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Olhares Olhares 2016

Roda de conversa: Mediador de Mundos

Seguindo os rastros de nossos ancestrais

Esta foi uma das emocionantes falas que estiveram na Roda de Conversa inaugural da Ciranda.
Roda de Conversa: Mediador de Mundos – Foto: Aline Arruda

A primeira “Roda de Conversa”, que integra a programação da Ciranda de Filmes, aconteceu há pouco, no Cinesesc, em São Paulo. O encontro, com o sugestivo nome de “Mediador de Mundos”, reuniu Ailton Krenak, José Pacheco e Lira Marques. Ou seja, num mesmo espaço de discussão estiveram presentes uma importante liderança indígena, o educador português responsável pela Escola da Ponte (fundada em 1976 e ainda hoje considerada uma referência mundial em pedagogia inovadora) e uma artesã e educadora negra – diversidade essa destacada por Fernanda Heinz Figueiredo, uma das idealizadoras e curadoras da mostra e também mediadora dessa conversa.

O pontapé inicial foi a figura do “mestre”, tema dessa edição da Ciranda. Krenak pontuou, com uma fala pragmática e poética ao mesmo tempo, a importância, o respeito e o poder da natureza – através da relação estabelecida com ela é possível uma enorme aprendizagem. Foi através dela que aprendeu e vivenciou o sentido estrito da palavra “liberdade”, por exemplo. Lira falou de um modo bastante emocionado sobre a sua mãe como primeira e maior mestre; foi ela quem lhe ensinou a trabalhar a cerâmica e o valor e o gosto pela música. Já o educador português mencionou um vizinho, o sr. Cardoso, que lhe apresentou aos livros, antes mesmo dele ir para a escola.

Krenak compara a natureza à “uma mãe rígida”, a uma instância que orienta, sinaliza, se impõe, exige e devolve respeito. Também ambientalista, escritor e Professor Doutor Honoris Causa pela Faculdade Federal de Juiz de Fora, ele não vê possibilidade de uma vida em harmonia, um ambiente saudável, respeitoso e inventivo sem uma forte conexão com o meio ambiente. Mais do que isso, para ele, “abraçar a beleza da vida” está intrinsicamente à convivência com elementos da natureza e com o seguir “os rastros dos nossos ancestrais”.

E ele conta que, da sua etnia, existem apenas cerca de 350 pessoas. Elas mantém suas histórias e tradições através de falas, gestos, rezas, “benzações” e rituais. São essas as narrativas que contam a história de quem são. O que temos no Ocidente são outras narrativas. Apenas diferentes, nem melhores e nem piores. A diversidade existe – e é fundamental que seja mantida e respeitada. Compara as crianças de hoje à chips, a população como um todo a computadores e programas feitos em série. Krenak brinca: “deveria ser considerado bullying quando se pergunta a uma criança o que ela vai ser quando crescer. A criança é uma estrela de uma constelação; ela vem para ensinar”.

Lira, do Vale do Jequitinhonha, corrobora a importância das nossas relações com os antepassados, tradições e memória. Está fresco nessa ceramista e colocado em suas obras as cantigas de roda que aprendeu desde menina e o espírito de comunidade que sempre sentiu.

Não por acaso fez uma vasta pesquisa, ainda por meio de fitas-cassete (foram 250!), e registro de cantigas de roda e festejo local. Diz que “andava com um caderninho” e anotava tudo, ia atrás quando ouvia uma cantiga pela primeira vez. Isso lhe preencheu, lhe deu sentido: a música que ouvia em casa, que a acolhia e a arte que aprendeu com sua mãe, seu modo de escrever e se colocar no mundo.

Em “Do Pó da Terra”, documentário exibido na sessão de abertura da Ciranda, a artesã deixa claro seu modo de escrever – no barro. Quando lhe perguntam, por exemplo, se ela “faz noivinhas” (em referência à grande maioria das peças feitas por artesãs do Vale), ela diz que não; para ela, não é o que quer fazer e apresentar ao mundo; suas aflições e alegrias não estariam estampadas nessas figuras.

José Pacheco enfatiza a importância das perguntas: perguntar sempre é o melhor caminho. E revela que sua inovação no modelo escolar português se deu a partir de diversos questionamentos. “Por que há turmas? Por que o tempo do intervalo é esse? Por que há banheiros separados para alunos e professores? Por que cada aula dura 50 minutos?”. Para ele, os mestres são as crianças e são elas que podem nos ensinar – fala que encontrou eco com Krenak. A liderança indígena defendeu em certo momento da roda ideia bastante semelhante: “são elas que vêm que nos ensinar”.

E Pacheco está otimista. Ele tem acompanhado uma série de comunidades e experiências realizadas no Brasil. O educador sente que há professoras/es com bastante consciência a respeito do modelo obsoleto de educação que ainda temos vigente. Ele defende e luta por uma “nova construção social de aprendizagem”. Mas pondera que a “síndrome de vira-lata do Brasil” atrapalha – e não tem sentido algum. Em suas pesquisas, descobriu que o “primeiro escrito” a respeito de uma nova comunidade de aprendizagem se deu no Brasil e creditou o trabalho a Lauro de Oliveira Lima.

Perguntas, memórias, respeito aos antepassados, ligação com a natureza, manifestação pela arte, sensibilidade e comunidade: denominadores comuns nas falas e no espírito de cada um dos convidados.

Texto: Regina Cintra

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