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Olhares Olhares 2016

Os mestres do intangível

 

“A língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não conhecemos por meio de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação efetiva com as pessoas que nos rodeiam”, disse o filósofo Mikhail Bakhtin. 

As linguagens são constituídas pelos diálogos e afetos. Tudo se constitui linguagem e sentido em nosso estar no mundo. A linguagem é mestra do existir, do mediar-se, do conviver. Mediar nossas emoções, conectar o sensível, o intangível, o outro. O que a linguagem não comunica, o afeto acolhe e manifesta. Por outras vezes, desconsideramos os conflitos em favor de uma inquestionável poesia. Mas e os nossos terrores, tensões, medos e frustrações? A poesia, muitas vezes, está no olhar de quem observa. O olhar do outro nos ajuda a enxergar outras cores e texturas, criar diálogos e coexistir. A arte e suas linguagens permitem conexões com toda a complexidade do ser.

O que é beleza? Há beleza na complexidade de nossas contradições? Francis Bacon expressou as intempéries da condição do humano, com cores negras e emoções aprisionadas. Basquiat dedicou-se às texturas, à demolição das tradições e à vida nas grandes cidades. Sivuca, com todo o seu coração popular, mesclou-se com maestria ao erudito, levando a sanfona aos grandes concertos, criando um outro idioma. A dança e o teatro conseguem transitar por onde não conseguimos declarar.  E o que é beleza nessa grande diversidade de linguagens e manifestações? Como ela pode estar a favor das manifestações e descobertas infantis, para que as crianças possam poetizar, sim, sobre seus pensamentos e ideias doces, mas também manifestar e investigar seus temores e espantos? Como as linguagens podem estar disponíveis às crianças e à todas as formas de comunicação infantil na construção de memórias afetivas que apoiem a criação de fortalezas íntimas?

A Ciranda de Filmes 2016 dedica-se a fazer essas reflexões sobre as artes e as linguagens que ajudam a tecer, conhecer e desmistificar a vida e potencializá-la. O que a arte nos ensina? Como ela nos inspira? Para levar a maestria da arte para o centro do debate, discutindo seu papel transformador, entram nessa prosa artistas-educadores da música, da dança e das artes visuais. A Roda de Conversa “Mestre do Intangível” contará com a presença de Claudio Feijó, Teca Alencar de Brito, Georgia Lengos e a mediação de Gabriela Romeu.

Após 10 anos de discussões, as linguagens artísticas deverão estar presentes no currículo escolar. O projeto de lei 337/06 foi aprovado no Senado e agora segue para sanção. Nada como esse momento oportuno para refletirmos e conversarmos sobre as linguagens artísticas que têm a ver, mais do que com uma questão disciplinar, com a criação de sentidos de vida a partir dos diálogos do sensível.

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Entre narradores e poetas

O caminhar nos preenche em narrativas. As conexões e relações que tecem o caminhar, criam sentidos, nos convidam para o desafio de ser e perceber de várias maneiras e nos alivia do fantasma da opinião única.
Em busca dessas relações que potencializam o que é genuíno, a Ciranda de Filmes 2016 reúne mestres que, narradores e poetas, alumiam o caminho, mediam o intangível e criam geografias do ser.
O cinema é um desses mestres que narram a vida, construindo significados na relação do tempo, da memória e emoção dos personagens com a gente. Os mestres que inspiram e educam, nos ajudam na composição de nossa própria história. Há aqueles que mediam pelo sensível e oferecem elementos para as nossas declarações e percepções do mundo.
A Ciranda de Filmes se propõe a construir diálogos de afirmação e descobertas nesse mundo repleto de poesias, desobediências poéticas e conflitos.   Com filmes, Rodas de conversa, vivências e oficinas, a Ciranda de Filmes 2016 nos convida a estar atentos e sensíveis a esses que inspiram e fortalecem. Entre as presenças e participações já confirmadas estão a do Brincante Antônio Nóbrega e a do filme “Sonhos em movimento – Nos passos de Pina Bausch”
Texto: Vanessa Fort
Fotos de destaque: still do Sonhos em movimento, nos passos de Pina Bausch
Antônio Nóbrega: Divulgação/Walter Carvalho
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Olhares Olhares 2014

Rotas da transformação

por Gabriela Romeu
 
Se uma trajetória, uma rota ou um caminho pudessem ser desenhados a partir da terceira roda de conversas do Ciranda de Filmes 2014, que reuniu Regina Migliori, Ana Lucia Villela, Ana Thomaz e Germain Doin numa prosa sobre movimentos de transformação, talvez esse percurso pudesse ser sinalizado por placas (aquelas de estrada) com expressões ou termos como ressignificar, quebra de paradigmas, ir além (significado de “trans”), entre outros recorrentes no papo.

É difícil, no entanto, recorrer a uma só palavra (educador ou cineasta, por exemplo) para definir a atuação dos quatro palestrantes – abaixo, conheça mais a história de cada um deles. Suas trajetórias pessoais e profissionais, ambas bem imbricadas, foram se desdobrando em ações e atuações que às vezes nem tinham nomenclatura. Em suas biografias, o capítulo referente a viradas e reviravoltas também têm em comum como resultado intensos movimentos de transformação.

Talvez uma frase ajude a sintetizar um pouco a conversa: “Um movimento de transformação diz respeito ao ‘mundo do não sei’. E recuperar essa capacidade de não saber é muito importante”, afirmou Regina Migliori, inaugurando a prosa. Foi no percurso de algumas décadas que Regina, atuante em projetos de desenvolvimento humano centrado em valores, cultura de paz e sustentabilidade, descobriu o fio da meada de suas pesquisas: “Há em nós, seres humanos, a possibilidade de agirmos no mundo de maneira inteligente, criativa, transformadora e benéfica”.

Regina transitou por diferentes mundos (direito criminal, educação, artes, negócios e tecnologia) em seu percurso profissional. Nessas andanças, quando ainda advogava na área de direito criminal, deparou-se certa vez com os questionamentos de uma menina de 11 anos de idade. Filha de um presidiário, “que já tinha realizado na vida tudo o que a gente acha que um ser humano não deve fazer”, a garota de 11 anos pediu para que ela entregasse ao pai uma mensagem.

Na carta, o seguinte questionamento: “Pai, todo mundo tem um lado bonito e um lado feio. Por que você só mostra o seu lado feio para o mundo e só eu consigo ver o seu lado bonito?”. Seguindo a indagação tão genuína da menina, Regina completa: “Essa garota não tinha perdido o seu dom de se maravilhar com um outro ser humano e de identificar nesse ser humano algo que nem mesmo ele teve condições de reconhecer”.

Regina explica que identificar isso hoje em nós, seres humanos, assim como fez de forma simples e direta a menina, deixou de ser apenas uma discussão filosófica a respeito da perspectiva ética e benéfica. “Hoje é demanda do mundo. Nós nos metemos em confusões como humanidade que são absolutamente relevantes. Pela primeira vez, na trajetória da humanidade, somos desafiados a construir um tipo de vida que garanta a nossa sobrevivência.”

A trajetória de Ana Lucia Villela foi pontuada por alguns chacoalhões da vida que também a colocaram na rota que há algum tempo percorre. Fundadora e presidente do Instituto Alana, que tem como missão honrar a criança, começou a se sensibilizar pela causa da infância ainda menina, aos oito anos de idade, quando perdeu os pais num acidente de avião. “Comecei a olhar o mundo de um jeito diferente.”

Dirigindo-se à plateia, questionou: “O que move cada um de vocês? O que te fez repensar a vida? Um quadro, um filme, uma vivência?”. Ana Lucia indica diversas experiências que a impulsionaram num movimento de transformação. Lembra de uma temporada nas Filipinas, aos 11 anos, quando integrou um intercâmbio do CISV, programa internacional de convivência de crianças e jovens que trata da cultura de paz e da tolerância entre povos.

No país asiático, hospedou-se na casa da ex-primeira-dama Imelda Marcos, famosa por ostentar uma coleção de centenas de sapatos. Para o muro além do condomínio de casarões onde viveu por um tempo, a cena de crianças num lixão ficou impressa em sua memória. “É claro que isso também já existia no Brasil. Mas eu precisei estar nas Filipinas, num bairro cercado, de um lado casas gigantescas, do outro um monte de criancinhas procurando comida no lixo. São cenas assim que não passam batidas na vida da gente e que nos fazem querer ajudar a mudar a realidade.”

Foi pelo caminho da educação que seguiu o chamado para batalhar por uma sociedade mais justa. Chegou a frequentar na escola pública o curso de magistério, causando estranhamento na família. “Mas foi lá que entendi o que é uma escola pública”, conta, decepcionada com a realidade enfrentada por milhares de crianças. Dali para o Alana, que nasceu num terreno herdado na rua da Borboleta Amarela (símbolo da transformação que está na logomarca da instituição), foi um pulo.

Intrigada com estranhos hábitos e valores das crianças nas escolas, que só “comiam salgadinho no lanche, usavam saltinho e batom desde os quatro anos de idade”, decidiu pesquisar a questão. “Achava que tinha alguma coisa errada. Com esse jeito diferente de olhar o mundo, ficou intrigada quando passou a Quem é que está educando as crianças para que fiquem assim?”. Desse questionamento nascia o projeto Criança e Consumo, que, ousado, não se deixou intimidar por críticas e ameaças e hoje comemora diversas conquistas.

Ana Lucia segue sendo provocada a olhar tudo de um outro modo. No projeto “Outro Olhar”, recém-lançado pelo Alana, parte de outra perspectiva ao tratar da vida de meninos e meninas com síndrome de down, alteração genética com a qual nasceu sua filha caçula. “A gente está tentando a todo momento inventar soluções diferentes, inovadoras, para aquilo que nos incomoda e para aquilo que a gente acha muito lindo e quer mostrar para o mundo.”

Foram também experiências marcantes que fizeram Ana Thomaz mudar de rota. Há cerca de dez anos, ela encarou o desejo do filho de sair da escola para buscar algo que lhe fizesse sentido. Começava aí um processo de desescolarização. “Antes de tirar meu filho da escola, comecei a tirar a escola de dentro de mim”, lembra. O que aquilo significava? “Tirar crenças, hábitos e maneiras de pensar que eu confundia com o processo escolar.” Descobriu que precisa de uma vida inteira para se desescolarizar.

Pensamento e ação devem estar sempre alinhados, diz Ana. “São mudanças de paradigma de ação. Às vezes, me vinha um pensamento e eu tinha que alinhar esse pensamento à minha ação e ao meu sentir, olhar firme aquele pensamento. Se eu pensava uma coisa e agia de outra forma, eu tinha que parar e pensar, tinha algo a mudar. Podia surgir um pensamento, uma emoção, uma questão prática, cotidiana, e eu me organizei para ficar atenta e sempre alinhada. Agir, pensar e sentir a vida de uma maneira coerente.”

A falta de coerência entre ação e discurso era também o grande incômodo na vida escolar do cineasta argentino Germain Doin, diretor do documentário “A Educação Proibida”, que foi financiado coletivamente e virou um fenômeno de audiência na internet. Aos 21 anos de idade, tomou uma câmera pequena na mão e seguiu por uma rota visitando escolas de oito países da América Latina. No caminho, descobriu diversas escolas com modelos educativos alternativos e transformadores, que não eram um “estacionamento de crianças” e que fogem de estruturas verticais, baseadas na competição, divisão por idades, currículos desconectados da realidade.

Todo esse processo desembocou na Reevo, uma rede colaborativa de experiências de educação transformadoras, alternativas e democráticas na América Latina. Num curto tempo de atuação, o grupo criou um mapa interativo e livre para que qualquer um possa compartilhar experiências educacionais transformadoras com o mundo.

“Queremos que essas informações gerem uma ferramenta para esse movimento de transformação. Uma ferramenta que nos permita se conhecer e se encontrar. E pensar num tipo de educação diferente, mais vinculada à autonomia, à construção colaborativa de conhecimentos”, conta Germain, que fechou a conversa por um trilha que tem começo, mas não fim.

No que podemos chamar de “biografia de virada”, conheça abaixo um pouco mais da trajetória transformadora dos palestrantes da terceira roda de conversas.

Regina Migliori
(Professora de ética e reponsabilidade corporativa nos MBAs da FGV, consultora em cultura de paz da Unesco, diretora-adjunta de sustentabilidade do Ciesp)
Sustentabilidade, educação de valores, cultura de paz, cérebro ético. Nada disso tinha nome quando Regina Migliori ainda tateava por esses temas na juventude. Resumindo década a década, ela conta assim sua trilha transformadora: Nos anos 70, era papo de doido. Nos 80, era coisa de gente alternativa. Nos 90, virou tendência. Hoje é cenário – “e é doido quem não se preocupa com isso”, ela adverte. Durante um tempão perseguiu um “eu acho que deve ter algo que viabilize os seres humanos a viverem em paz”. Construir uma vida sustentável não é mais utopia, é demanda atual. Mas, bem-humorada, Regina diz que continua achando que tudo isso é papo de doido.

Ana Lucia Villela
(Pedagoga, mestre em Psicologia da educação. Fundou e preside o Instituto Alana. É membro da Ashoka)
Não foi um, mas vários momentos de virada na vida que a impulsionaram. O mais forte foi a perda dos pais num acidente de avião, quando tinha oito anos. Esse chacoalhão da vida a botou a pensar: “Quem vai cuidar de mim? Como a escola vai me amparar? Como a comunidade vai me amparar? O que acontece com as crianças que não tem recursos financeiros quando perdem os pais? O que é mais importante na vida? Como a criança é vista?” Essas e outras questões foram surgindo na trajetória de Ana Lucia Villela, fundadora do Instituto Alana, que coloca no centro a criança e toda sua potência transformadora.

Ana Thomaz
(Professora da técnica alexander, pesquisadora do universo do aprender e ensinar, experimentando novos paradigmas da educação)
Com a experiência da técnica Alexander, lendo Espinosa, Niezschte, Deleuze, estudando a biologia de Humberto Maturana, aprendendo com Krishnamurti…. Ana Thomaz fez um contrato consigo mesma: viveria de modo intenso e verdadeiro e criaria um novo paradigma de vida para si. Anos mais tarde, seu filho, aos 13 anos, pede para tirá-lo da escola porque gostaria de dedicar sua vida a algo que ainda era desconhecido para ele, mas que ele tinha certeza de que existia! Assim fundou-se um grande movimento de transformação.

Germain Doin
(Diretor do filme “A Educação Proibida”, coordenador da Reevo)
Aluno de uma escola tradicional da classe média de Buenos Aires, Germain foi na sala de aula o melhor aluno no boletim, mas também o pior por criticar as incoerências do sistema educativo. Pouco faziam sentido os valores da teoria e as regras da prática. Seu filme, A Educação Proibida, visto por mais de 9 milhões de pessoas na internet, traz voz de um estudante que sobreviveu à escola e que sabe que outra educação é possível – e que está em nossas mãos torná-la realidade. Essa voz ecoou longe: mais de 9 milhões de pessoas viram o filme na internet, o documentário rodou muitas países e rendeu muita discussão. E continua ecoando e criando outros movimentos com a Reevo, uma rede de educação. Gostaria de convidar o Germain a contar mais sobre essas transformações que vêm promovendo.

Na foto, Ana Thomaz na Ciranda de 2014 – fotografia de: Aline Arruda

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Olhares Olhares 2014

Para saber passarinhos

por Gabriela Romeu
 
A tarde virou uma “manhã desabrochada a pássaros”. A plateia, um coro de passarinhos. O palestrante, um brincante – ou maestro de um concerto de corujas, cucos, gralhas, quero-queros e bem-te-vis. Assim foi inaugurada a segunda roda de conversas da Ciranda de Filmes, que reuniu o educador Marcos Ferreira Santos (nosso maestro), a artista plástica e curadora Stela Barbieri, a também educadora Maria Amélia Pereira, a Péo, e a cineasta Fernanda Heinz Figueiredo para uma prosa sobre espaços de aprendizagem.

A imagem dos pássaros bem sintetiza o encontro, que rompeu os muros da escola já nas lembranças e experiências do aprender-viver dos quatro palestrantes – leia mais na biografia escolar (ou contra-escolar) descrita abaixo. A natureza, como espaço de aprendizagem fundamental à infância, foi uma constante em toda a prosa (e em muitos versos). De que adiantam os conteúdos escolares se já não sabemos mais passarinhos?

Ainda evocando os pássaros, o professor de mitologia comparada tirou da mochila sua flauta andina e espalhou na sala uma sonoridade que parece ao mesmo tempo tão longe e tão perto de todos nós. Resgatou as imagens de um dos filmes exibidos no festival – “O Menino e o Mundo”. Na premiada animação de Alê Abreu, um menino pequenino e saltitante segue o som de uma flauta que foi plantado em seu quintal e em seu coração. Está em busca da figura paterna. “Essa flauta também me acompanha por muito tempo”, conta Marcos, que foi alfabetizado pelo pai na infância.

A importância do sonho foi instaurada e também percorreu todas as falas. “Todas as comunidades tradicionais ameríndias ou afro-brasileiras se pautam pelo sonho. O sonho define quem você vai ser, o que vai fazer na comunidade. Qual é o único povo que não se pauta pelo sonho? O ocidental. Pra mim, o ‘dream is over’ não é over nada. Tudo começa com um sonho”, enfatizou o educador. “A grande dívida que temos com a ancestralidade é sermos nós mesmos.”

Como que nos embalando em sua cadeira de balanço, Stela Barbieri teceu imagens sobre cinema, imaginação e aprendizagem. A cadeira de balanço surge algo singular na infância de Stela, que brinca ao dizer que o melhor que sabe fazer é “balançar”. No delicado balanço de sua voz maviosa, falou do mistério do cinema. “Quando a gente senta nessa cadeira e mergulha no filme, o tempo para, você entra num outro tempo. O cinema é a arte que mais se aproxima da imaginação, a gente imagina em movimento. O cinema nos embala e alimenta nossa imaginação e nosso sonho.”

A aprendizagem, segundo Stela, tem um balanço entre o “deixar ser e ao mesmo tempo ajudar a ser”. “Talvez tenham assistido ao filme ‘Birth Story’ [exibido na Ciranda de Filmes]. Fico pensando que a parteira deixa o nenê nascer e ao mesmo tempo o ajuda a nascer. O educador também tem esse papel.”

O educador, segundo Maria Amélia Pereira, a Péo, necessita beber na fonte da poesia. Fundadora da Casa Redonda, é nesse espaço de viver a infância que Péo diz se formar dia a dia como educadora. É uma eterna aprendiz. “Quem vem me formando como educadora são na verdade os poetas, que estão mais perto dos sonhos e das crianças. As crianças são também pequenos poetas porque, diante delas, a cada dia um mistério se revela.”

Péo enfatizou que o ser humano é um aprendiz nato. “Herdamos esse mundo para uma grande aventura, que é a aventura da consciência. O trajeto humano se inicia na criança, no qual o brincar é a linguagem primeira. O brincar é a linguagem da espontaneidade, da imprevisibilidade, da disponibilidade, de um movimento de ações que não tem nenhum caráter utilitário, um tem que, um faço isso para que”, afirma.

Atenta observadora da alma infantil, a educadora conta que no cotidiano com as crianças os aprendizados brotam em cada gesto, em muitos encontros e diálogos. São incríveis relatos de percepções de vida, como a história de uma criança que, quieta e envolta na areia do tanque da Casa Redonda, disse aos amigos que a importunavam: “Será que não posso nem morrer tranquila?”. Péo nos leva por suas reflexões: “Aquela criança estava entregue a sua essência misteriosa. Por isso é preciso ter cuidado, respeito a essas horas sagradas do brincar. E são relações que a gente pode interferir de uma forma inadequada se não descobre o silêncio diante da criança que brinca”.

Numa fala contundente, a educadora chamou atenção para o erro de separar o espaço da natureza de um espaço de construção do humano. “Estamos vivendo um momento de profunda desconexão com a natureza e por isso estamos adoecendo. O problema do homem foi se desconectar da natureza, ali está o chão da criança.” E deixou seu recado para os educadores: “É preciso dar à infância o direito humano de brincar e de pisar na terra com tranquilidade. A falta da natureza é uma violência contra o ser humano”.

Foi numa escola que potencializa também o humano que cresceu brincando e aprendendo a documentarista Fernanda Heinz Figueiredo, diretora do filme “Sementes do Nosso Quintal”. No corpo vivido na Te-Arte, como Fernanda costuma dizer, dialogou intensamente com a natureza. A cineasta conta que, quase três décadas depois de estudar (ou melhor, brincar) na Te-Arte, retorna à escola carregando sua filha caçula, Gaia, aos oito meses, no colo. Na mão, uma câmera. Queria fazer um filme que resgatasse também sua história de menina.

Foram quatro anos para produzir o longa-metragem, que teve pré-estreia na Ciranda de Filmes. Nesse processo, descobriu que o desafio era mostrar que muitos paradigmas a serem derrubados na educação eram já exercitados e vividos na sua escola de infância. “No roteiro, a gente tentou refletir um processo de experiência. Falamos de paradigmas que precisamos quebrar, como o de segurança, que bloqueia a apropriação do corpo, e o de higiene, que impede que a gente tenha contato com a natureza.”

No dizer de Marcos, a documentarista mostrou forte vocação tecelã, uma verdadeira Ariadne, “essa senhora do labirinto”. “Ela nos dá o fio narrativo para que agente entre no coração da experiência. E não há como negar, o coração da experiência está no centro do labirinto, tem um minotauro lá dentro. Você é quem tem que enfrentar esse minotauro, com suas fraquezas e idiossincrasias. E a Fernanda faz isso ao retratar a vida das crianças com um cine-olho respeitoso, que não olha de cima, e cheio de cumplicidade”, aponta o educador.

***

Abaixo, um breve biografia escolar dos palestrantes dessa roda de conversa.

Marcos Ferreira Santos
(Professor de mitologia comparada da USP, pedagogo e arte-educador)
Em sua “biografia contra-escolar”, Marcos Ferreira Santos conta que foi alfabetizado pelo pai. Começou a ler aos seis anos nos livros escolhidos pelo pai meio que por intuição – Sócrates, literatura chinesa, mitologia, socialismo. Ao chegar à escola, logo aprendeu a primeira lição: deveria ficar calado. Seguiu calado pelas séries seguintes. Descobriu outros espaços de aprendizagem na vida – no teatro, no movimento anarquista, na música andina de imigrantes chilenos e bolivianos, em muitos sebos. O chão da fábrica no ABC paulista, onde começou a trabalhar aos nove anos, foi outra escola. Com um mestre chileno, descobriu Pablo Neruda e Violeta Parra, ouviu falar sobre temas como autonomia indígena, repressão, ditaduras militares. Com tal “histórico escolar”, ele conta que talvez, por vingança, seja hoje uma tentativa de educador.

Stela Barbieri
(Artista plástica, curadora educacional da Fundação Bienal de São Paulo, escritora e contadora de histórias)
Lá na Araraquara da infância da Stela Barbieri, existia uma cadeira de balanço. Stela balançava em sua cadeira e fazia bolos de terra. Balançava em sua cadeira e corria atrás das galinhas. Balançava em sua cadeira e construía cabanas e muitos outros mundos. O mundo todo passava ali, só naquele balanço. Mais do que a escola, parece que essa cadeira de balanço foi uma verdadeira incubadora de ideias, pra toda uma vida.

Maria Amélia Pereira (Péo)
(Pedagoga, fundadora e orientadora do Centro de Estudos Casa Redonda)
Criada na Salvador dos anos 40 e 50, teve o mar como um grande brinquedo. A praia, com todas as suas gentes, como um importante espaço de aprendizagem, um horizonte aberto. A escola, ainda jardim da infância, ficava pertinho do mar. Pura sorte da menina e de seus castelos de areia. Hoje, na Casa Redonda, a areia do brincar vem da praia – e não do rio. É que areia do mar tem sal, dá liga. Areia de rio é escorregadia. Sabe quem vivenciou no corpo. Assim, há tempos define a natureza como espaço de aprendizagem fundamental para a infância.

Fernanda Heinz Figueiredo
(Diretora do filme “Sementes do Nosso Quintal” e cocuradora da Ciranda de Filmes)
Fernanda Heinz Figueiredo conta que tudo sendo tecido e acreditado. Na chácara do avô, no viveiro de plantas dos pais, na sua primeira escola, a Te-arte. Quando perguntavam qual era sua religião, sempre respondia com convicção: a natureza. Essa certeza vem da paz ao cuidar das plantas, das brincadeiras com girinos e barquinhos nos laguinhos de escalava as árvores da chácara, de ouvir o silêncio absoluto preenchido pela sinfonia dos sapos e insetos notívagos, de se enlamear no campinho da te-arte ou pelo fascínio exercido pelo sangue das galinhas recém-sacrificadas para as festas juninas da escola. Não sabe ao certo, mas tudo ficou ali guardado de maneira intensa. Continua respondendo que sua religião é a natureza. Sementes do Nosso Quintal, seu primeiro longa, comunga com essa ideia.

Na foto, Maria Amélia Pereira, a Péo na Ciranda de 2014 – fotografia de: Aline Arruda

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Olhares Olhares 2016

A fronteira indômita entre ser e conviver

Como os espaços podem apoiar e potencializar as fronteiras indômitas do ser e conviver infantil? Como espaço de poder, a escola e a cidade têm que ser espaços de garantia da cidadania e das subjetividades que, múltiplas, devem ser espaço de expressão de afetos e políticas. A Ciranda 2016 abre uma prosa sobre as maestrias do chão, sobre pedagogia da materialidade do espaço e da experiência que Paulo Freire nos atentava. A escola e a cidade como espaços do imprevisto, da teatralidade no ensinar e do aprender, “como espaço de mudanças, de invenção e alterações espontâneas”, como diz Bell Hooks.

Beatriz Goulart, uma das grandes estudiosas brasileiras dos espaços de educação, como arquitetura e urbanista, continuou aqui a contribuição à Roda de Conversa Maestria do Chão.  Ela conversou com a gente sobre as narrativas dos espaços, a arquitetura como linguagem e expressão do processo de desenvolvimento infantil e da educação, nas geografias e sobreposições de cartografias tão caras, que  “explicita todos elas e quase nos conta o caminho a seguir para vivermos melhor como indivíduos e como sociedade”.
–  A narrativa dos espaços e os espaços de poder:  Faz parte da arquitetura, a criação de narrativas e sentidos. Além do aspecto funcional de um projeto arquitetônico, como podemos entender a desenvolvimento de um projeto? 
 
Beatriz Goulart: O desenvolvimento de um projeto depende muito da concepção que se tem, e, mais ao fundo,  qual a compreensão que se tem do papel do arquiteto no mundo contemporâneo. Além disso, assim como em outras áreas do conhecimento, no campo da arquitetura e do urbanismo existem uma série de correntes/escolas de pensamento e atuação que muitas vezes são antagônicas. Cada qual com concepções e métodos próprios no que se refere ao desenvolvimento de seus projetos. Na formação do arquiteto-urbanista brasileiro pouco se discute sobre a multiplicidade destas correntes e mais se adota uma como hegemônica e inquestionável.
 

Meu entendimento do desenvolvimento de um projeto parte da concepção de que (nós), arquitetos-urbanistas, somos mediadores num processo de criação/produção coletiva e participativa. Para isso tenho questionado profundamente os métodos de projeto ensinados nas escolas de arquitetura e que guiam o desenvolvimento de um projeto, voltando à sua pergunta. Vou dar um exemplo aplicado ao projeto de uma escola pública. Uma das etapas do projeto é elaborar uma lista dos ambientes necessários para a escola existir. A isto damos o nome de “programa de necessidades”. O fato é que os “Programas de necessidade” de uma escola pública são elaborados à luz da concepção de educação do século 20, que, por sua vez, foi cunhada no 19!

 
A lista dos espaços assim como suas metragens é adotada sem que nos questionemos se ela ainda faz sentido à luz das reflexões, desejos e necessidades da escola e da educação no mundo atual e no Brasil. Programa que desconsidera as diversidades culturais e ambientais do território brasileiro. Ou seja, o desenvolvimento de um projeto deve ser entendido como uma profunda compreensão de seu objeto. Processo este que penso deva ser feito a muitas mãos, com a participação de especialistas de vários campos do conhecimento e dos usuários. 
– Espaços íntimos e espaços públicos: Ao pensar a arquitetura como você pensa, qual é a possibilidade de vermos a escola como espaço de produção coletiva de linguagens e sentidos para a vida? 
 
Beatriz Goulart: Acho fundamental! O fato é que esta proposta é anterior à arquitetura. Ela tem a ver com o sentido e proposição da escola. Exige uma virada de chave da escola conteudista para a escola reflexiva, inventiva. Os rituais escolares de tempo-espaço e atividades atuais impedem a convivência e a criatividade, pois foram concebidos para vigiar e punir, para controlar, para serem espaços eficientes, silenciosos, de modo a manterem a ordem, de modo a perpetuarem as separações; “cada um no seu quadrado”. O salto para “todos na roda”, onde a cultura poderá ser produzida coletivamente, exige refletirmos sobre a relação educação e cultura, para além da grade curricular e do espetáculo. 
 
 
– Geografia da Infância: Os espaços sensíveis às crianças, os cantinhos, os espaços e tempos de brincar e do conviver fazem parte das geografias infantis. Como a escola e outros espaços dedicados à infância podem dialogar com essas geografias? 
Beatriz Goulart: Penso que na etapa inicial da Educação Básica (0 a 5) esta questão vem sendo debatida e os espaços da primeira infância vêm sendo reconfigurados na perspectiva da cultura da infância, do protagonismo infantil. Falo isso pelo que tenho observado em viagens pelo Brasil. Ao meu ver, o problema é quando a Educação Fundamental se aproxima, ou se adianta, com a proposta dos 9 anos do Ensino Fundamental, passando a incluir as crianças de 6 anos nesta etapa da educação. A infância encurtada, reduzida. Os espaços perdem suas brechas, seus esconderijos. Em nome da atenção plena silenciamos os corpos. Como se para aprender precisássemos ficar imóveis.
Ou seja, muito cedo abandonamos as geografias da infância em nome da geografia da aprendizagem. Tenho estudado e atuado no sentido de aproximar estas geografias. Muita gente está fazendo isso: estender a infância até 10 ou 12 anos e, neste sentido, rever os espaços-tempos e as atividades propostas para o Ensino Fundamental 1. Temos ainda poucos exemplos no Brasil, mas sinto que o movimento é irreversível e se amplia rapidamente.
 
 
 – Cidade e a escola: Quanto que um é extensão da outra, em suas dimensões e conflitos? 
 
Beatriz Goulart: Desde sua invenção, a escola tem sido um lugar para “salvar” as crianças do mundo mal lá fora e não para integrá-las a esse mundo. O que a grande cidade ensina, a escola tenta desensinar, e vive-versa. Escola e cidade atuando em caminhos opostos e os estudantes no meio disso tentando se colocar, escolhendo por uma ou por outra. Nós sabemos que escola e cidade são extensões uma da outra e compõem um todo. Sabemos por que as experimentamos e as sentimos assim. O fato é que não é isso que aprendemos e não é assim que são tratadas pelos especialistas e nem pelas políticas publicas. Por isso nosso sentir é colocado em cheque e acabamos introjetando essa desconexão. Então o sentir e o saber se desconectam também. Muitos têm trabalhado para superar essa situação. A educação integral fundamentada na cidade-educadora é um dos caminhos para isso, onde o território escolar e não-escolar passam a se integrar como espaços-tempos educativos. Desta integração depende nossa integralidade, nossa integridade. Somos simultaneamente aprendizes, educadores e habitantes-cidadãos
 
 
– Como o conceito de cidades educadoras e criativas podem apoiar essa extensão?
 
Beatriz Goulart: O Jaume Trilla, pensador espanhol, que é um dos teóricos da concepção de cidade educadora, diz que cidade educadora é uma ideia-força. E penso que aí está sua potência. A expansão deste conceito no Brasil vem se dando há mais de duas décadas e tem influenciado muito pesquisas acadêmicas, projetos e práticas escolares e políticas públicas por todo Brasil, propagando a ideia de que os espaços além dos muros escolares também ensinam. Apesar da desconfiança, muitos temos nos encorajado a percorrer este caminho. 
 
 
– Quais as cartografias que precisam ser consideradas na construção e conexão dos espaços dedicados à educação e à infância? 
 
Beatriz Goulart: Costumo dizer que nossas vidas são compostas por muitas camadas de mapas. O mapa dos desejos, das necessidades, das possibilidades, das políticas, da violência, dos afetos, das potências, das carências. Mapas diversos dependendo de quem os fazem. Os mapas das crianças, dos jovens, dos gordos, dos altos, dos patrões, das mulheres, das mulheres negras, dos músicos.  Mapas das geografias, das histórias, dos usos do solo. O mapa mais bonito é o que resulta a sobreposição de todos estes. O mapa de quem somos no território em que habitamos.
Com estas cartografias re-olhamos para a escola e para a cidade procurando nelas os pontos a serem reconectados, curados, potencializados, ou até mesmo, eliminados. A sobreposição das cartografias explicita todos eles e quase nos conta o caminho a seguir para vivermos melhor como indivíduos e como sociedade. Aprendi isso na prática, quando participei da criação e implantação do bairro-escola em Nova Iguaçu, baixada fluminense (2005-2009). Os resultados foram incríveis!
 
 
– A arquitetura é uma linguagem multidisciplinar (que, inclusive, empresta muitos conceitos para o cinema). Como você acredita que essa linguagem pode potencializar as geografias infantis, seus diversos espaços de exprimir as suas linguagens (sejam literais ou poéticas) e a narrativa de vida, crescimento e aprendizado (que é genuínos a cada criança, e também compartilhados e potencializados na convivência entre todas)? 
 
Beatriz Goulart: A arquitetura é linguagem concreta. Linguagem que me faz tropeçar, relaxar, imaginar. Neste sentido articula técnica e poética através de aspectos simbólicos e operativos. Manter este equilíbrio é uma das chaves de uma boa arquitetura. Nos espaços projetados e construídos para as infâncias há muito mais ambivalência e disjunção do que equilíbrio e integração entre técnica e arte. É muito comum encontrarmos paredes e mobílias decoradas com pinturas coloridas em ambientes onde os avisos, as estantes, as cadeiras e mesas não respeitam o tamanho das crianças. Além do que, apesar dos avanços da pedagogia e da sociologia da infância, estes espaços ainda são projetados para controlar os corpos indóceis, em nome da segurança e da funcionalidade. Ou seja, nós arquitetos-urbanistas precisamos atualizar nossa concepção de infância. Para que a arquitetura possa potencializar as geografias e linguagens das crianças, o passo 1 é observá-las, interagir com elas, ouvi-las e chama-las como parceiras no projeto. Elas e os adultos que com elas convivem. Fazer “desde e com” e não mais “para” elas. Sim, a Reggio Emilia pode nos inspirar, mas já é hora de plantar e colher nos nossos próprios quintais.
Entrevista: Vanessa Fort
Fotos: acervo pessoal
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Sobre instâncias criadoras da imaginação

Gandhy Piorski é uma dessas pessoas dedicadas ao profundo infantil. Artista, escritor e pesquisador das infâncias, de suas linguagens, símbolos e imaginário, ele tem uma experiência e dedicação de anos nesta pesquisa. Além de diversos projetos, ele está escrevendo um livro que será publicado em breve e outro que já está em produção. Gandhy também colabora em diferentes iniciativas, como o Projeto Território do Brincar.
Fizemos uma prosa com ele sobre a infância, o seu sentido de corporeidade e moradia, a relação da natureza como interioridade e potência criativa, a expressão política e cultural da infância, espaços compartilhados e muitas outras coisas. Compartilhamos aqui a preciosidade dos pensamentos e reflexões do nosso querido convidado.
Gandhy participou da Roda de conversa: Criança e Natureza, na Ciranda 2015, com a Rita Mendonça e o Ricardo Ghelman.
Ciranda: Conte um pouco de sua pesquisa e dedicação em torno da infância e suas linguagens. Quais são seus novos planos e produções como artista plástico, pesquisador e escritor?
Gandhy Piorski  Por um período estive inteiramente voltado para crianças e natureza. No universo natural. Estive em diversos lugares do interior, em comunidades tradicionais, em litorais, serras e sertão. Assim alguns anos transcorreram. Isso tudo se transformou em uma exposição inaugural sobre os 4 elementos no brincar. Também seminários, palestras e caminhos estéticos outros como colaboração com o cinema, com o filme Território do Brincar (Renata Meirelles e David Reeks) e as artes visuais com curadoria de exposições e colaboração com companhias de dança como a Balangandança (projeto Ninhos – Georgia Lengos) e etc.
Mas criança e natureza inquieta muito as pessoas. A pergunta recorrente, era e é: como ficam as crianças das grandes cidades? Essa inquietação não para de nascer entre as pessoas que acompanham o trabalho. Assim voltei-me para um projeto em busca de apontamentos sobre a natureza, a criança e a cidade. Então esse é o trabalho mais recente. Estamos atuando em diversas camadas de narrativas das crianças na cidade de Fortaleza. Até agora são dois projetos. No primeiro trabalhamos por um período de 3 meses com 1200 crianças. Chamamos de Salão de Artes da Criança. Uma espécie de ateliê livre, aberto, angariando o dizer das crianças da cidade.

O segundo está acontecendo de agora até outubro. Estamos atuando em 6 regiões da cidade, junto a escolas públicas e periferias. São festivais de ludicidade, criação livre e construção. Sairá daí um outro amplo acervo de narrativas.
Com isso temos construído novos caminhos de discussão. Esse novo repertório já virou exposição, seminário, palestra, e outros novos caminhos que estão a surgir. O próximo projeto é sempre uma emenda do anterior. É sempre um caminho de rastrear coisas de criança. Essa arqueologia não tem fim. Tudo indica que será por mais interiores do Brasil e das crianças.
De escritos tem um livro pronto para ser publicado em breve e um segundo em construção.
Ciranda: Você acha que a relação do adulto com a infância tem um sentido de respeito, mas também de controle? A proteção absoluta advém deste sentido de controle? Como poderíamos colocar a infância no centro de uma participação política e símbólica, com sua graça e potência, como sujeito e força de si mesmo? Como a arte e o lúdico pode ter relação com isso?
Gandhy: O controle tornou-se o sentido hegemônico de nossa civilização. Haja visto toda a prioridade dada à visão, à visualidade, à visibilidade desde o advento da chamada modernidade. O olhar hegemônico e toda enxurrada de imagens artificiais que vivemos é anseio de controle.
Imaginemos então: o que transborda disso para uma cultura da educação das crianças? Dimensões éticas e cognitivas sofreram drásticas mudanças neste percurso do culto à visualidade. Enfraquecemos o senso de moradia, de corporeidade, de espacialidade, de tato, de natureza.
Imaginemos novamente: o que é a criança sem senso de moradia, de corporeidade, de espacialidade (cidade, comunidade), de tato e de natureza?
Não se sabe mais do que se protege as crianças. Se da vida ou de ameaças. Não se sabe mais o que é ameaça e o que é vida. Vida é lida muitas vezes como ameaça; ameaça está confundida com vida.
Certamente a participação simbólica e política das crianças não poderá ser no âmbito discursivo e institucional. Está mais para a poética das matérias inúteis (Manoel de Barros),do fazer livre, para uma ontologia do brincar, mais para uma meta-cultura dos gestos e onomatopeias.
A arte é vernacular na criança. Usada sem pudor. Como que silvestre, livre. Usada não como arte, pois a criança não está interessada em fazer arte, mas usada como seu código natural de expressão. A semântica da criança tem aura estética. Justamente por ser semântica do ser.
Gilbert Durand em sua antropologia do imaginário diz que toda memória de infância é imediatamente uma obra de arte, pois é nostalgia do ser. E a linguagem do ser é cometida perenemente do simbólico, do intuitivo, do premonitório, da anunciação de novos caminhos. As crianças, em especial até os 5 anos de idade, são como os grandes artistas, premonizam o mundo.
O mais perigoso nisso tudo é que em quase totalidade de nossa civilização, com poucas exceções, pode-se encontrar muitas coisas nos pedagogos, mas uma coisa que pouco se encontra é senso e fazer estético desenvolvidos. Raro é encontrar nesses trabalhadores que carregam pesados fardos, percepção e significação simbólicas apuradas e imaginação criadora nutrida. Eis um dos abcessos!
Mas esse não é o único. A cultura midiática a todo vapor fazendo coisas como bem entende para crianças, o entretenimento como o inquestionável intorpecente e as pobres famílias exauridas de correr atrás do próprio rabo, ou da salsicha dependurada no final da esteira.
Contudo, já é possível ver que novos caminhos estão nascendo…
Ciranda: Comente um pouco sobre sua pesquisa e o como ela está profundamente ligada na relação da criança com a natureza. a produção simbólica de significados, a força do imaginário da natureza que potencializa o sujeito, a sua produção simbólica e de significados…
Gandhy: As pessoas costumam perguntar: seu trabalho é sobre o que as crianças fazem na natureza, mas e as crianças da cidade? Essa pergunta é muito fortemente vinculada ao nó dos tempos do fabrico, da técnica, da indústria, da desmaterialização do fazer.
Não sabemos mais, não reconhecemos mais que somos natureza. A natureza é um lá fora.
E justamente é esse o objetivo do meu estudo, aproximar as crianças daquilo que somos. E o que somos pode ser uma resposta vasta (do tamanho de tudo o que se fez até hoje), ou talvez nem ter resposta. Entretanto, antes de tudo, somos natureza.
Assim, nessa pesquisa, a busca das fontes do reino animal, vegetal e mineral no homem, na criança, tem uma base. Está naquilo que Bachelard chamou do quarto reino da natureza: a imaginação.
Nela as potencialidades da vida natural estão gravadas, o que precisamos aprender é acioná-las. E resolvi aprender como acioná-las com as crianças. Elas sabem muito bem viver a capacidade que a imaginação tem de criar caminhos de ordenamento interior e reequilíbrio. Deixam a imaginação trabalhar, deixam essa cognição e sensitividade anímica modular estados de ser.
Estas modulações podem se materializar em brinquedos, em matérias primas retiradas do mundo natural. Ganham forma, podem ser lidas. Podem até ser mapeadas. Tenho percebido apontamentos para uma cartografia da imaginação no brincar. Uma pedagogia de hormônios simbólicos despertos pelo contato com as matérias da natureza.
Brinquedos livres, construídos pelas crianças, são tratados dos estados de interioridade. São rastros de tatilidade ancestra, de anseios primitivos, de sonhos recorrentes desde o mais antigo rumor de humanidade na terra. Nosso corpo tem memória, nossas células, nosso psiquismo. Memória não só biográfica, mas memória dos antepassados que não conhecemos, memória geológica, cosmológica. Nosso corpo necessita de espaço e lugar para tudo isso habitar e sentir. Isso dizem esses pequenos ensaios de materialidade do brincar com a natureza.
São eles espelhos de ranhuras inscritas na criança, em sua interioridade e biologia, em sua tessitura de memórias, em sua corporeidade. Podem ser ativadas pelo brincar. São potências guardadas em instâncias criadoras da imaginação. São depósitos de expansão e abertura do ser. Janelas novas de conhecimento, valoração, cognição.
Para acompanhar o trabalho de Gandhy, o acompanhe no facebook.
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Vivência corporal com Ivaldo Bertazzo

Postura e movimento, estruturas que caminham de mãos dadas!

Adquirir referência sobre a organização postural certamente ampliam o seu bem estar corporal, o controle da postura favorecem os nossos deslocamentos e a qualidade do movimento. Ficar muitas horas sentado sem essas referencias, achatam seu corpo limitando os seus gestos!

De uma forma lúdica, nos entreteremos durante 1 hora, observando situações básicas para o controle do posicionamento do seu corpo, executaremos alguns exercícios estimulantes e revigorantes para o seu cotidiano!

Assistiremos um breve documentário sobre as etapas do desenvolvimento motor, no bebê, na criança, na adolescência, idade adulta e na plenitude do idoso.
Venha se divertir e adquirir algum conhecimento com Ivaldo Bertazzo.

Foto do destaque: Kiko Ferrite
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Olhares Olhares 2015

O tempo passa, os rostos mudam

“Os jovens têm esse sentido de coragem, de imortalidade. Eu acho que os adultos secretamente sentem inveja disso, inveja desse momento das suas vidas onde você pode passar os dias de verão curtindo com os amigos esses momentos de descuido, de despreocupação.”
“Virando adulto” do diretor Ross Killen é um filme que fala sobre a juventude e o crescimento nas horas de descuido. O filme é um retrato muito habilidoso sobre uma juventude de Dublin.
Os adolescentes pulam, correm, se empurram e se elevam. Uns segundos no ar e então submergem na água de um canal sujo, infestado de ratos e outros roedores. Durante vários anos, diversos jovens fizeram deste o seu lugar.
O tempo passa, os rostos mudam. O lugar continua o mesmo e todo verão está repleto de crianças.
A imagem em câmera lenta e em preto e branco são fortes opções estéticas.  A memória marcada e sentida. Elas acompanham a cuidadosa composição da narração com as sonoridades desse lugar. A música completa o relato.
A voz nostálgica e poética evidencia a autenticidade da língua: é dela a função dramática e a aproximação com os signos desta cultura e idioma. A voz é um recurso valoroso para nos mostrar o que está acontecendo. Uma narrativa de memórias de um adulto que foi jovem, desfrutou desse lugar e lembra dele com tranquilidade. Pelas palavras, entonações e nuances percebemos isso, percebemos sua história. Ainda que seja apenas uma voz, ela se múltipla em muitas vozes que compartilham um ritual de felicidade, sem forçar que este seja um momento determinante para outra etapa da vida.
Mais informações sobre o filme aqui.
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Ao brincar ampliamos nosso repertório

O livro do Guilherme “Jardins de Brincadeira” está disponível online aqui.
O universo da brincadeira não pertence somente à infância. Todo mundo brinca. Adultos também necessitam brincar – e são as crianças que nos relembram disso.
Ao brincar ampliamos nosso repertório, improvisamos, experimentamos novas possibilidades. Os verbos do brincar são os da alegria: divertir, jogar, rir. Mas também são os verbos da criação e das artes: cantar, tocar, dançar, contar, parodiar, encenar, filmar, fotografar, desenhar. E ainda são aqueles que dão a dimensão do inefável: sonhar, imaginar, inventar…
Feliz de quem brinca com tudo: com as ideias, com as palavras, com os objetos que nos rodeiam, com a natureza, com o corpo, com os outros. Feliz de quem brinca consigo no íntimo da sua solidão, quem ri de si mesmo.
Ciranda: Compartilhe com a gente um pouco mais sobre a nossa oficina. Conte um pouco sobre o jogo que vamos conhecer.
Guilherme: Será uma oficina para brincar com dois jogos: o kablan e o cipó, ambos feitos com materiais coletados na natureza e em descartes de marcenaria. São jogos abertos que podem ser vivenciados de diversas maneiras. Esse aspecto “múltiplo” será um ponto focal desta vivência. A dinâmica deste jogos é tão simples que convida pais e educadores a criar jogos similares com seus filhos, alunos e crianças que façam parte de suas vidas.
Ciranda: Qual a relação do brincar com os elementos da natureza? O que são os jardins de brincadeiras?
Guilherme: Os elementos da natureza fornecem as brincadeiras mais incríveis, veja só alguns exemplos: os barcos que as crianças do ceará fazem e podem ser vistos no filme “Território do Brincar”, que estreia na Ciranda de Filmes, um cipó para ir de um lugar a outro na floresta, uma fogueira acesa no fim da tarde, um banho de lama. São experiências fundamentais que nos conectam com a nossa essência.
Jardim de brincadeira é, na verdade, qualquer jardim. Qualquer planta, inseto, pássaro é um prazer para os sentidos. O que fiz, nos útimos anos, foi olhar para espécies botânicas com potencial de encantamento extremo, como o dente-de-leão. E pensar como espaços privados e públicos poderiam ter um paisagismo com essa intenção.
A brincadeira para o adulto cria beleza e alegria na vida, torna o mundo mais sensível e humano e o indivíduo mais conectado consigo mesmo, com o seu propósito. Para a criança a brincadeira está intimamente ligada à aprendizagem, àquilo que ela realmente deseja aprender. E naturalmente – se ela puder brincar livre no seu tempo/espaço – ela se permite expressar criativamente e se recriar constantemente, perceber seus potenciais e limitações.
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Olhares Olhares 2015

O diferente que sou eu

Uma situação limite. Um menino encontra uma alcateia de lobos famintos diante de um animal morto e interage de forma inusitada: uiva como eles, chamando sua atenção. Um deles se dirige ao menino e surge o primeiro dilema: seria o menino uma ameaça ou seria ele um lobo? Ele está agindo instintivamente ou tentando se comunicar, por imitação? Uma espécie de crise que envolve identidade e sentimento de pertencimento é levada ao extremo.  Um homem branco caçador intervem na situação, supostamente salvando-o de um ataque iminente.

O desenvolvimento da história reforça a dificuldade que temos em nos aproximar e nos relacionar com o diferente. O outro representa perigo, mistério e ameaça. Somos inseridos na fantasia com uma mistura de sentimentos e emoções.

Como conseguir se colocar frente-a-frente de quem não cabe em nossos padrões? Se cada pessoa é um mundo, quais códigos poderiam preservar uma convivência baseada na ética e não uma convivência normativa, que enquadra?

Muitas vezes, as normas de convivência são impostas de maneira constrangedora. O processo de adequação pelo qual passa o menino-lobo também o é. Do bullying ao aprender a sorrir, o menino se vê agora diante de uma “alcateia de crianças”. Surge um novo dilema: como reagir? De forma instintiva – ou na constituição da linguagem e seus processos – a decisão é tomada de acordo com sua natureza. Em seu gesto é revelado um retorno às suas raízes.

Ao nos depararmos de maneira contundente com tantos dilemas, não há meias palavras: o limite da aculturação é o limite do respeito à natureza de cada um.

Feral trailer from Daniel Sousa on Vimeo.

Saiba mais sobre o filme aqui.