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Olhares Olhares 2016

Do pó da terra, barro de comunhão

“O verdadeiro modelador sente, por assim dizer, animar-se sob seus dedos, na massa, um desejo de ser modelado, um desejo de nascer para a forma”-

 Gaston Bachelard. 

“Do Pó da Terra” cria-se arte e comunhão. Onde os afetos e a tradição são forças que circulam pelos dedos da natureza de uma comunidade, junta-se o pó, faz-se o barro, vence a matéria, cria-se e concretiza-se imagens de mulheres e homens que se regeneram, concretizando suas fortalezas. As ausências e presenças, muitas vezes inconciliáveis, apresentam-se nesse grandioso Vale de nome Jequitinhonha. 

Os sonhos e as saudades criam rachaduras na terra e oferecem a matéria-prima para composição da vida. As ataduras de gerações, os partos de mães, as dores dos abandonos, a inspiração das memórias modelam as narrativas. Vidas compostas em artesanato.

O matriarcado dessas comunidades é tecido pelos braços, mãos e forças de mulheres. A ancestralidade brota desse chão que, mestre, vibra todo o valor da cultura que circula nos corpos desse lugar. Do trabalho pesado, envelhecem com a terra, misturam-se à ela, transformam-se nela, em fortalezas de barro.

Para saber mais sobre o filme, clique aquiTexto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Roda de conversa: Mediador de Mundos

Esta foi uma das emocionantes falas que estiveram na Roda de Conversa inaugural da Ciranda.
Roda de Conversa: Mediador de Mundos – Foto: Aline Arruda

A primeira “Roda de Conversa”, que integra a programação da Ciranda de Filmes, aconteceu há pouco, no Cinesesc, em São Paulo. O encontro, com o sugestivo nome de “Mediador de Mundos”, reuniu Ailton Krenak, José Pacheco e Lira Marques. Ou seja, num mesmo espaço de discussão estiveram presentes uma importante liderança indígena, o educador português responsável pela Escola da Ponte (fundada em 1976 e ainda hoje considerada uma referência mundial em pedagogia inovadora) e uma artesã e educadora negra – diversidade essa destacada por Fernanda Heinz Figueiredo, uma das idealizadoras e curadoras da mostra e também mediadora dessa conversa.

O pontapé inicial foi a figura do “mestre”, tema dessa edição da Ciranda. Krenak pontuou, com uma fala pragmática e poética ao mesmo tempo, a importância, o respeito e o poder da natureza – através da relação estabelecida com ela é possível uma enorme aprendizagem. Foi através dela que aprendeu e vivenciou o sentido estrito da palavra “liberdade”, por exemplo. Lira falou de um modo bastante emocionado sobre a sua mãe como primeira e maior mestre; foi ela quem lhe ensinou a trabalhar a cerâmica e o valor e o gosto pela música. Já o educador português mencionou um vizinho, o sr. Cardoso, que lhe apresentou aos livros, antes mesmo dele ir para a escola.

Krenak compara a natureza à “uma mãe rígida”, a uma instância que orienta, sinaliza, se impõe, exige e devolve respeito. Também ambientalista, escritor e Professor Doutor Honoris Causa pela Faculdade Federal de Juiz de Fora, ele não vê possibilidade de uma vida em harmonia, um ambiente saudável, respeitoso e inventivo sem uma forte conexão com o meio ambiente. Mais do que isso, para ele, “abraçar a beleza da vida” está intrinsicamente à convivência com elementos da natureza e com o seguir “os rastros dos nossos ancestrais”.

E ele conta que, da sua etnia, existem apenas cerca de 350 pessoas. Elas mantém suas histórias e tradições através de falas, gestos, rezas, “benzações” e rituais. São essas as narrativas que contam a história de quem são. O que temos no Ocidente são outras narrativas. Apenas diferentes, nem melhores e nem piores. A diversidade existe – e é fundamental que seja mantida e respeitada. Compara as crianças de hoje à chips, a população como um todo a computadores e programas feitos em série. Krenak brinca: “deveria ser considerado bullying quando se pergunta a uma criança o que ela vai ser quando crescer. A criança é uma estrela de uma constelação; ela vem para ensinar”.

Lira, do Vale do Jequitinhonha, corrobora a importância das nossas relações com os antepassados, tradições e memória. Está fresco nessa ceramista e colocado em suas obras as cantigas de roda que aprendeu desde menina e o espírito de comunidade que sempre sentiu.

Não por acaso fez uma vasta pesquisa, ainda por meio de fitas-cassete (foram 250!), e registro de cantigas de roda e festejo local. Diz que “andava com um caderninho” e anotava tudo, ia atrás quando ouvia uma cantiga pela primeira vez. Isso lhe preencheu, lhe deu sentido: a música que ouvia em casa, que a acolhia e a arte que aprendeu com sua mãe, seu modo de escrever e se colocar no mundo.

Em “Do Pó da Terra”, documentário exibido na sessão de abertura da Ciranda, a artesã deixa claro seu modo de escrever – no barro. Quando lhe perguntam, por exemplo, se ela “faz noivinhas” (em referência à grande maioria das peças feitas por artesãs do Vale), ela diz que não; para ela, não é o que quer fazer e apresentar ao mundo; suas aflições e alegrias não estariam estampadas nessas figuras.

José Pacheco enfatiza a importância das perguntas: perguntar sempre é o melhor caminho. E revela que sua inovação no modelo escolar português se deu a partir de diversos questionamentos. “Por que há turmas? Por que o tempo do intervalo é esse? Por que há banheiros separados para alunos e professores? Por que cada aula dura 50 minutos?”. Para ele, os mestres são as crianças e são elas que podem nos ensinar – fala que encontrou eco com Krenak. A liderança indígena defendeu em certo momento da roda ideia bastante semelhante: “são elas que vêm que nos ensinar”.

E Pacheco está otimista. Ele tem acompanhado uma série de comunidades e experiências realizadas no Brasil. O educador sente que há professoras/es com bastante consciência a respeito do modelo obsoleto de educação que ainda temos vigente. Ele defende e luta por uma “nova construção social de aprendizagem”. Mas pondera que a “síndrome de vira-lata do Brasil” atrapalha – e não tem sentido algum. Em suas pesquisas, descobriu que o “primeiro escrito” a respeito de uma nova comunidade de aprendizagem se deu no Brasil e creditou o trabalho a Lauro de Oliveira Lima.

Perguntas, memórias, respeito aos antepassados, ligação com a natureza, manifestação pela arte, sensibilidade e comunidade: denominadores comuns nas falas e no espírito de cada um dos convidados.

Texto: Regina Cintra

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Olhares Olhares 2016

Mestres e brincantes, narradores e guardiões

“Abancado à escrivaninha em São Paulo

Na minha casa da rua Lopes Chaves

De supetão senti um friúme por dentro

Fiquei trêmulo, muito comovido

Com o livro palerma olhando pra mim

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!

muito longe de mim

Na escuridão ativa da noite que caiu

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos

Depois de fazer uma pele com a borracha do dia

Faz pouco se deitou, está dormindo

Esse homem é brasileiro que nem eu.” – Poema O descobrimento,

de Mário de Andrade

Descobrir e registrar as narrativas populares foram uma das grandes missões e contribuições de Mário de Andrade para o Brasil, país que já nasceu ideia de teceduras de culturas, cosmologias e sincretismos. A cultura popular que nasce e se manifesta das ruas e dos terreiros. Mário ocupou-se de coração e alma, toda sua vida, para narrar a poesia das manifestações populares.  Narrador digno das narrativas para as quais se dedicou. Um narrador-guardião, aprendiz da alma do povo, cultura que antes do modernismo brasileiro não era reconhecida ou valorizada.

 Ao sermos tantas coisas, as tensões de assumir-se sem fronteiras, a afirmação de nossas diferenças nos faz um lugar de conflitos que construíram nossa história. Não conflitos armados com armas de fogo, mas armas de Jorge, Xangô, São Francisco de Assis. Sobreposição de afirmações que nos fazem múltiplos, do cavalo-marinho, Bumba meu boi, Maracatu, Caboclinho, Congo e de todas as expressões do Brasil do fundo, uma espécie de oração e comunhão entre diversos e comuns.

 A composição de diferenças, crenças e saberes criam obras dignas da sensibilidade de artista, esse que sente um “friúme por dentro” ao perceber e encantar-se pelo outro, outros vários que são brasileiros como ele. Em seu olhar sensível e curioso mapeou as cartografias brasileiras como missões de vida, como cartografias de nossa cultura que sempre se reinventa para sempre afirmar os homens de seu tempo.

“O povo é a voz do mundo. O povo muda tudo”, Manuel Papaí, Babalorixá

Nas tensões e conflitos entre classe artística e cultura popular, a vanguarda e a vanguarda da tradição, a sabedoria e a cultura da burguesia, Mário de Andrade dedicou-se a anotar em seu caderno o coração das coisas brasileiras para descobrir novamente o Brasil. Para descobrir os portadores dos segredos de cada manifestação, os mestres e os brincantes.

Em Mário e a Missão”de Luiz Adriano Daminello, vamos acompanhar esses trajetos e descobrir novamente o Brasil, todas as vezes que forem necessárias.  A série documental do Sesc TV ganhou uma versão especial de longa-metragem para a Ciranda 2016. Após a sessão, teremos uma prosa com o brincante-guardião das manifestações populares, Antônio Nóbrega, para celebrar a poesia da comunhão. Um encontro entre Mário e Nóbrega, e todo o Brasil profundo. Na Ciranda ainda teremos a exibição especial do “Brincante”, filme de Walter Carvalho. 

Para saber mais sobre Mário e a Missão, clique aqui.

Para saber mais sobre o Brincante, clique aqui

Texto: Vanessa Fort

Foto: Leia já imagens

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Cordilheira de Amora II

A Cordilheira da Amora II”  é um filme que começa quando acaba. Um filme que desperta nosso poder criativo para novas realidades. A Ciranda vai chegando ao fim com a intenção de inspirá-las.

Da Celebração do fim que se inicia, convidamos Jamille Fortunato (diretora), Lia Matos (produtora) e Alexandre Basso (imagens) para compartilhar o processo do filme, suas intensidades, insights e afetos. O filme é um documentário que apresenta o quintal de Cariane, uma indiazinha Guarani kaiowá da Aldeia Amambai, em Mato Grosso do Sul.

Em uma tarde no quintal

por Jamille, Lia e Alexandre

O encontro com a Cariane aconteceu durante a execução do projeto Memórias do Futuro, uma ação produzida pelo Espaço Imaginário, que tem como objetivo pesquisar a Cultura da Infância do Brasil através de um processo de sensibilização do olhar investigativo e criativo de jovens, educadores e crianças. Em ações que se propagam em redes virtuais e presenciais, o Espaço estimula a aproximação de gerações e a troca de conhecimentos e práticas relacionados ao brincar.

Jovens de diferentes grupos culturais do Mato Grosso do Sul: indígenas, quilombolas, ribeirinhos e da cidade participaram das duas oficinas: a de sensibilização para a importância do Brincar e a de técnicas de produção audiovisual. O propósito da segunda era estimular os jovens para uma investigação e documentação de suas infâncias e as infâncias de suas comunidades.

Entre os jovens estava a Francielli Martines, irmã da Cariane, uma das participantes do projeto, integrante do JIGA – Juventude Indigena Guarani em Ação, grupo muito ativo na Aldeia Amambai em MS. Eles defendem e compartilham a memória e Cultura local com um acervo audiovisual maravilhoso.

Fazia parte do processo de formação dos jovens, o acompanhamento da pesquisa dos integrantes do projeto em cada comunidade. Foi justamente durante este período de acompanhamento da pesquisa que conhecemos a Cariane, em um dia em que fomos convidados pela Francielli para conhecer a sua casa e família.

Logo após o almoço a Jamille foi dar uma caminhada nos arredores da casa e encontrou a Cariane. Pouco depois ela nos chamou e disse: “venham ver aqui uma coisa!” Fomos os 3 com outra câmera. Para nosso encanto, o filme aconteceu assim, como as crianças são: de um jeito muito espontâneo. Aos poucos ela foi nos mostrando o universo que havia ali no seu quintal, nos contando suas histórias e sonhos, inclusive de um filme invisível.

Dentro desse processo, uma de nossas tentativas foi capturar para as telas as brincadeiras do imaginário de uma criança. “Cordilheira de Amora II” foi também o resultado dessa busca, regada pelos olhares delicados e pela nossa parceria. Apesar de ter sido um documentário espontâneo, sem planejamento prévio, filmado em menos de uma hora, usando apenas celular e handcam, ele só foi possível porque foi um trabalho em equipe que já vinha sendo realizado. Tivemos todo o cuidado e respeito ao entrar nas comunidades, sempre pedindo licença.

Naquela tarde de quintal, descobrimos muito mais do que já havíamos apreendido até então. E reafirmamos a nossa certeza – e consciência – sobre a capacidade que cada criança tem de transcender e transformar o que já está posto.

Questões de território e transcendência de fronteiras

Cariane nos mostra uma realidade de maneira muito sutil: um Brasil riquíssimo e abandonado, com interferências e valores sócio-culturais diversos que chegam às crianças de forma descuidada, muitas vezes descontextualizadas, questões de territórios – suas propriedades, apropriações e novas elaborações.

Mesmo assim a criança alcança e transcende com seu potencial incrível de criação e transformação. Ela e seus amigos nos dizem que, sim, é possível ser bonito, que é possível ter mais respeito, que é preciso ouvir, que é possível ter uma casa, cuidar, passear, transformar a escola em um lugar menos chato, que o lixo não é lixo e pode ser transformado. Cariane deixa acontecer cordilheiras na planície do centro-oeste brasileiro com seus sonhos altos e pézinhos no chão. Assim faz a vida menos seca e mais doce como as amoras! Ela nos diz que é possível transformar!

E, assim, acreditamos que todas as crianças deste mundão carregam cordilheiras de amoras nos seus sonhos e corações. Acreditamos também que o grande potencial do filme, o grande potencial que o cinema é de sensibilizar, educar à transcendência com novas possibilidades de transformação para situações difíceis que estão colocadas no mundo e que parecem impossíveis de serem solucionadas.

E, de forma contrária, a criação, simplicidade e beleza nos dizem que, sim, é possível!

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Olhares Olhares 2016

A nossa casa é lá fora

“Dentro da cabana é onde guardamos as coisas, mas fora é a nossa casa de verdade”, diz Kate, de oito anos de idade.

Em um esforço de se reconectar, a cineasta e mãe Suzanne Crocker e o seu marido deixaram seus trabalhos e, junto com suas três filhas, dois gatos e um cachorro, passaram nove meses vivendo em uma pequena cabana sem estrada de acesso, sem eletricidade e sem relógio. Situada em Yukon, no Canadá, a experiência é completamente filmada pela família. Em um tecer de vozes e experiências, assistimos uma suave e honesta narrativa da vida na natureza no filme “Todo tempo do mundo”

A característica mais genuína de cada personagem é apresentada entre olhares atentos dos pais, fazeres e dizeres de todos: uma filha que é mais filosófica, a outra que é a mais sensível e a terceira que tem espírito livre e ótimo senso de humor; o pai que chora, a mãe que é forte. O brincar infantil transforma-se no brincar da família inteira: a construção e a invenção das coisas, as aventuras do lado de fora, as deliciosas comidas que todos ajudam a criar e a comer, a composição de sonhos e fantasias coletivas. Um retrato de um cotidiano contado no tempo alongado das estações e compartilhado profundamente.

As três filhas são muito estimuladas à leitura, com brincadeiras de livrarias e lojas de mentirinha. Em uma de suas aventuras literárias, uma das meninas escreve uma carta de amor para o Percy Jackson, personagem de um dos seus livros favoritos. Em sua declaração, a pequena diz que quer se casar com o filho de Poseidon. A carta é depositada na caixa mágica de correio. Percy Jackson responde; ouvimos as doces palavras pela voz da mãe: ele aceita se casar nos sonhos e brincadeiras da menina. Eles se casam, tendo o pai e a mãe como guardiões de sua inocência e imaginação.

O filme e a vida são conduzidos pelo respeito e pela cumplicidade entre amigos que, pais, filhas e bichos, crescem e aprendem um com o outro e com a natureza. 

Questões para pensar com o filme: 

Você gostaria de viver no mato por nove meses? Você poderia viver sem eletricidade e comunicações? O que você sentiria mais falta? Como o viver no mato pode ajudar a trazer de volta o verdadeiro significado dos feriados? Por que é importante se reconectar com a natureza? O que limita a nossa capacidade de relaxar e desfrutar do nosso tempo com amigos e família?

O filme será exibido na sessão especial “A Natureza como Mestre”, realizada em parceria com Instituto Toca e o projeto “Criança e Natureza”, do Instituto Alana. Nesta sessão, Suzanne Crocker, diretora do filme, vai se juntar ao pesquisador da criança Gandhy Piorski para fazer uma reflexão sobre a importância do contato com a natureza para o desenvolvimento saudável e integral da criança, e como espaço primordial da brincadeira e da imaginação.

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

Alguns trechos foram extraídos do material educativo do filme, que pode ser visto na íntegra aqui.

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Poéticas e poesias da infância

Há algum tempo o conceito de protagonismo infantil inspirou-se em uma visão adultocêntrica do mundo e, logo, das infâncias. A criança era um projeto do futuro, um preparação para uma ideia precisa das coisas que, por ser precisa, se afasta de uma realidade complexa de subjetividades e composições culturais e sociais. Há quem segue visitando esta visão de mundo. Sobre outra visão, mais poética, baseada numa ética de alteridade das infâncias, várias e únicas, que a mesa de Protagonismo Infantil se inspirou.

 

Com a presença do educador e poeta Severino Antônio e da educadora Lucilene Silva, a Roda de conversa do terceiro dia da Ciranda de Filmes caminhou no universo poético da infância, aquele que é possível a partir de uma participação singular das crianças e da sua criação de significados e poéticas; as narrativas das vidas infantis.

 

Um homem representa uma criança e que, desde seu nascimento, é protagonista de sua natureza, sua história e seu destino. O que significa perder o sentido da vida? O que significa ser uma criança protagonista?

 

É quando a criança cria vida.

É quando a criança faz presente o ausente.

É quando o menino adota uma atitude filosófica e pergunta sobre o mundo que o rodeia, sobre experiências e sobre coisas pouco tangiveis e espirituais.

É quando a infância se faz poesia.

 

Antes tarde: as poesias são várias, nem sempre suaves, quase sempre desobedientes para garantia de sua autenticidade; emancipatórias para garantia dos seus afetos; livres pela sua natureza genuína, que se conecta consigo mesmo, com o mundo e cria significados a todo momento. Como podemos apoiar esses movimentos infantis livres e autônomos? Como podemos potencializar essas criações, esse protagonismo?

 

A infância é um estado nascente da linguagem, um estado poético em toda sua potência. A criança é sujeito do texto de sua existência. A criança é pensadora, indagadora, que gera perguntas e constroe metáforas. O adulto precisa reaprender a infância e isso significa escutar as crianças, aquelas que o perguntam e aquelas que dizem também. O adulto deve se conectar à fantasia das crianças.  Como disse Severino: “É importante que o mundo recomeça todas as vezes.” Escutar as crianças, “fará delas pessoas autônomas e com liberdade de expressão. Uma criança autônoma é emancipação”, disse Lucilene Silva.

 

O que faz o humano se converter em humano? “O pensamento…”, disse Severino, “…o mito poético de que tudo se transforma em tudo.”

Roda de conversa: Protagonismo Infantil (2015)

Com Severino Antônio e Lucilene Silva

 

Moderação: Ana Claudia Leite


Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filme

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Sobre comunidades e cocriações

Do entendimento de mestre, vamos para a força dos mestres, assim, no plural. Crianças, jovens e adultos, alunos e educadores, se misturam na construção de comunidades de aprendizagem. Todos se transformam em mestres no processo de aprendizagem. A criança é mestre de si mesmo na convivência, nos espaços de diálogo e construção coletiva. O mestre é o mediador e tutor desse caminho. Os mestres, eles e elas, facilitam e crescem juntos com as crianças e jovens, em uma interação cocriativa. 

No relatório da UNESCO “Educação, um tesouro a descobrir” são apresentados Os Pilares da Educação para o séc XXI. Com coordenação de Jacques Delors, o documento, cada dia mais atual e necessário, acolhe como um dos pilares o “Aprender a conviver” que ilumina e atenta ao desenvolvimento da compreensão do outro e de nossa interdependência. 

Em tempos de incerteza, onde a noção de coletividade está carente de atenção e entendimento, a Ciranda de Filmes convida o Professor José Pacheco, um dos grandes dinamizadores da gestão democrática da educação e um dos fundadores da Escola da Ponte, a participar da Roda de Conversa: Mediador do mundo. Ele vai ter a companhia de Ailton Krenak e Lira Marques. A fim de abrir desde já essa roda de prosa, fizemos uma conversa com ele e compartilhamos com todos. Veja a seguir.

O senhor sempre fala que descobriu-se educador quando deu conta que o processo educativo era muito solitário, tanto para o professor, quanto para as crianças e jovens. Há uma frase muito bonita que o senhor diz que “Projetos humanos são atos coletivos”. É verdade que o coletivo é algo que se aprende e se constrói em cada tempo e espaço diferente, com todos os conflitos e tensões que lhes são próprios? 

Professor José Pacheco: Tenho vivido obcecado pela criação de comunidades de aprendizagem, uma nova construção social de aprendizagem capaz de substituir os obscenos rituais da velha escola.  A expressão “comunidade de aprendizagem” tem sido usada para descrever o fenómeno dos grupos de indivíduos (coletividades), que aprendem juntos. Mas é muito mais do que uma mera coletividade, porque qualquer projeto educacional é um ato coletivo, obra de uma equipe, que partilha valores e que, pela assunção de princípios de ação, o concretiza. Falo de uma equipe, de uma partilha de valores, que pressupõe uma visão de mundo comum, a produção de saberes e recursos úteis a uma coletividade de interação cocriativa, caraterizada pela transculturalidade, envolvida em aprendizagens mútuas, numa convivência intergeracional colaborativa. Falo da criação de laços, do tecer redes.

Uma comunidade de aprendizagem é algo que se aprende e se constrói no cotidiano, em múltiplos espaços, dirimindo conflitos e tensões, um ato de mútuo consentimento.

O Cineasta Franco-suíço Jean-Luc Godard tem uma frase célebre: “O cinema é um instrumento para interpretar e analisar a realidade com liberdade “. Ele foi um dos cineastas que questionou a norma da narrativa. Se criarmos um paralelo com a criança, como podemos apoiá-la a garantir, para que possam criar suas próprias imagens e narrativas? Qual é o papel dos mestres e educadores nessa construção?  

Professor José Pacheco: Nos projetos que acompanho (e onde aprendo), os professores deixam de professar, para assumir uma dupla tarefa: e de tutor e a de mediador de aprendizagem. Propicia condições favoráveis à construção do conhecimento. Não prepara projetos para os alunos; constrói projetos com os aprendizes. O seu papel é diverso: coelabora roteiros de pesquisa, avalia, apoia os jovens na elaboração dos seus planejamentos, estimula o trabalho em equipe, fomenta processos de conhecimento mútuo, valorizar a diversidade cultural, contribui para a aprendizagem em ambiente colaborativo. Nesse contexto, os jovens assumem autonomia, aprendem a interpretar e analisar a realidade com liberdade. Porque não se prepara para a cidadania. Educa-se no exercício da cidadania.

Na infância, onde muitas coisas ainda não têm nome, o sensível é o idioma universal de todas as infâncias. Dos afetos e das artes, qual a importância da beleza na vida que dialoga com essa dimensão de sensibilidade? 

Professor José Pacheco: Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de convivência, diálogo e participação, enquanto condições de aprendizagem. Porque os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares que ainda temos, carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos, exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender.

Diz-nos Maturana que a educação acontece na convivência, de maneira recíproca entre os que convivem. Urge, pois, humanizar a educação, concretizar uma educação integral, promover desenvolvimento humano sustentável. E, se o ser humano é mais do que cognição, necessário se torna considerar o papel das artes no domínio do desenvolvimento emocional, afetivo, ético e estético… da sensibilidade.

Ao falarmos sobre o tempo que estamos vivendo hoje, no Brasil e no mundo, como o senhor acredita que podemos apoiar as crianças a pensarem e elaborarem os acontecimentos? Como podemos inserir às nossas práticas e processos com as crianças a discussão sobre ética e liberdade?

Professor José Pacheco: Retomo a afirmação da necessidade da prática de uma educação integral, que seja geradora de um autoconhecimento propiciador do reconhecimento da existência do outro, de atitudes éticas alicerces do caráter. O desenvolvimento de critérios éticos e estéticos é transversal dentro do currículo, podendo ser aprendido enquanto se aprende qualquer disciplina. E participar ativamente da vida social, cultural e política, de forma solidária, crítica e propositiva, reconhecendo direitos e deveres, identificando e combatendo injustiças, e se dispondo a enfrentar ou mediar eticamente conflitos de interesse não pode ser matéria de “anos iniciais ou anos finais”, ou “conteúdo dado no 7º ano”.

O poeta Miguel Torga assim define fronteira: de um lado terra, do outro lado terra; de um lado gente, do outro lado gente… Mas eu vi na TV que, em ambos os lados de um muro perpendicular ao edifício sede do Poder, em ambos os lados dessa absurda fronteira, havia duas “terras de ninguém”, espaços vazios, a precisar de preenchimento. Talvez esse espaço vazio possa vir a ser espaço a ocupar numa reconstrução partilhada entre o vermelho e o amarelo, se os jovens de hoje não forem apenas preparados para a cidadania, mas educados na cidadania, no exercício de uma liberdade corresponsável. 

Existe outro Brasil fora do Jornal Nacional. E, para além de um obsceno confronto, existe um Brasil da fraternidade, onde é possível criar espaços de celebrar o encontro. Por isso, acredito ser possível colocar compreensão no lugar da intolerância e trocar o ódio pelo diálogo. Preciso é não haver dois lados. Outro Brasil é possível. Mas, para que esse Brasil vire realidade, cabe à escola um papel essencial: o de educar integralmente na abertura à diversidade.

Para conferir:

Publicações do Professor José Pacheco disponíveis estão online:

Aprender em comunidade (Ed. SM)

Dicionário de Valores, onde ele apresenta conceitos importantes do ensino-aprendizagem

Entrevista: Vanessa Fort

Foto: Alexandre Mazzo

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Olhares Olhares 2016

Cinema e representações

Uma certa organização das imagens contribui a construção de sentido e representações. Como os elementos da linguagem do cinema facilitam essa construção de sentidos e a apreciação da vida dos outros que, personagens, nos apresentam realidades e modos de pensar distintos?
Sérgio Rizzo, crítico de cinema e professor, conversou um pouco a gente sobre a gramática do cinema. Na Ciranda 2016, Sérgio ministrou a Oficina de Crítica cinematográfica.
Entrevista: Vanessa Fort
Câmera: Vicky Romano
Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filmes
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Olhares Olhares 2016

A presença no mundo da infância

“Redescobre-se a presença no mundo da infância” – Youssef Ishaghpour – crítico iraniano

Poético e singelo, o filme “Balão Branco”, de Jafar Panahi com roteiro de Abbas Kiarostami, conta a história de uma menina de 7 anos que consegue da mãe dinheiro para comprar um peixinho dourado em comemoração ao ano novo. Em uma verdadeira odisseia, a pequena Razieh vive uma série de ameaças dos adultos.

A verdade ou a previsibilidade da criança traduz-se pelo nosso olhar e repertório. O que os saberes infantis, e a sua relação com o mundo que, adverso, nos desafia a cada passo rumo ao nosso objetivo? Como a singeleza da infância que, em sua vulnerabilidade diante de tudo, é uma metáfora de todos nós? A solidão e os perigos, as representações que são universais e que, por outro lado, no contexto Iraniano, representam papeis sociais de sua complexa história e realidade. Em todas elas, quase sempre, a criança sempre expressa a fé pura no seu desejo, e outra crença pura que – mesmo em manifestações de desconfiança que nos educam a ter – sempre mostra a disposição infantil em tentar acreditar no outro. Assim, a pequena menina segue em frente. E a gente também.

A metáfora que resta, e que parece forte ao final, é da poética infantil: o balão branco que “resgata” o peixe, a ideia de primavera que, não só no Irã, abre a alegria do novo e das esperanças renovadas.

O filme “Balão Branco” faz parte da Ciranda 2016, ano em que celebramos os mestres. Entendemos o cinema como um deles que, cheio de dimensões, nos ajuda a descobrir e dar sentido à nossa presença no mundo.

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

THE WHITE BALLOON, (aka BADKONAKE SEFID), Aida Mohammadkhani, 1995. ©October Films

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Por uma pedagogia poética

“Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo.”, Fernando Pessoa
A criação poética acrescenta novas dimensões ao mundo. A vida não é um dado: a criamos e a vivemos por meio de nossas emoções e interações. Criar poesia, aquela que revela diariamente novas camadas e possibilidades, nos apoia a transcender a posição de meros narradores dos acontecimentos e do tempo. Não somos apenas narradores. As crianças também não são narradoras de discursos que adultos criam. O seu protagonismo está revelado nessa possibilidade de criar poesia e a si mesmo. Como favorecer a criação infantil de si mesmo e de sua realidade?  As crianças que, em toda sua espontaneidade, penetram a poesia, criam e recriam sua realidade, subvertem normas, não concordam. A poesia pode florecer de um processo de recusas daquilo que desnatura a vida; uma beleza que, muitas vezes, é áspera.
Como podemos nos colocar atentos a essas expressões que, muitas vezes, negam normatizações, ou negam o olhar adulto que se impõe de maneira contundente e poderosa ao universo infantil?
Severino Antônio participou da Roda de Conversa: Protagonismo Infantil, na Ciranda 2015, que ainda contou com a participação de Lucilene Silva e Cacau Leite, como mediadora. Na ocasião, conversamos com Severino sobre as desobediências poéticas, aquelas que se apresentam para o exercício do que é genuíno em ser.

Sobre o Severino:
Graduado em Letras, mestre e doutor em Educação pela Unicamp. Há quarenta anos trabalha com ensino de Redação e Leitura, Literatura, Filosofia, e também dedica-se à formação de educadores. É professor do Programa de Mestrado em Educação Sociocomunitária da UNISAL-SP e autor de diversos livros, dentre eles: “Constelações – uma escuta poética da infância”; “Poetizar o pedagógico” e “Uma pedagogia poética para as crianças”.
Texto e entrevista: Vanessa Fort
Câmera: Vicky Romano
Foto: Aline Arruda/Ciranda de Filmes