evidencia Fábio Andrade. O presente é a matéria do registro e nele cabem celulares tocando no meio da gravação, choros inesperados e pausas para o pensamento.

Toda a composição de “As Canções” tem como objetivo direcionar a atenção para os personagens e o que eles dizem. A estética minimalista, a locação única, os enquadramentos estáticos. O diretor não aparece e sua voz é pontual. Em alguns momentos, como mencionado anteriormente, é carregado por suas emoções e interfere de maneira mais incisiva. Isso, no entanto, só reitera o poder dos discursos, capaz de retirar o entrevistador de sua posição de neutralidade. Os discursos orquestram o filme. Coutinho trabalha com a potência das falas e, ao contrário dos métodos televisivos de entrevista, valoriza e aproveita os silêncios.

Aí está a música de sua obra, composta por sons e pausas. A temática do filme, então, adquire ainda mais força por resgatar as histórias ligadas às canções e ao deixar os entrevistados sem palavras nem notas. A canção, que seria a representação de um momento, não abrange a experiência por completo, resta o silêncio. O documentário, como ele mesmo explica, gênero indefinido, traduz a incapacidade de definir sentimentos e a beleza disso.

No texto Um documentarista à procura de personagens, Cláudio Bezerra explica a mudança dos personagens apresentados por Coutinho do período em que ele trabalhou no Globo Repórter (1975-1984) para o que sucedeu Cabra marcado para morrer (1984). O que antes eram personagens atribuídos a papéis de herói e vítima, mais tarde, foram transformados em personagens contraditórios. A complexidade desses personagens e a estruturação de seus documentários na palavra gerada deram liberdade para que as pessoas atuassem em frente às câmeras. Daí, da exposição da natureza performática, a teatralidade se revela “como uma segunda natureza humana”. Uma dessas formas de performar, Bezerra descreve justamente como “performance musical”, predominante em “As Canções”, o recurso já havia sido explorado em outros filmes. Como Henrique, Nadir e Paulo Mata que cantam em Edifício Master; Fátima, Paulo Sérgio, Jorge e Luiz Carlos em Babilônia 2000.

A música, de uma forma ou de outra, sempre esteve presente nos filmes desse que é um dos mais emblemáticos cineastas brasileiros. Embora tenha elaborado um procedimento, ou um dispositivo, como costumava definir, que prezasse pela captura do som direto, sem adição de elementos sonoros na montagem, uma musicalidade marcante e genuína surgia de seus entrevistados. Era inerente à teatralidade deles. Nesse sentido, “As Canções” surge como uma espécie de homenagem a essa arte que dá tônus à existência humana. Talvez como forma de afirmar o que seus filmes nunca haviam dito tão claramente: a trilha sonora existe e ela importa.

Texto: Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas

Foto: Divulgação

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A galeria de sons de Hermeto Pascoal

Uma piscina de 100 litros de água, muitas abelhas, um tanto de sapos, uma chaleira, o ronco, o movimento peristáltico do intestino, algumas rezas, o chafurdar dos porcos, um copo de leite, o som do corrupio, um berrante, a bacia, uma bomba de ar e a própria barriga. Tudo vira instrumento musical nas mãos de Hermeto Pascoal, 82 anos de muitas sonoridades, um dos nossos mais inventivos instrumentistas, também compositor, artista alagoano, estrela do documentário “Hermeto Campeão” (Thomaz Farkas, 1981), parte da programação desta Ciranda de Filmes. Para esse inventor sonoro, que começou sua pesquisa musical na casa dos pais, “tocando para os pássaros”, em Lagoa da Canoa, sua cidade natal, a música está em todos os lugares.

Tanto que ele chega a compor quatro canções por dia. Suas inspirações surgem de todos os poros e, ao sinal de uma nova melodia, ele anota rapidamente onde for possível: um papel, a parede, um rolo de papel higiênico. Diz já ter composto mais de 10 mil delas. Esse exercício é tão natural ao “bruxo dos sons” que, em 2000, ele lançou pela editora Senac o Calendário do som, resultado de um ano em que compôs uma canção por dia, cada uma homenageando um de seus aniversariantes.

Que música é essa que fica “dando voltas” em sua cabeça? Nem mesmo ele sabe bem explicar. Chama de “música universal”: “Eu não me defino. Como eu vou definir a minha música? Eu sou. O que eu sou? É isso. Eu sei que sou. Eu não sei o que eu sou. Eu sei que sou. Eu não sei o nome da música. Eu sei que é música”, conta, em outro documentário do qual foi tema, Quebrando tudo (Rodrigo Hinrichsen, 2004). Mistura o baião de sua terra ao jazz estadunidense, ao zunir das abelhas e aos sons que sua boca faz quando encontra um copo com água. Sua produção frenética e intensa dispensa fronteiras, e sempre arrisca novos mundos.

“O Brasil não existe. Existe o mundo. A música, que eu chamo de música universal, é exatamente aquela música que não tem preconceito nenhum. Na mistura de uma coisa com a outra, aí é que vem o negócio”, já disse, em entrevista para o jornal Folha de S.Paulo. Essa fala acompanha a sua trajetória peculiar, desde a infância em Lagoa da Canoa, cidadezinha cravada no centro do estado alagoano, já cheia de rima no batismo, onde ganhou o seu primeiro acordeão e vivia tocando para as aves do quintal.

Desde então, viajou com o irmão para tocar em festas das cidades vizinhas, fez parceria com o sanfoneiro Sivuca, passou pelo Quarteto Novo, foi aos Estados Unidos, onde encontrou o jazzista Miles Davis, com quem compôs duas músicas (Little church (1970) e Nem um talvez (1971), do álbum Live-Evil, e a quem desafiou para uma luta de boxe. Levou, então, Asa branca ao Festival de Montreux numa performance histórica com Elis Regina. A cada passagem, novas sonoridades, instrumentos, experiências. Registramos numa galeria inventiva alguns dos muitos sons desse gigante instrumentista.

Sanfona

Antes de ser mencionado por seu mestre Sivuca como o “maior sanfoneiro do Agreste”, os dois músicos percorriam o Nordeste tocando em festas, casamentos, batizados: eram Sivuca e Sivuquinha. Já aos 19 anos, tocava o instrumento na Rádio Jornal do Commercio, de Pernambuco. Sua relação com a sanfona, nessa fase, foi fundamental para a sua consolidação como músico.

Natureza

Sim, Hermeto experimenta diferentes sons em diferentes ambientes. Talvez por isso seja tão interessante tocar flauta na lagoa, explorando as sonoridades do instrumento de acordo com a proximidade com a água. Faz lembrar a infância vivida em Lagoa da Canoa (AL), em que a natureza teve lugar importante no seu interesse pela música.

Piscina

Se em um palco não há como explorar os sons do lago, o artista dá um jeito: pede que lhe tragam uma piscina, dessas infláveis, e a lagoa de plástico vira logo objeto de experimentação. Batidas na água, espirros, mergulhos do berrante, tudo misturado com um lindo canto sobre Iemanjá, orixá conhecida como “mãe d`água”, ao melhor estilo Hermeto Pascoal.

Copo d`água

Gargarejar num copo d`água também pode dar em música. É uma brincadeira antiga, lá da infância do músico. Aqui, ele conta um pouco sobre esse costume de menino que virou parte de sua produção artística.

Porcos

O disco Slave mass, de Hermeto Pascoal, foi composto nos Estados Unidos e lançado em 1977. Até hoje impressiona por uma particularidade: para a gravação da faixa principal, homônima ao álbum, foram levados porcos ao estúdio. A bicharada ajudou a compor o som.

Sapos

Para fazer um som com os sapos, é preciso chegar a um entendimento. Entender quando é hora de tocar, quando é hora de calar. Não foi diferente para Hermeto, que teve essa experiência no documentário Hermeto, campeão, de 1981, dirigido por Thomaz Farkas. “Teve que ter uma preparação para eu dizer para eles: ‘Olha, eu cheguei’. Para depois eles dizerem para mim: ‘Olha, mas o dono da festa aqui sou eu. A lagoa é minha. Você está aqui, para você tocar, você tem que entrar na nossa’.”

Abelhas

Ainda sobre o documentário “Hermeto Campeão”, que será exibido na Ciranda de Filmes, também podemos conhecer o processo do músico alagoano ao tocar com as abelhas. “Eu toquei junto com elas, como se eu estivesse escrevendo um arranjo em cima do som das abelhas, e foi diferente, porque são tantas as abelhas que são vários timbres de uma vez só”, diz, no curta.

Voz

Em sua produção musical predominantemente instrumental, a voz tem uso nada convencional, de falas, sussurros, assobios, gargalhadas, tosses, rezas e até sons guturais, como explica o pesquisador Luiz Costa-Lima Neto (UNIRIO) no artigo “O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz“: “A quem interessa dividir arbitrariamente a música em duas metades, `vocal`, de um lado, e `instrumental` de outro? Folclórica, popular ou erudita? Brasileira ou internacional? Modal, tonal ou atonal? Para o compositor, multi-instrumentista e cantor Hermeto Pascoal, a música é uma só”.

Ronco

Não é novidade que o corpo é instrumento vital para o músico. Foi numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que ele inventou de roncar ao som de um dos nossos maiores clássicos, Asa branca.

Chaleira e brinquedos infantis

Não há limites para a música. Aqui, Hermeto improvisa tocando uma chaleira e um brinquedo infantil.

Bacia

Uma bacia também pode ser um bom instrumento de percussão – enquanto ela durar nas mãos de um músico que tem como lema “quebrando tudo”. (minutagem: 1:05)

Berrante

Para Hermeto, o berrante não serve apenas para chamar o gado, uso recorrente dos vaqueiros. Como é de praxe, ele reinventou o instrumento e ali toca tudo quanto é tipo de música (até o Hino Nacional), o que não deixa de causar espanto no público.

Corpo

Em 2012, o músico lançou um disco utilizando instrumentos musicais bem próximos de todos nós. Em Hermeto Pascoal de corpo e alma, ele criou canções com batimentos cardíacos, assobios, os movimentos peristálticos do intestino, a barba e até o som de sua válvula mitral, aquela que separa o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo do coração e que, segundo ele, diz claramente a palavra “Nelma”.

Bomba de ar

Até uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta ou bola de futebol, vira instrumento musical nas mãos de Hermeto Pascoal.

Instrumentos inventados

Hermeto, nada satisfeito com os instrumentos já criados pela humanidade, seguiu a vida inventando os seus. Nas mãos do multi-instrumentista, um pedaço de metal ou qualquer tubo pode se transformar em objeto de criação artística.

Texto: Luísa Cortés/Estúdio Veredas

Foto: Gabriel Quintão/site www.hermetopascoal.com.br

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Olhares Olhares 2016

Quando o cinema vai à escola

A data era junho do ano 2000. Na França, o Ministro da Educação Jack Lang decidiu reunir uma série de consultores para um projeto cultural, denominado Mission. Queria trazer educação artística e ação cultural às escolas de seu país. Um desses convidados foi o cineasta, crítico de cinema e professor universitário Alain Bergala, que garantiu a ressonância da iniciativa pelo mundo, mesmo que a experiência francesa se mostrasse, anos depois, inacabada.

Nas escolas, o cineasta europeu sempre buscou desviar o foco de uma leitura analítica e crítica dos filmes. Acreditava que seria mais proveitoso o que chama de leitura criativa, “que coloque o espectador no lugar do autor; que o leve a acompanhar, em sua imaginação, as emoções de todo o processo criativo, suas escolhas e incertezas.” É o que explica a pesquisadora Adriana Fresquet ao comentar o trabalho de Bergala. Ela teve uma experiência semelhante com escolas públicas do Rio de Janeiro.

Com a consultoria do cineasta francês, coordenou a ação que criaria escolas de cinema em seis instituições públicas do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2013. Tudo isso como parte de seu estudo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde leciona na Faculdade de Educação e coordena o projeto de pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na Educação Básica e o Programa de Extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Reuniu suas impressões no livro Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e fora da escola.

A obra traz levantamentos sobre o lugar do cinema na escola. Um dos pontos levantados é o da potência artística de despertar a imaginação, plano essencial à infância. Cita Vygotsky ao assumir a esfera imaginativa não como  um “divertimento caprichoso do cérebro”, mas sim “uma função vitalmente necessária”, já que não parte apenas de nossos acervos mnemônicos, relativos às memórias, mas também é capaz de sonhar e projetar um futuro. O cinema traria, então, o que ela chama de uma transformação contínua da realidade. Desta vez citando Migliorin, relembra que “o que talvez o cinema tenha para ensinar seja a sua essencial ignorância sobre o mundo, ponto exato em que criação e pensamento se conectam”.

Além disso, a imaginação dá lugar à alteridade. A uma criança que nunca esteve na Amazônia ou até no antigo Egito, o conhecimento de outras realidades pode “alargar as possibilidades do conhecimento”. Isso porque a arte faz pensar, sim, mas também faz sentir. Vale-se de afetos, sensações; nos faz intuir, adivinhar, suspeitar. Parte na contramão do chamado conhecimento formal para nos apresentar o conhecimento sensível. “Trata-se de um conhecimento que, como as imagens do cinema, fica tensionado entre a crença e a dúvida, pelo que nos oculta e revela de seu processo”, explica em seu livro.

Esse tipo de conhecimento valoriza a experiência (em alemão, erfahrung), aquilo que “se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (viajar em alemão éfahren)”. Vai além da vivência do conhecimento formal (erlebnis), a “impressão forte que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”, relação cada vez mais presente entre as crianças e as velozes imagens às quais têm acesso.

Escolher um jeito de ensinar em detrimento de outro é, por fim, um ato político, como percebeu a documentarista Anita Leandro. “E se a longa história da relação entre cinema e pedagogia não passasse de uma feliz coincidência de pontos de vista, ou seja, uma confluência de posições políticas na escolha do lugar a partir do qual se constrói uma imagem do mundo?”, questiona. “As dimensões éticas e estéticas desse processo ficam inseparáveis, e desse modo, viram uma questão de educação, particularmente da escola, que, como o cinema, precisa lidar com os problemas de organização do espaço, da relação com o tempo e do questionamento do poder discursivo”.

Leia abaixo entrevista completa com Adriana Fresquet, que atua no grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD), e destaca projetos de educação audiovisual pelo país, espaços onde um filme “pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento”.

Você participa do grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Poderia contar um pouco sobre o grupo e seus estudos? Em quais pesquisas estão trabalhando no momento?

O grupo de pesquisa e extensão CINEAD nasceu em 2006, com uma forte vocação para aproximar o cinema da educação, articulando nessa ponte a Universidade com a Educação Básica, seus professores e estudantes. Os projetos de pesquisa chamam Currículo e linguagem cinematográfica na Educação Básica e Cinema no hospital? Em ambos, procuramos identificar a potência do encontro do cinema com professores e estudantes, uma potência que é pedagógica, ética, estética, política.

Poderia explicar o que denomina “desaprender” em seu conceito de Cinema para Desaprender, falar um pouco sobre a complexidade desse termo?

Desaprender é lembrar de aprendizagens antigas e escová-las a contrapelo, isto é, identificar aprendizagens que hoje carregamos transformadas em (des)valores, quase crenças, por tê-las aprendido em contextos afetivos importantes dos quais é difícil dissociá-las sem arriscar alguma destruição da relação onde nasceram. Aprendemos (quase) sem defesas quando confiamos no/a outro/a. Nessas aprendizagens vêm misturadas todas as misérias, preconceitos e gestos de discriminação próprios da incompletude e imperfeição  da condição humana e inclusive das coisas, como afirma Passolini, ao afirmar que há uma potência pedagógica das coisas que vemos desde que nascemos que nos ensina de modo quase irrevogável uma determinada classe social, perspectivas do mundo, modos de estar e ser.Desaprender é fazer o esforço cotidiano e coletivo de revisar os nossos aprendizados, colocá-los sob suspeita, aderir a alguns, rejeitar outros, como se fosse possível arrancá-los de debaixo da pele. Desaprender é condição para reaprender com os outros, com o mundo, renovando significados e sentidos do conhecimento.

Parece que esse termo implica em uma noção de educação e de infância que vai além de seu conteúdo pedagógico. Está mais relacionada a uma experiência. Há espaço para esse tipo de vivência nos dias de hoje? Como o cinema pode contribuir pra isso? 

Desaprender constitui também uma parcela da educação e da infância que habita em nós. Se analisamos etimologicamente, educação vem do termo latino educare, é composto pela união do prefixo ex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir” ou “levar”. E efetivamente hoje entendemos a educação como esse espaço/tempo dedicado a endereçar a atenção ao mundo. No sentido de sair um pouco de si, e da tendência autocentrada e self-maníaca que volta para nós mesmos até os celulares a cada nova fotografia. O termo escola vem de skolé, “tempo livre”.

É justamente esse espaço escolar o cenário principal para ela dedicar um tempo para orientar a atenção para o mundo, afastando-na um pouco dos próprios desejos individuais, singulares, tão infelizmente produzidos pelo mercado e pelo capital. Entendemos também a infância como gesto, como nascimento, como pergunta. Nesse sentido, o cinema, seja na tela da projeção ou no display de uma câmera quando fazemos produções na escola, nos convida a expandir esse “tempo livre”, para olhar através delas para o mundo, um mundo que está aí, dado de uma determinada maneira aqui e agora, mas que é produto de infinitas escolhas e ávido de alterações.

Ao ver uma imagem do trânsito no Rio de Janeiro, por exemplo, podemos ter uma noção dessa realidade, mas também podemos imaginar como poderia ser diferente e ativar o pensamento para mudar, para inventar um outro modo de distribuição do trânsito na cidade. Entender que o plano que vemos resulta de uma câmera que foi colocada a uma certa altura, a uma certa distância, a uma certa hora do dia, que ativou uma determinada paleta de cores na montagem, mixando camadas de som gravadas em diferentes dias… significa imaginar que o mundo (ou a imagem que vemos dele) também poderia ser outra. E o melhor, que cabe também a nós a possibilidade de alteração. Desse modo, o cinema e a educação acabam coincidindo na sua matéria-prima: a realidade. E na sua maior aposta: olhar para ela visando imaginá-la como sonhada. Sonhada com os olhos bem abertos.

Para o velho Vygotsky, cada geração sonha a próxima e a acorda no ato de sonhá-la, assim a transformação (da realidade, do mundo) parece ser a promessa que traz por efeito focar no desenvolvimento da atenção ao mundo, objetivo fundamental da educação.

Existem experiências em escolas que compreendem o cinema como uma manifestação artística e cultural, e não como um simples instrumento?

Bom, eu acredito que nas escolas onde se vê cinema e se faz cinema (entendendo o cinema na escola como um tipo de cinema expandido), ele entra de maneira perturbadora, alterando os espaços e tempos escolares, um certo status quo. Provocando a imaginação e a memória para ver, rever e transver o mundo, assim como queria o poeta Manoel de Barros.

Agora bem, o cinema reduzido a “simples instrumento”, o filme utilizado como “recurso didático” pode ter efeitos independentemente da intencionalidade do professor. Isto é, mesmo que um professor projete o filme Vidas Secas para falar de Graciliano Ramos, numa aula de literatura, ou para falar da seca no Nordeste, o encontro dos estudantes e de outros professores e funcionários que eventualmente também o assistam tem um espaço de autonomia totalmente emancipado dos objetivos docentes. Uma cena pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento, contagiar a urgência de dar a ver esse filme a familiares, entre outras possibilidades não previstas necessariamente pelo professor. E acho que é aí onde radica a brecha principal que fura toda opacidade da relação do cinema com a educação.

Como o educador hoje pode criar um repertório maior da arte cinematográfica, além de, claro, assistir aos filmes? Quais os desafios de formar educadores preparados para trabalhar a linguagem audiovisual nas escolas?

Hoje é mais fácil pensar na ampliação de repertórios que outrora. Haja vista que muitos filmes estão disponíveis na rede e de modo gratuito. Acredito que boas curadorias de cinematecas, museus de imagens e sons, cineastas, professores de cinema, cinéfilos, cineclubistas podem ser dicas válidas para quem está iniciando os primeiros passos. Depois, as conexões rizomaticamente o levarão a desviar-se do caminho, que não é outra coisa, segundo Kafka, que o desvio, do desvio do desvio. A ampliação do repertório é sempre a outra cara da moeda que reconhece a cultura do estudante, do professor. Mas como o tempo das artes é tão curto na escola, efetivamente privilegiamos as ações que visam ampliar repertório. O melhor modo que temos encontrado de reconhecer a cultura do aluno ou do professor nos cursos de formação é trabalhar com motivos visuais do cinema. Por exemplo, um adulto falando com uma criança. Quantos filmes apresentam uma situação como essa? Se solicitarmos aos estudantes trazer fragmentos de filmes onde haja planos com essa situação, podemos projetá-los juntos dos que nós mesmos estejamos propondo e ponderar a multiplicidade de possibilidades que uma filmagem de uma determinada situação pode gerar.

Acredito também que é preciso multiplicar experiências de formação dos professores de pedagogia e licenciaturas em experiências mudas coletivas de assistir filmes juntos, comentá-los, ouvindo de preferência análises de pessoas que entendem da linguagem para não ficar em simples análises críticas de conteúdo, em lugar de fazer análises criativas, aprofundando conceitos de história, linguagem e estética. Paralelamente considero necessário que novas licenciaturas em cinema continuem a surgir para ampliar e aprofundar os conhecimentos dos profissionais que trabalhem com essa temática nas escolas, inclusive junto dos professores sem formação ou com uma formação mais básica.

Você tem notícias de experiências ricas de cinema na escola? Poderia dar exemplos?

Nós tentamos fazer experiências ricas em cinema, em primeiro lugar, com o Colégio de Aplicação, onde começamos refletindo sobre a infância no cinema, assistindo a filmes e desenvolvendo seminários de leituras, depois sugerimos às próprias crianças, estudantes, agir como co-pesquisadores, refletindo juntos sobre esses filmes e a partir de 2008, convidamos a crianças e adolescentes a fazer seus próprios filmes inspirados no cinema.

Desse piloto, surgiu um processo de criação de escolas de cinema em escolas públicas do Rio de Janeiro. Entre 2011 e 2013 o grupo/programa CINEAD da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro criou seis escolas de cinema em escolas públicas de Ensino Fundamental no Rio de Janeiro. O projeto contou com a consultoria do cineasta e professor Alain Bergala e promoveu um ano de formação e um ano de acompanhamento dos trabalhos desenvolvidos nas escolas. Bergala acompanhou a elaboração do curso, assistiu às produções dos professores e no ano seguinte os primeiros trabalhos dos estudantes. No final, gravamos um abecedário de cinema para compartilhar seus saberes e práticas com qualquer interessado em ouvir suas reflexões sobre cinema e educação.

Existem vários antecedentes muito importantes de cinema na escola, por exemplo, o CINEDUC, no Rio de Janeiro, que há quase 50 anos vem desenvolvendo atividades de formação de professores e de oficinas de produção audiovisual. Dez anos também tem já o maior projeto audiovisual de um Estado: o Programa de Alfabetização Audiovisual, em Porto Alegre, que coordena ações do Ministério de Cultura, Educação, da FaE/UFRGS, da Cinemateca Capitólio e ainda dialoga com as secretarias do Estado e do município, é único no país com essas características. Mais recentemente, encontramos um projeto de grande capilaridade em todo o pais que é o projeto Inventar com a Diferença (IACS/UFF). Um outro projeto maravilhoso que faz parte do projeto internacional francês é Cinema: 100 anos de juventude, coordenado pela cinemateca francesa. Na UFMG, o grupo Mutum também vem desenvolvendo atividades potentes inclusive em espaços sócioeducativos.

Na Bahia, destaco o projeto Janela Indiscreta com mais de 30 anos de caminhada levando o cinema nacional e oficinas de produção desde a terra de Glauber, Vitória da Conquista, até infinitos pontos do sertão baiano. Na Paraíba, projetos como Cinestésico tem feito uma enorme contribuição ao cinema nacional. Correndo o risco de ser injusta por estar omitindo projetos importantes no país, apenas destaco alguns que conheço mais e melhor por fazer parte da REDE KINO e para poder responder essa pergunta tentando abarcar alguns exemplos no pais, cada vez mais é impossível ter não esse conhecimento de modo acabado.

“A pedagogia do cinema frequentemente esbarra no modo como se apropria de seu objeto. Ora, importa muito mais, diante deste objeto complexo, vivo e indócil, ter uma atitude justa do que se agarrar a um saber tranquilizador.” Poderia comentar essa citação de Alain Bergala? Ela se relaciona com a sua ideia do Cinema para Desaprender?

Para Bergala, é preferível trabalhar com um professor que não sabe nada de cinema do que com professor que acha que sabe porque sabe um pouco, algo apenas. Saber algo pode tranquilizar o professor e deixá-lo passivo. O professor que sabe que não sabe e está interessado não para de querer saber, de procurar, de estar alerta a tudo o que pode ser uma aprendizado. O conceito de desaprender, como respondi na segunda pergunta, refere-se mais a necessidade de colocar dúvidas nas nossas certezas, de manter uma relação viva com o conhecimento do mundo, sem considerá-lo como acabado, pronto, inalterável. Suspeitar da veracidade dos próprios valores para assim, ratificar ou retificá-los a cada dia.

 

Orson Welles era cético quanto ao ensino de apreciação das artes nas escolas. Defendia que mesmo que um jovem soubesse todos os poemas de Shakespeare, não necessariamente se tornaria um poeta. O que o professor poderia fazer é o que chamou de “comunicar entusiasmo”, deixando o aluno com as suas próprias experiências. Poderia comentar essa afirmação de Welles? Afinal, é possível ensinar a apreciação da arte nas escolas? 

Como ouvi uma vez dizer, as artes se contaminam, se contagiam, se há uma forma de ensinar, realmente é por contágio, por comunicação de uma inspiração fundamentalmente. Bergala faz uma crítica do ensino das artes, especialmente quando ela parte da linguagem. Quando uma certa “gramática do cinema” predomina sobre a experiência sensível das imagens e sons.

Mas, no nosso caso, temos sim uma defesa do ensino de artes na escola, porque é um espaço conquistado pelos professores de Artes Visuais, depois de muitos anos das artes serem consideradas algo inferior em termos curriculares, sem a categoria de disciplina. Hoje Artes já é uma disciplina escolar “hierarquizada”, mas paga esse direito tendo que se ajustar a formas e formatos típicos de disciplinas como Matemática ou Português, tais como fazer prova, por exemplo. O conceito de desaprender consiste em revisar as aprendizagens tentando situá-las cronologicamente, identificando preconceitos e desvalores que foram aprendidos em outros momentos, um gesto ou um esforço por questionar permanentemente as próprias crenças, fundamentos, hábitos, valores.

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Olhares Olhares 2016

A complexidade da vida nas narrativas infantis

Bonnie, uma menina de 9 anos apaixonada por elefantes, está desolada com a morte da avó. À noite, enquanto a avó permanecia imóvel, no quarto ao lado, ela tentava dormir quieta. Mas logo se lembrou de como agem os elefantes numa situação difícil: nunca deixam os seus “parentes” para trás. Foi quando decidiu ir ao encontro da avó morta, sobre a cama. Deitou-se ao lado dela, sem receio do corpo inerte. A mãe de Bonnie, que viu a cena ao entrar no recinto, não hesitou em (estranhamente) cobrir com um lençol as duas, filha e mãe morta, aconchegando ambas em um terno abraço.

Quem escreveu essa cena tão inquietante quanto afetuosa foi a roteirista holandesa Mieke de Jong, autora de dezenas de séries e filmes para crianças. Premiada por suas criações cheias de personagens densos, em situações intrigantes, tais como a descrita acima, ela ministrou em fins de setembro uma master class no Fórum Pensar a Infância, do 15FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil), em São Paulo. Numa sala repleta de realizadores e educadores, difícil quem não saiu inspirado com a fala potente sobre como escrever obras que não consideram a criança “pequena”, assim como define a roteirista. Uma aula e tanto.

“Como fazer filmes sérios de um jeito divertido?”, questionou de pronto. É que “sem humor, a vida fica insuportável”, completou na sequência. Nos filmes da roteirista, os personagens infantis enfrentam desafios da vida real, como abandono, conflitos familiares, preconceito e pais difíceis, como a mãe bipolar de Bonnie, ao mesmo tempo em que têm um elefante no quintal, podem ganhar asas para voar ou ter um professor que se transforme em sapo. A fantasia, no entanto, nunca é uma fuga. “Um bom filme, assim como um bom livro, ajuda a gente a entender um pouco mais o mundo que habitamos”, diz Mieke, que sabe abarcar a estranheza em suas histórias.

A explicação para a criação de histórias com temas desafiadores, que levam seus personagens ao extremo, está na busca por entendê-los. “Em tempos difíceis, você conhece seus personagens. Eles se mostram. Só nesses momentos vemos quem realmente são, como se sentem, o que desejam”, conta Mieke, que propõe filmes críticos e reflexivos às crianças. São obras que falam da vida em sua mais pulsante verdade. “Gosto de levá-los a sério. Gosto de filmes com personagens complexos que me surpreendam, fazendo o que você nunca esperaria que eles fizessem, mas que entenda quando os veja fazendo.” Difícil não se comover (e também se divertir) intensamente com seus personagens, que, acredita, vêm antes da narrativa.

“Do ponto de vista das crianças, dá para contar todas as histórias, abordar todos os temas”, diz Mieke, que fala inclusive de sexo, ainda um tabu nos dias de hoje, na história da menina Bonnie. Tal preceito, que faz parte da bíblia de qualquer profissional empenhado em produzir para crianças, raras vezes é aplicado com tamanha habilidade. Em Mr. Frog (Professor Sapo, em tradução livre), por exemplo, ela conta a história de um professor que se transforma em sapo, em uma alegoria ao tema da homossexualidade. Tudo é contado pelo ponto de vista de uma de suas alunas, uma menina solitária, sem pai e cuja mãe vive ocupada. É ela quem o ajuda na tarefa de entender diferente. Mieke nos descortina o mundo infantil em seus filmes.

 

“Quanto de tristeza podemos mostrar às crianças?”, questiona Mieke, convidando a plateia de produtores a pensar. Uma de suas produções mais recentes é uma série de TV (20 episódios de 10 minutos cada um) intitulada Sem família (Nobody’s Boy, em inglês), inspirada num tradicional livro francês do século 19, escrito por Hector Malot – várias outras produções nasceram dessa história. A série traz as desventuras de um menino órfão pelas ruas da Holanda dos dias de hoje para encontrar sua tão sonhada família.

 

Escrever para meninas e meninos é tarefa de grande responsabilidade, já que as crianças ainda estão em processo de conhecer o mundo que lhes está sendo narrado. Na tela de cinema são expostas a diferentes realidades, diz a roteirista. “Você pode viver a vida de outra pessoa por um tempo. Você descobre o que ela sente, pensa e fala, pode se tornar uma pessoa mais compreensiva.” Para atender a essa missão, busca uma conexão com a criança que um dia foi. O universo infantil está ali, em cada espectador. Todos já passamos pela experiência de ser criança, e é isso que busca resgatar.

Ela não defende finais felizes em suas histórias, mas destaca que nunca escreveria um filme sem esperança. Nem sempre seus personagens conseguem necessariamente o que buscam. “Mas conseguem outra coisa. Algo que precisavam até mais.”

Em Tony Ten, o protagonista faz de tudo para manter unidos os pais que vivem em desavenças. Diferentemente do esperado, não vence no final, quando descobre que o melhor é que se separem de vez. É o que ela chama de “moral winner”, uma espécie de vencedor moral. “Nos meus filmes, as crianças sempre vencem, mas nem sempre conseguem o que sonhavam inicialmente”, conclui a roteirista, que bem sabe abarcar a tristeza e a estranheza numa mesma receita recheada de empatia. Traz a vida como ela é, com todas as suas complexidades, enredada com poesia, humor e fantasia de um jeito suave, tal como o voo da menina-passarinha do longa-metragem Iep!.

 

Para saber mais, leia entrevista que Mieke de Jong deu à jornalista e roteirista Gabriella Mancini há alguns anos.

Texto: Gabriela Romeu e Luisa Cortés

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Olhares Olhares 2017

Slam: a poesia da resistência

“Os meninos passam liso pelos becos e vielas. Vocês, que falam ‘becos e vielas’, sabem quantos centímetros cabem em um menino?”, provoca a poeta Luz Ribeiro, o olhar firme seguindo o ritmo das mãos que serpenteiam como quem se esgueira para abrir caminho para suas palavras. Ela vai em frente, narrando a vida das crianças da periferia, a vida à margem, invisível a quem vem de fora: “Não tem prestígio, não tem respeito, é sempre suspeito de qualquer situação”. Suas faltas, seus sonhos – “Tudo coisa de centímetros: um pirulito, um picolé, um pai, uma mãe, um chinelo que lhe caiba no pé”. Luz encerra o poema, dedo riscando a garganta: “Quanto mais retinto o menino, mais fácil ser extinto. Seus centímetros não suportam nove milímetros. Esses meninos sentem metros.” Entre palmas e gritos, quem assiste vai à loucura.

Essa performance poética é a alma do slam, um tipo de poesia falada, ritmada à semelhança do rap, só que livre da cadência musical. O que vale é a força da palavra, crua e direta, sem adereços nem firulas; sem figurino nem música, e às vezes até sem microfone. Sozinho no centro, o poeta interpreta um depoimento pessoal, em geral sobre questões sociais que o incomodam, mas vale falar de tudo: de amor, de feminismo, de política, da vida fora dos padrões sociais dominantes. Só não vale se restringir ao formalismo de seguir regras e métricas.

“É um estilo muito livre e democrático, qualquer um pode participar”, explica a MC atriz Roberta Estrela D’Alva, precursora da modalidade no Brasil e curadora de uma batalha de slams nesta quarta edição da Ciranda Filmes, que contará com as presenças da poeta Mel Duarte e da dupla composta pela poeta surda Catharine Moreira e por Cauê Gouveia, do Slam do Corpo, o primeiro slam entre surdos e ouvintes da América Latina.“A ideia do slam é devolver a poesia às pessoas, fazer com que elas sejam ouvidas.” Assim, na rua, na praça ou no teatro, os encontros de slam têm um caráter de arena, uma eletrizante competição entre poetas. Cada um tem três minutos para falar; quando terminam a performance, jurados escolhidos na plateia exibem suas notas. É assim que se define o vencedor, que geralmente leva um prêmio cultural, como livros. Esse aspecto de jogo cria um interesse imediato no público. “A competição deixa a performance mais intensa, mais dinâmica. O slam é uma poesia que só faz sentido porque existe um público que se envolve. A performance implica presença, ouvido, sentidos, emoção. É um encontro verdadeiramente humano.”

O slam nasceu nos anos 80, em Chicago, mas os primeiros encontros só começaram a ser organizados no Brasil em 2008. A cena está crescendo: hoje existem mais de 50 grupos em dez Estados. Além das disputas locais promovidas por esses grupos, existem competições de nível nacional. Com os versos de “Menimelímetros”, que abrem este texto, a poeta Luz Ribeiro foi campeã do Slam BR 2016, interpretando também outras de suas criações.

Ao dar espaço para a voz a quem em geral não tem lugar de fala na sociedade – adolescentes, mulheres, negros, gays, da periferia ou do centro –, o slam é considerado uma poesia de resistência. Numa primeira camada, essa resistência é evidente como ação política: o poema como uma maneira diferente de manifestar a insatisfação social. “A poesia abre horizontes, e nesse momento o slam vira um exercício de cidadania. A política partidária está esgotada em sua linguagem viciada. O campo da poética é o novo campo político”, diz Roberta, citando o filósofo Paulo Arantes.

Mas o que está em jogo nessa arena não é só o falar. Participar de um encontro é fazer silêncio em meio a uma cidade barulhenta. Abrir os ouvidos e a mente a visões de mundo diferentes, praticar a escuta empática, resistir à comunicação unilateral das redes sociais. Nas palavras de Roberta, é manter viva a tradição de uma oralidade que nos confere um sentido de comunidade. “O slam abre espaço para a criação de uma nova coletividade. De certa maneira, os encontros recuperam essa necessidade social de nos juntarmos em comunidade para ouvir e contar as nossas histórias.”

Texto: Bruna Fontes

Foto: Renato Nascimento

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Olhares Olhares 2017

Alimento para o corpo, o coração e a alma

E assim mais uma vez a Ciranda girou. Foram quatro dias incríveis e intensos, com exibição de 68 filmes, muitas prosas em roda e diversos (re)encontros. O cheirinho de pão, saído quentinho do forno, nos lembrava o aconchego da casa materna. Muitos fios coloridos eram um chamado para bordar rios que desaguam memórias e lembranças em nós. Entre uma atividade e outra, uma parada para a meditação. Sim, todo o Cirandar se fez em pausa para a reflexão, momento de reconhecer aquilo que nos fortalece enquanto humanidade.

A palavra falada, em sua extrema potência poética, abriu esta quarta edição da Ciranda de Filmes, cuja curadoria de Patricia Durães e Fernanda Heinz Figueiredo captou fortemente uma necessidade coletiva de nutrição de alma em tempos tão difusos. Os versos dos poetas do slam, que nos desafiaram em batalhas performáticas, deram o tom do encontro logo na abertura. Foram como um antídoto contra um mundo que nos automatiza, nos dilui em cotidianos áridos. A fala poética defendeu o lugar da mulher, questionou a (in)visibilidade da infância, enalteceu a força da negritude, entre outras lutas proferidas em versos pelos poetas no centro da arena.

Na telona, os sonhares. Jovens de todos os cantos do país ganharam voz em “Nunca me sonharam”, longa documental de Cacau Rhoden produzido pela Maria Farinha Filmes que inaugurou a mostra. O filme, que fala desse tempo de “tempestades e trovões”, como o psicanalista Christian Dunker bem define a adolescência, traz o ensino médio como uma espécie de rito de passagem entre o ser jovem e o ser adulto. São muitos os desafios para atravessar tal portal.

Os sonhos serviram de matéria-prima para um debate, envolvendo estudantes participantes do filme e outros responsáveis pelo projeto. Foram muitas as questões apontadas depois da exibição do documentário. Alguns, ainda sem esperanças, questionaram “se ainda é possível sonhar no Brasil”. Logo, no entanto, a esperança por um futuro melhor foi reestabelecida, como feito por uma educadora presente: “Não tenho esperança porque sou uma Pollyanna, mas porque a história é assim, feita de avanços e retrocessos”.

Mas os sonhos foram apontados como importante nutrição para a vida. Nesse sentido, o professor torna-se um vendedor de sonhos aos adolescentes que, ainda não contaminados, ingressam nesse mundo doente. Têm em si todos os sonhos do mundo, de policial a presidente da República. Renovam a sociedade adulta, trazem força àqueles já cansados de lutar. A lição que fica é de inspiração nesses jovens que não desistem, apesar das dificuldades enfrentadas diariamente – da exclusão social ao assédio do tráfico. Ainda sonham. E sonham alto.

E seguimos cirandando por muitas narrativas, as do telão ou não. No saguão do tradicional cinema na rua Augusta, há tempos meca da cinefilia paulistana, as memórias das águas também nos acalentaram a alma nas oficinas bordadeiras de “O rio que mora em mim”. Com tecidos tingidos por jabuticabas e nozes, entre outros frutos, os irmãos mineiros Marilu e Demóstenes Dumont nos convocaram a mandar uma mensagem para as águas que correm nos subterrâneos da terra e da gente. E jorravam palavras como “Paraíba em mim” e “O rio grande é minha fronteira”, que se misturaram aos bordados de muitos fios.

O alimento não era só o pão que saia quentinho da oficina da padeira artesanal Vania Carvalho. Configurou-se em imagens de imensidão nos filmes e nas rodas de conversa. Assim, adentramos territórios brincantes Brasis afora (“Terreiros do Brincar”), nos vimos de longe e de tão perto (Humano), cantamos o amor e a poesia (A Família Dionti”“Window horses – A poesia de Rosie Ming”), enaltecemos o ritmo em nossas vidas (Foli – Não há movimento sem ritmo” ), reacendemos a potência imaginativa (Banquetes imaginários” ), visitamos muitos recônditos infantis (David”  Rauf” ), celebramos o riso com os curtas dos mestres Charles Chaplin, Jacques Tati e Buster Keaton e reverenciamos também a morte e os recomeços (Verdade Passageira”  e Quando os Dias Eram Eternos” ).

A criança também esteve no centro da roda. A sessão especial do curta “Criança Fala”, que retrata uma intervenção no bairro do Glicério, em São Paulo, garantindo à infância mais espaços para brincar, mais lugares para ser criança, foi precedida por uma vivência organizada por Nayana Brettas. Ela  convidou os participantes a relembrarem as suas infâncias, recapitularem aqueles momentos que foram importantes para a constituição do que são hoje, as memórias afetivas – tudo o que nos fortalece. Veio à tona a criança interior que todos nós possuímos, às vezes enterrada debaixo da rigidez do mundo adulto.

Na exibição de “Waapa”, foi discutido o que as culturas indígenas têm a nos ensinar. Nos campos da espiritualidade e da medicina, abordados no filme, vale destacar a busca pela essência das coisas, em que não há espaço para o supérfluo. Se um indígena do povo Yudjá quer passar a capacidade de tecer à sua filha, passa literalmente a aranha em suas mãos, deixa que ela a pique, pois entende que o poder será transmitido pelo contato com o animal. A natureza ao redor, assim como a natureza interior, são nutrientes da vida.

Na sessão especial do filme de “Era o Hotel Cambridge”, a conversa com as crianças que habitam a ocupação do hotel muito nos inspirou. Foram levantados temas como preconceito, comunidade, coletividade. A força dos outros também nos revigora. O filme de Eliane Caffé evoca o poder do coletivo. Uma pessoa sozinha vive na rua. Em conjunto, são capazes de se organizar, ocupar um edifício abandonado, enfrentar as forças policiais, lutar na justiça pelo direito social à moradia. Fica ecoando um grande ensinamento.

 

E a Ciranda girou em muitas prosas. A Roda de Conversa Subjetividades, que  contou com a participação de Christian Dunker, Fatima Caldas, Kika Melhem e Mariana David, foi um convite a olharmos a nossa constituição como sujeitos ao longo da vida, a começar na infância, tempo que visitamos mais de uma vez. Também percorremos as memórias afetivas das comidas que nos permearam.  A partilha ao redor da mesa é um chamado da coletividade, da tradição e da ancestralidade.

E então chegou o fim (ou só um novo recomeço?). O encerramento da Ciranda celebrou de novo a poesia, sem fim… E depois de assistir ao último filme do cineasta Alejandro Jodorowsky, o instigante “Poesia Sem Fim”, os tambores femininos do bloco afro Ilú Oba de Min ecoaram alto – e fundo –, acordando o que ainda restava de adormecido em nós. Fortalecidos e alimentados (corpo, coração e alma), era hora de voltar para casa. Mas já não éramos mais os mesmos.

Ano que vem tem mais!

Fotos de Aline Arruda e Pablo de Sousa

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Olhares Olhares 2017

O cinema e a construção da subjetividade

Ver um filme às vezes é uma opção que fazemos para escapar um pouco da vida real. Mas será que é isso que acontece quando a tela do cinema captura por completo a nossa atenção? Na verdade, a narrativa apresentada como ficção nos faz olhar com mais profundidade para a nossa subjetividade e para os nossos caminhos de transformação, aponta o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e organizador da Coleção Cinema e Psicanálise (editora nVersos) e Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo).

O cinema “faz parte das redes discursivas que criam a nossa verdade em estrutura de ficção”, diz o psicanalista, que esteve na Roda de Conversa Subjetividades, da Ciranda de Filmes. Para ele, filmes são essenciais, e servem como um bom ponto de partida para conversar com os jovens sobre seus sonhos e sofrimentos – mas nunca como substitutos do diálogo. “Filmes em vez da palavra, sem mediação, conversa ou reflexão são a pior babá que pode haver, porque passam a ser um signo da displicência e demissão dos pais em termos de cultura e educação. Como dizia Goya, o sono da razão cria monstros.”

Leia mais no bate-papo a seguir.

Como o cinema nutre a subjetividade e o sonhar dos jovens?

De muitas maneiras, mas vou salientar duas. A primeira é criando narrativas que nos ensinam como nos transformamos. Isso inclui desde a construção de alteridades até o suporte para fantasias, inclusive a sexualidade e o amor. O cinema ensina qual sofrimento devemos aceitar, qual convoca um processo transformativo em nós e qual impõe uma modificação do mundo ou dos outros. Ele faz parte das redes discursivas que criam a nossa verdade em estrutura de ficção. Por outro lado, o cinema é também a arte do real, como pensavam tanto Bazin como Badiou, em sentidos diversos. Ele funciona como um ponto de unificação e convergência de linguagens, como dramaturgia, fotografia, literatura, música, que a cada momento criam e fixam o que pode ser dito, o que não deve ser dito e o que é impossível de dizer.

 

Qual é a influência do cinema na construção da intimidade, do aprender a amar, a separar?

De onde surgem as soluções práticas para problemas nunca antes enfrentados? De formas míticas, narrativas ou discursivas que estavam lá, encostadas no fundo do baú, justamente porque quando foram inventadas ninguém sabia muito bem para que elas serviam. É a arte, como invenção de linguagens para um mundo que ainda não existe, mas um dia, às vezes, ele chega.

 

Você acha que os jovens de hoje têm menos espaço para essa construção da intimidade?

Sim, porque a relação entre a experiência pública e a privada sofreu uma mutação. O avanço da individualização baseada no contrato, a judicialização, a intolerância das relações de diferença e a padronização narrativa das formas de falar de si tornaram o fundamento da intimidade, ou seja, compartilhar uma experiência produtiva de indeterminação, algo cada vez mais raro e mais difícil, portanto mais precioso. Falar de si autenticamente para um outro é um risco que nossa época tolera muito mal. Preferimos fazer outras coisas, por outros meios: escrever, beber, rir, trabalhar, trocar interesses ou sensações corpóreas.

 

Na vida real eles se sentem mais reprimidos?

Tendemos a achar que a repressão é um processo inerentemente ruim e a ser evitado, porque limita a liberdade e a emancipação. Isso é mais verdadeiro quando pensamos em formas culturais estáveis e em reprodução. Mas a repressão é também o processo pelo qual ocorre o que antigamente chamava-se o “progresso da civilização”. Em certos momentos de transição aguda, anomia ou crise das formas reprodutivas de vida, ou seja, trabalho, linguagem e desejo, percebemos que é mais fácil e importante deixar coisas para trás, negar práticas instituídas ou reprimir formas expressivas do que inventar novas formas de vida, até porque neste momento não sabemos como e por onde isso pode ser feito. Quando isso acontece, surgem efeitos curiosos, como os de hoje, nos quais os jovens aparecem como moralistas, vigilantes reprimindo costumes e imagens, de si e dos outros, apegando-se à lei, transformando em bullying o que for possível, “esquecendo” a revolução sexual que nos precedeu. A responsabilidade sexual, como desejo subversivo e invenção de novos mundos, transforma-se assim apenas em errância de sensações sem consequência, um exemplo de repressão neoliberal.

 

A ficção que aborda problemas como bullying e suicídio, como a série 13 Reasons Why, ajuda ou confunde o jovem?

De um lado ajuda, porque narrativiza o problema, coloca a contradição, mostra o conflito. Por outro atrapalha, porque desencadeia o desamparo, a angústia e o contágio identificatório por via da retomada de soluções regressivas. A série 13 Reasons Why é desesperadora para os psicanalistas, pois mostra o deserto da ausência de escuta, mas também a indiferença e desistência subjetiva da personagem para falar de si. É lindo que quando ela o faça isso ocorra por meio de um “instrumento” antigo, que são as fitas cassete, da década de 1980. É didático como isso acontece, reeditando um pouco a função dos antigos diários íntimos. Ela se abre para o risco de falar com alguém, o psicólogo da escola. E aí a coisa fica ainda mais exasperante para os psicanalistas, porque o que vemos é uma aula de “surdez clínica”, uma lição básica de tudo o que não fazer nesta situação. Sim, até mesmo nós, os psicólogos, desaprendemos a potência da escuta e da fala, preocupados em manter os interesses de imagem funcional e contribuir para nosso “belo quadro social”.

 

Por que você acha que o jovem de hoje enfrenta suas experiências de modo mais individualizado?

Acho que a individualização requerida por nossa época inventou a figura do empreendedorismo narcísico, pelo qual rapidamente a criança aprende a importância de administrar sua imagem e seus interesses, individualizados, de modo a amplificar seus ganhos em termos de capital cultural e capital social. Aquele que não sabe capitalizar seu sofrimento, de modo a torná-lo produtivo – por exemplo, expondo-o na rede, transformando-o em ódio que o faz trabalhar mais, fortificando sua identidade e seu lugar de fala – será percebido como fracassado, excluído ou perdedor. Isso padroniza o sofrimento no laço social, destrói a potência da intimidade e isola as pessoas, o que obviamente aumenta o sofrimento.

 

Como essa intimidade precisa ser reinventada, então?

Outro amor é preciso. Intimidade é conflito, e não só zona de conforto e segurança. Estamos encalhados entre uma forma debilizante, infantil e incondicional de amor – que quando dá certo, dá errado, por exemplo: o casal vira um par de irmãos colaborativos e sem sexo – e um amor funcional tipo Tinder, que enquanto estiver “pagando bem continua, senão fecha”, que justamente por dar errado, dá certo, por exemplo: casais que são verdadeiras holdings jurídicas, unidades de combate e predação orientadas para resultados.

 

Texto: Bruna Fontes