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Olhares Olhares 2016

A nossa casa é lá fora

“Dentro da cabana é onde guardamos as coisas, mas fora é a nossa casa de verdade”, diz Kate, de oito anos de idade.

Em um esforço de se reconectar, a cineasta e mãe Suzanne Crocker e o seu marido deixaram seus trabalhos e, junto com suas três filhas, dois gatos e um cachorro, passaram nove meses vivendo em uma pequena cabana sem estrada de acesso, sem eletricidade e sem relógio. Situada em Yukon, no Canadá, a experiência é completamente filmada pela família. Em um tecer de vozes e experiências, assistimos uma suave e honesta narrativa da vida na natureza no filme “Todo tempo do mundo”

A característica mais genuína de cada personagem é apresentada entre olhares atentos dos pais, fazeres e dizeres de todos: uma filha que é mais filosófica, a outra que é a mais sensível e a terceira que tem espírito livre e ótimo senso de humor; o pai que chora, a mãe que é forte. O brincar infantil transforma-se no brincar da família inteira: a construção e a invenção das coisas, as aventuras do lado de fora, as deliciosas comidas que todos ajudam a criar e a comer, a composição de sonhos e fantasias coletivas. Um retrato de um cotidiano contado no tempo alongado das estações e compartilhado profundamente.

As três filhas são muito estimuladas à leitura, com brincadeiras de livrarias e lojas de mentirinha. Em uma de suas aventuras literárias, uma das meninas escreve uma carta de amor para o Percy Jackson, personagem de um dos seus livros favoritos. Em sua declaração, a pequena diz que quer se casar com o filho de Poseidon. A carta é depositada na caixa mágica de correio. Percy Jackson responde; ouvimos as doces palavras pela voz da mãe: ele aceita se casar nos sonhos e brincadeiras da menina. Eles se casam, tendo o pai e a mãe como guardiões de sua inocência e imaginação.

O filme e a vida são conduzidos pelo respeito e pela cumplicidade entre amigos que, pais, filhas e bichos, crescem e aprendem um com o outro e com a natureza. 

Questões para pensar com o filme: 

Você gostaria de viver no mato por nove meses? Você poderia viver sem eletricidade e comunicações? O que você sentiria mais falta? Como o viver no mato pode ajudar a trazer de volta o verdadeiro significado dos feriados? Por que é importante se reconectar com a natureza? O que limita a nossa capacidade de relaxar e desfrutar do nosso tempo com amigos e família?

O filme será exibido na sessão especial “A Natureza como Mestre”, realizada em parceria com Instituto Toca e o projeto “Criança e Natureza”, do Instituto Alana. Nesta sessão, Suzanne Crocker, diretora do filme, vai se juntar ao pesquisador da criança Gandhy Piorski para fazer uma reflexão sobre a importância do contato com a natureza para o desenvolvimento saudável e integral da criança, e como espaço primordial da brincadeira e da imaginação.

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

Alguns trechos foram extraídos do material educativo do filme, que pode ser visto na íntegra aqui.

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Olhares Olhares 2015

Poéticas e poesias da infância

Há algum tempo o conceito de protagonismo infantil inspirou-se em uma visão adultocêntrica do mundo e, logo, das infâncias. A criança era um projeto do futuro, um preparação para uma ideia precisa das coisas que, por ser precisa, se afasta de uma realidade complexa de subjetividades e composições culturais e sociais. Há quem segue visitando esta visão de mundo. Sobre outra visão, mais poética, baseada numa ética de alteridade das infâncias, várias e únicas, que a mesa de Protagonismo Infantil se inspirou.

 

Com a presença do educador e poeta Severino Antônio e da educadora Lucilene Silva, a Roda de conversa do terceiro dia da Ciranda de Filmes caminhou no universo poético da infância, aquele que é possível a partir de uma participação singular das crianças e da sua criação de significados e poéticas; as narrativas das vidas infantis.

 

Um homem representa uma criança e que, desde seu nascimento, é protagonista de sua natureza, sua história e seu destino. O que significa perder o sentido da vida? O que significa ser uma criança protagonista?

 

É quando a criança cria vida.

É quando a criança faz presente o ausente.

É quando o menino adota uma atitude filosófica e pergunta sobre o mundo que o rodeia, sobre experiências e sobre coisas pouco tangiveis e espirituais.

É quando a infância se faz poesia.

 

Antes tarde: as poesias são várias, nem sempre suaves, quase sempre desobedientes para garantia de sua autenticidade; emancipatórias para garantia dos seus afetos; livres pela sua natureza genuína, que se conecta consigo mesmo, com o mundo e cria significados a todo momento. Como podemos apoiar esses movimentos infantis livres e autônomos? Como podemos potencializar essas criações, esse protagonismo?

 

A infância é um estado nascente da linguagem, um estado poético em toda sua potência. A criança é sujeito do texto de sua existência. A criança é pensadora, indagadora, que gera perguntas e constroe metáforas. O adulto precisa reaprender a infância e isso significa escutar as crianças, aquelas que o perguntam e aquelas que dizem também. O adulto deve se conectar à fantasia das crianças.  Como disse Severino: “É importante que o mundo recomeça todas as vezes.” Escutar as crianças, “fará delas pessoas autônomas e com liberdade de expressão. Uma criança autônoma é emancipação”, disse Lucilene Silva.

 

O que faz o humano se converter em humano? “O pensamento…”, disse Severino, “…o mito poético de que tudo se transforma em tudo.”

Roda de conversa: Protagonismo Infantil (2015)

Com Severino Antônio e Lucilene Silva

 

Moderação: Ana Claudia Leite


Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filme

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Olhares Olhares 2016

Sobre comunidades e cocriações

Do entendimento de mestre, vamos para a força dos mestres, assim, no plural. Crianças, jovens e adultos, alunos e educadores, se misturam na construção de comunidades de aprendizagem. Todos se transformam em mestres no processo de aprendizagem. A criança é mestre de si mesmo na convivência, nos espaços de diálogo e construção coletiva. O mestre é o mediador e tutor desse caminho. Os mestres, eles e elas, facilitam e crescem juntos com as crianças e jovens, em uma interação cocriativa. 

No relatório da UNESCO “Educação, um tesouro a descobrir” são apresentados Os Pilares da Educação para o séc XXI. Com coordenação de Jacques Delors, o documento, cada dia mais atual e necessário, acolhe como um dos pilares o “Aprender a conviver” que ilumina e atenta ao desenvolvimento da compreensão do outro e de nossa interdependência. 

Em tempos de incerteza, onde a noção de coletividade está carente de atenção e entendimento, a Ciranda de Filmes convida o Professor José Pacheco, um dos grandes dinamizadores da gestão democrática da educação e um dos fundadores da Escola da Ponte, a participar da Roda de Conversa: Mediador do mundo. Ele vai ter a companhia de Ailton Krenak e Lira Marques. A fim de abrir desde já essa roda de prosa, fizemos uma conversa com ele e compartilhamos com todos. Veja a seguir.

O senhor sempre fala que descobriu-se educador quando deu conta que o processo educativo era muito solitário, tanto para o professor, quanto para as crianças e jovens. Há uma frase muito bonita que o senhor diz que “Projetos humanos são atos coletivos”. É verdade que o coletivo é algo que se aprende e se constrói em cada tempo e espaço diferente, com todos os conflitos e tensões que lhes são próprios? 

Professor José Pacheco: Tenho vivido obcecado pela criação de comunidades de aprendizagem, uma nova construção social de aprendizagem capaz de substituir os obscenos rituais da velha escola.  A expressão “comunidade de aprendizagem” tem sido usada para descrever o fenómeno dos grupos de indivíduos (coletividades), que aprendem juntos. Mas é muito mais do que uma mera coletividade, porque qualquer projeto educacional é um ato coletivo, obra de uma equipe, que partilha valores e que, pela assunção de princípios de ação, o concretiza. Falo de uma equipe, de uma partilha de valores, que pressupõe uma visão de mundo comum, a produção de saberes e recursos úteis a uma coletividade de interação cocriativa, caraterizada pela transculturalidade, envolvida em aprendizagens mútuas, numa convivência intergeracional colaborativa. Falo da criação de laços, do tecer redes.

Uma comunidade de aprendizagem é algo que se aprende e se constrói no cotidiano, em múltiplos espaços, dirimindo conflitos e tensões, um ato de mútuo consentimento.

O Cineasta Franco-suíço Jean-Luc Godard tem uma frase célebre: “O cinema é um instrumento para interpretar e analisar a realidade com liberdade “. Ele foi um dos cineastas que questionou a norma da narrativa. Se criarmos um paralelo com a criança, como podemos apoiá-la a garantir, para que possam criar suas próprias imagens e narrativas? Qual é o papel dos mestres e educadores nessa construção?  

Professor José Pacheco: Nos projetos que acompanho (e onde aprendo), os professores deixam de professar, para assumir uma dupla tarefa: e de tutor e a de mediador de aprendizagem. Propicia condições favoráveis à construção do conhecimento. Não prepara projetos para os alunos; constrói projetos com os aprendizes. O seu papel é diverso: coelabora roteiros de pesquisa, avalia, apoia os jovens na elaboração dos seus planejamentos, estimula o trabalho em equipe, fomenta processos de conhecimento mútuo, valorizar a diversidade cultural, contribui para a aprendizagem em ambiente colaborativo. Nesse contexto, os jovens assumem autonomia, aprendem a interpretar e analisar a realidade com liberdade. Porque não se prepara para a cidadania. Educa-se no exercício da cidadania.

Na infância, onde muitas coisas ainda não têm nome, o sensível é o idioma universal de todas as infâncias. Dos afetos e das artes, qual a importância da beleza na vida que dialoga com essa dimensão de sensibilidade? 

Professor José Pacheco: Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de convivência, diálogo e participação, enquanto condições de aprendizagem. Porque os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares que ainda temos, carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos, exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender.

Diz-nos Maturana que a educação acontece na convivência, de maneira recíproca entre os que convivem. Urge, pois, humanizar a educação, concretizar uma educação integral, promover desenvolvimento humano sustentável. E, se o ser humano é mais do que cognição, necessário se torna considerar o papel das artes no domínio do desenvolvimento emocional, afetivo, ético e estético… da sensibilidade.

Ao falarmos sobre o tempo que estamos vivendo hoje, no Brasil e no mundo, como o senhor acredita que podemos apoiar as crianças a pensarem e elaborarem os acontecimentos? Como podemos inserir às nossas práticas e processos com as crianças a discussão sobre ética e liberdade?

Professor José Pacheco: Retomo a afirmação da necessidade da prática de uma educação integral, que seja geradora de um autoconhecimento propiciador do reconhecimento da existência do outro, de atitudes éticas alicerces do caráter. O desenvolvimento de critérios éticos e estéticos é transversal dentro do currículo, podendo ser aprendido enquanto se aprende qualquer disciplina. E participar ativamente da vida social, cultural e política, de forma solidária, crítica e propositiva, reconhecendo direitos e deveres, identificando e combatendo injustiças, e se dispondo a enfrentar ou mediar eticamente conflitos de interesse não pode ser matéria de “anos iniciais ou anos finais”, ou “conteúdo dado no 7º ano”.

O poeta Miguel Torga assim define fronteira: de um lado terra, do outro lado terra; de um lado gente, do outro lado gente… Mas eu vi na TV que, em ambos os lados de um muro perpendicular ao edifício sede do Poder, em ambos os lados dessa absurda fronteira, havia duas “terras de ninguém”, espaços vazios, a precisar de preenchimento. Talvez esse espaço vazio possa vir a ser espaço a ocupar numa reconstrução partilhada entre o vermelho e o amarelo, se os jovens de hoje não forem apenas preparados para a cidadania, mas educados na cidadania, no exercício de uma liberdade corresponsável. 

Existe outro Brasil fora do Jornal Nacional. E, para além de um obsceno confronto, existe um Brasil da fraternidade, onde é possível criar espaços de celebrar o encontro. Por isso, acredito ser possível colocar compreensão no lugar da intolerância e trocar o ódio pelo diálogo. Preciso é não haver dois lados. Outro Brasil é possível. Mas, para que esse Brasil vire realidade, cabe à escola um papel essencial: o de educar integralmente na abertura à diversidade.

Para conferir:

Publicações do Professor José Pacheco disponíveis estão online:

Aprender em comunidade (Ed. SM)

Dicionário de Valores, onde ele apresenta conceitos importantes do ensino-aprendizagem

Entrevista: Vanessa Fort

Foto: Alexandre Mazzo

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Olhares Olhares 2016

Cinema e representações

Uma certa organização das imagens contribui a construção de sentido e representações. Como os elementos da linguagem do cinema facilitam essa construção de sentidos e a apreciação da vida dos outros que, personagens, nos apresentam realidades e modos de pensar distintos?
Sérgio Rizzo, crítico de cinema e professor, conversou um pouco a gente sobre a gramática do cinema. Na Ciranda 2016, Sérgio ministrou a Oficina de Crítica cinematográfica.
Entrevista: Vanessa Fort
Câmera: Vicky Romano
Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filmes
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Olhares Olhares 2016

A presença no mundo da infância

“Redescobre-se a presença no mundo da infância” – Youssef Ishaghpour – crítico iraniano

Poético e singelo, o filme “Balão Branco”, de Jafar Panahi com roteiro de Abbas Kiarostami, conta a história de uma menina de 7 anos que consegue da mãe dinheiro para comprar um peixinho dourado em comemoração ao ano novo. Em uma verdadeira odisseia, a pequena Razieh vive uma série de ameaças dos adultos.

A verdade ou a previsibilidade da criança traduz-se pelo nosso olhar e repertório. O que os saberes infantis, e a sua relação com o mundo que, adverso, nos desafia a cada passo rumo ao nosso objetivo? Como a singeleza da infância que, em sua vulnerabilidade diante de tudo, é uma metáfora de todos nós? A solidão e os perigos, as representações que são universais e que, por outro lado, no contexto Iraniano, representam papeis sociais de sua complexa história e realidade. Em todas elas, quase sempre, a criança sempre expressa a fé pura no seu desejo, e outra crença pura que – mesmo em manifestações de desconfiança que nos educam a ter – sempre mostra a disposição infantil em tentar acreditar no outro. Assim, a pequena menina segue em frente. E a gente também.

A metáfora que resta, e que parece forte ao final, é da poética infantil: o balão branco que “resgata” o peixe, a ideia de primavera que, não só no Irã, abre a alegria do novo e das esperanças renovadas.

O filme “Balão Branco” faz parte da Ciranda 2016, ano em que celebramos os mestres. Entendemos o cinema como um deles que, cheio de dimensões, nos ajuda a descobrir e dar sentido à nossa presença no mundo.

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

THE WHITE BALLOON, (aka BADKONAKE SEFID), Aida Mohammadkhani, 1995. ©October Films

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Por uma pedagogia poética

“Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo.”, Fernando Pessoa
A criação poética acrescenta novas dimensões ao mundo. A vida não é um dado: a criamos e a vivemos por meio de nossas emoções e interações. Criar poesia, aquela que revela diariamente novas camadas e possibilidades, nos apoia a transcender a posição de meros narradores dos acontecimentos e do tempo. Não somos apenas narradores. As crianças também não são narradoras de discursos que adultos criam. O seu protagonismo está revelado nessa possibilidade de criar poesia e a si mesmo. Como favorecer a criação infantil de si mesmo e de sua realidade?  As crianças que, em toda sua espontaneidade, penetram a poesia, criam e recriam sua realidade, subvertem normas, não concordam. A poesia pode florecer de um processo de recusas daquilo que desnatura a vida; uma beleza que, muitas vezes, é áspera.
Como podemos nos colocar atentos a essas expressões que, muitas vezes, negam normatizações, ou negam o olhar adulto que se impõe de maneira contundente e poderosa ao universo infantil?
Severino Antônio participou da Roda de Conversa: Protagonismo Infantil, na Ciranda 2015, que ainda contou com a participação de Lucilene Silva e Cacau Leite, como mediadora. Na ocasião, conversamos com Severino sobre as desobediências poéticas, aquelas que se apresentam para o exercício do que é genuíno em ser.

Sobre o Severino:
Graduado em Letras, mestre e doutor em Educação pela Unicamp. Há quarenta anos trabalha com ensino de Redação e Leitura, Literatura, Filosofia, e também dedica-se à formação de educadores. É professor do Programa de Mestrado em Educação Sociocomunitária da UNISAL-SP e autor de diversos livros, dentre eles: “Constelações – uma escuta poética da infância”; “Poetizar o pedagógico” e “Uma pedagogia poética para as crianças”.
Texto e entrevista: Vanessa Fort
Câmera: Vicky Romano
Foto: Aline Arruda/Ciranda de Filmes
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Olhares Olhares 2016

Os mestres do intangível

 

“A língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não conhecemos por meio de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação efetiva com as pessoas que nos rodeiam”, disse o filósofo Mikhail Bakhtin. 

As linguagens são constituídas pelos diálogos e afetos. Tudo se constitui linguagem e sentido em nosso estar no mundo. A linguagem é mestra do existir, do mediar-se, do conviver. Mediar nossas emoções, conectar o sensível, o intangível, o outro. O que a linguagem não comunica, o afeto acolhe e manifesta. Por outras vezes, desconsideramos os conflitos em favor de uma inquestionável poesia. Mas e os nossos terrores, tensões, medos e frustrações? A poesia, muitas vezes, está no olhar de quem observa. O olhar do outro nos ajuda a enxergar outras cores e texturas, criar diálogos e coexistir. A arte e suas linguagens permitem conexões com toda a complexidade do ser.

O que é beleza? Há beleza na complexidade de nossas contradições? Francis Bacon expressou as intempéries da condição do humano, com cores negras e emoções aprisionadas. Basquiat dedicou-se às texturas, à demolição das tradições e à vida nas grandes cidades. Sivuca, com todo o seu coração popular, mesclou-se com maestria ao erudito, levando a sanfona aos grandes concertos, criando um outro idioma. A dança e o teatro conseguem transitar por onde não conseguimos declarar.  E o que é beleza nessa grande diversidade de linguagens e manifestações? Como ela pode estar a favor das manifestações e descobertas infantis, para que as crianças possam poetizar, sim, sobre seus pensamentos e ideias doces, mas também manifestar e investigar seus temores e espantos? Como as linguagens podem estar disponíveis às crianças e à todas as formas de comunicação infantil na construção de memórias afetivas que apoiem a criação de fortalezas íntimas?

A Ciranda de Filmes 2016 dedica-se a fazer essas reflexões sobre as artes e as linguagens que ajudam a tecer, conhecer e desmistificar a vida e potencializá-la. O que a arte nos ensina? Como ela nos inspira? Para levar a maestria da arte para o centro do debate, discutindo seu papel transformador, entram nessa prosa artistas-educadores da música, da dança e das artes visuais. A Roda de Conversa “Mestre do Intangível” contará com a presença de Claudio Feijó, Teca Alencar de Brito, Georgia Lengos e a mediação de Gabriela Romeu.

Após 10 anos de discussões, as linguagens artísticas deverão estar presentes no currículo escolar. O projeto de lei 337/06 foi aprovado no Senado e agora segue para sanção. Nada como esse momento oportuno para refletirmos e conversarmos sobre as linguagens artísticas que têm a ver, mais do que com uma questão disciplinar, com a criação de sentidos de vida a partir dos diálogos do sensível.

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Entre narradores e poetas

O caminhar nos preenche em narrativas. As conexões e relações que tecem o caminhar, criam sentidos, nos convidam para o desafio de ser e perceber de várias maneiras e nos alivia do fantasma da opinião única.
Em busca dessas relações que potencializam o que é genuíno, a Ciranda de Filmes 2016 reúne mestres que, narradores e poetas, alumiam o caminho, mediam o intangível e criam geografias do ser.
O cinema é um desses mestres que narram a vida, construindo significados na relação do tempo, da memória e emoção dos personagens com a gente. Os mestres que inspiram e educam, nos ajudam na composição de nossa própria história. Há aqueles que mediam pelo sensível e oferecem elementos para as nossas declarações e percepções do mundo.
A Ciranda de Filmes se propõe a construir diálogos de afirmação e descobertas nesse mundo repleto de poesias, desobediências poéticas e conflitos.   Com filmes, Rodas de conversa, vivências e oficinas, a Ciranda de Filmes 2016 nos convida a estar atentos e sensíveis a esses que inspiram e fortalecem. Entre as presenças e participações já confirmadas estão a do Brincante Antônio Nóbrega e a do filme “Sonhos em movimento – Nos passos de Pina Bausch”
Texto: Vanessa Fort
Fotos de destaque: still do Sonhos em movimento, nos passos de Pina Bausch
Antônio Nóbrega: Divulgação/Walter Carvalho
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Olhares Olhares 2014

Rotas da transformação

por Gabriela Romeu
 
Se uma trajetória, uma rota ou um caminho pudessem ser desenhados a partir da terceira roda de conversas do Ciranda de Filmes 2014, que reuniu Regina Migliori, Ana Lucia Villela, Ana Thomaz e Germain Doin numa prosa sobre movimentos de transformação, talvez esse percurso pudesse ser sinalizado por placas (aquelas de estrada) com expressões ou termos como ressignificar, quebra de paradigmas, ir além (significado de “trans”), entre outros recorrentes no papo.

É difícil, no entanto, recorrer a uma só palavra (educador ou cineasta, por exemplo) para definir a atuação dos quatro palestrantes – abaixo, conheça mais a história de cada um deles. Suas trajetórias pessoais e profissionais, ambas bem imbricadas, foram se desdobrando em ações e atuações que às vezes nem tinham nomenclatura. Em suas biografias, o capítulo referente a viradas e reviravoltas também têm em comum como resultado intensos movimentos de transformação.

Talvez uma frase ajude a sintetizar um pouco a conversa: “Um movimento de transformação diz respeito ao ‘mundo do não sei’. E recuperar essa capacidade de não saber é muito importante”, afirmou Regina Migliori, inaugurando a prosa. Foi no percurso de algumas décadas que Regina, atuante em projetos de desenvolvimento humano centrado em valores, cultura de paz e sustentabilidade, descobriu o fio da meada de suas pesquisas: “Há em nós, seres humanos, a possibilidade de agirmos no mundo de maneira inteligente, criativa, transformadora e benéfica”.

Regina transitou por diferentes mundos (direito criminal, educação, artes, negócios e tecnologia) em seu percurso profissional. Nessas andanças, quando ainda advogava na área de direito criminal, deparou-se certa vez com os questionamentos de uma menina de 11 anos de idade. Filha de um presidiário, “que já tinha realizado na vida tudo o que a gente acha que um ser humano não deve fazer”, a garota de 11 anos pediu para que ela entregasse ao pai uma mensagem.

Na carta, o seguinte questionamento: “Pai, todo mundo tem um lado bonito e um lado feio. Por que você só mostra o seu lado feio para o mundo e só eu consigo ver o seu lado bonito?”. Seguindo a indagação tão genuína da menina, Regina completa: “Essa garota não tinha perdido o seu dom de se maravilhar com um outro ser humano e de identificar nesse ser humano algo que nem mesmo ele teve condições de reconhecer”.

Regina explica que identificar isso hoje em nós, seres humanos, assim como fez de forma simples e direta a menina, deixou de ser apenas uma discussão filosófica a respeito da perspectiva ética e benéfica. “Hoje é demanda do mundo. Nós nos metemos em confusões como humanidade que são absolutamente relevantes. Pela primeira vez, na trajetória da humanidade, somos desafiados a construir um tipo de vida que garanta a nossa sobrevivência.”

A trajetória de Ana Lucia Villela foi pontuada por alguns chacoalhões da vida que também a colocaram na rota que há algum tempo percorre. Fundadora e presidente do Instituto Alana, que tem como missão honrar a criança, começou a se sensibilizar pela causa da infância ainda menina, aos oito anos de idade, quando perdeu os pais num acidente de avião. “Comecei a olhar o mundo de um jeito diferente.”

Dirigindo-se à plateia, questionou: “O que move cada um de vocês? O que te fez repensar a vida? Um quadro, um filme, uma vivência?”. Ana Lucia indica diversas experiências que a impulsionaram num movimento de transformação. Lembra de uma temporada nas Filipinas, aos 11 anos, quando integrou um intercâmbio do CISV, programa internacional de convivência de crianças e jovens que trata da cultura de paz e da tolerância entre povos.

No país asiático, hospedou-se na casa da ex-primeira-dama Imelda Marcos, famosa por ostentar uma coleção de centenas de sapatos. Para o muro além do condomínio de casarões onde viveu por um tempo, a cena de crianças num lixão ficou impressa em sua memória. “É claro que isso também já existia no Brasil. Mas eu precisei estar nas Filipinas, num bairro cercado, de um lado casas gigantescas, do outro um monte de criancinhas procurando comida no lixo. São cenas assim que não passam batidas na vida da gente e que nos fazem querer ajudar a mudar a realidade.”

Foi pelo caminho da educação que seguiu o chamado para batalhar por uma sociedade mais justa. Chegou a frequentar na escola pública o curso de magistério, causando estranhamento na família. “Mas foi lá que entendi o que é uma escola pública”, conta, decepcionada com a realidade enfrentada por milhares de crianças. Dali para o Alana, que nasceu num terreno herdado na rua da Borboleta Amarela (símbolo da transformação que está na logomarca da instituição), foi um pulo.

Intrigada com estranhos hábitos e valores das crianças nas escolas, que só “comiam salgadinho no lanche, usavam saltinho e batom desde os quatro anos de idade”, decidiu pesquisar a questão. “Achava que tinha alguma coisa errada. Com esse jeito diferente de olhar o mundo, ficou intrigada quando passou a Quem é que está educando as crianças para que fiquem assim?”. Desse questionamento nascia o projeto Criança e Consumo, que, ousado, não se deixou intimidar por críticas e ameaças e hoje comemora diversas conquistas.

Ana Lucia segue sendo provocada a olhar tudo de um outro modo. No projeto “Outro Olhar”, recém-lançado pelo Alana, parte de outra perspectiva ao tratar da vida de meninos e meninas com síndrome de down, alteração genética com a qual nasceu sua filha caçula. “A gente está tentando a todo momento inventar soluções diferentes, inovadoras, para aquilo que nos incomoda e para aquilo que a gente acha muito lindo e quer mostrar para o mundo.”

Foram também experiências marcantes que fizeram Ana Thomaz mudar de rota. Há cerca de dez anos, ela encarou o desejo do filho de sair da escola para buscar algo que lhe fizesse sentido. Começava aí um processo de desescolarização. “Antes de tirar meu filho da escola, comecei a tirar a escola de dentro de mim”, lembra. O que aquilo significava? “Tirar crenças, hábitos e maneiras de pensar que eu confundia com o processo escolar.” Descobriu que precisa de uma vida inteira para se desescolarizar.

Pensamento e ação devem estar sempre alinhados, diz Ana. “São mudanças de paradigma de ação. Às vezes, me vinha um pensamento e eu tinha que alinhar esse pensamento à minha ação e ao meu sentir, olhar firme aquele pensamento. Se eu pensava uma coisa e agia de outra forma, eu tinha que parar e pensar, tinha algo a mudar. Podia surgir um pensamento, uma emoção, uma questão prática, cotidiana, e eu me organizei para ficar atenta e sempre alinhada. Agir, pensar e sentir a vida de uma maneira coerente.”

A falta de coerência entre ação e discurso era também o grande incômodo na vida escolar do cineasta argentino Germain Doin, diretor do documentário “A Educação Proibida”, que foi financiado coletivamente e virou um fenômeno de audiência na internet. Aos 21 anos de idade, tomou uma câmera pequena na mão e seguiu por uma rota visitando escolas de oito países da América Latina. No caminho, descobriu diversas escolas com modelos educativos alternativos e transformadores, que não eram um “estacionamento de crianças” e que fogem de estruturas verticais, baseadas na competição, divisão por idades, currículos desconectados da realidade.

Todo esse processo desembocou na Reevo, uma rede colaborativa de experiências de educação transformadoras, alternativas e democráticas na América Latina. Num curto tempo de atuação, o grupo criou um mapa interativo e livre para que qualquer um possa compartilhar experiências educacionais transformadoras com o mundo.

“Queremos que essas informações gerem uma ferramenta para esse movimento de transformação. Uma ferramenta que nos permita se conhecer e se encontrar. E pensar num tipo de educação diferente, mais vinculada à autonomia, à construção colaborativa de conhecimentos”, conta Germain, que fechou a conversa por um trilha que tem começo, mas não fim.

No que podemos chamar de “biografia de virada”, conheça abaixo um pouco mais da trajetória transformadora dos palestrantes da terceira roda de conversas.

Regina Migliori
(Professora de ética e reponsabilidade corporativa nos MBAs da FGV, consultora em cultura de paz da Unesco, diretora-adjunta de sustentabilidade do Ciesp)
Sustentabilidade, educação de valores, cultura de paz, cérebro ético. Nada disso tinha nome quando Regina Migliori ainda tateava por esses temas na juventude. Resumindo década a década, ela conta assim sua trilha transformadora: Nos anos 70, era papo de doido. Nos 80, era coisa de gente alternativa. Nos 90, virou tendência. Hoje é cenário – “e é doido quem não se preocupa com isso”, ela adverte. Durante um tempão perseguiu um “eu acho que deve ter algo que viabilize os seres humanos a viverem em paz”. Construir uma vida sustentável não é mais utopia, é demanda atual. Mas, bem-humorada, Regina diz que continua achando que tudo isso é papo de doido.

Ana Lucia Villela
(Pedagoga, mestre em Psicologia da educação. Fundou e preside o Instituto Alana. É membro da Ashoka)
Não foi um, mas vários momentos de virada na vida que a impulsionaram. O mais forte foi a perda dos pais num acidente de avião, quando tinha oito anos. Esse chacoalhão da vida a botou a pensar: “Quem vai cuidar de mim? Como a escola vai me amparar? Como a comunidade vai me amparar? O que acontece com as crianças que não tem recursos financeiros quando perdem os pais? O que é mais importante na vida? Como a criança é vista?” Essas e outras questões foram surgindo na trajetória de Ana Lucia Villela, fundadora do Instituto Alana, que coloca no centro a criança e toda sua potência transformadora.

Ana Thomaz
(Professora da técnica alexander, pesquisadora do universo do aprender e ensinar, experimentando novos paradigmas da educação)
Com a experiência da técnica Alexander, lendo Espinosa, Niezschte, Deleuze, estudando a biologia de Humberto Maturana, aprendendo com Krishnamurti…. Ana Thomaz fez um contrato consigo mesma: viveria de modo intenso e verdadeiro e criaria um novo paradigma de vida para si. Anos mais tarde, seu filho, aos 13 anos, pede para tirá-lo da escola porque gostaria de dedicar sua vida a algo que ainda era desconhecido para ele, mas que ele tinha certeza de que existia! Assim fundou-se um grande movimento de transformação.

Germain Doin
(Diretor do filme “A Educação Proibida”, coordenador da Reevo)
Aluno de uma escola tradicional da classe média de Buenos Aires, Germain foi na sala de aula o melhor aluno no boletim, mas também o pior por criticar as incoerências do sistema educativo. Pouco faziam sentido os valores da teoria e as regras da prática. Seu filme, A Educação Proibida, visto por mais de 9 milhões de pessoas na internet, traz voz de um estudante que sobreviveu à escola e que sabe que outra educação é possível – e que está em nossas mãos torná-la realidade. Essa voz ecoou longe: mais de 9 milhões de pessoas viram o filme na internet, o documentário rodou muitas países e rendeu muita discussão. E continua ecoando e criando outros movimentos com a Reevo, uma rede de educação. Gostaria de convidar o Germain a contar mais sobre essas transformações que vêm promovendo.

Na foto, Ana Thomaz na Ciranda de 2014 – fotografia de: Aline Arruda

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Olhares Olhares 2014

Para saber passarinhos

por Gabriela Romeu
 
A tarde virou uma “manhã desabrochada a pássaros”. A plateia, um coro de passarinhos. O palestrante, um brincante – ou maestro de um concerto de corujas, cucos, gralhas, quero-queros e bem-te-vis. Assim foi inaugurada a segunda roda de conversas da Ciranda de Filmes, que reuniu o educador Marcos Ferreira Santos (nosso maestro), a artista plástica e curadora Stela Barbieri, a também educadora Maria Amélia Pereira, a Péo, e a cineasta Fernanda Heinz Figueiredo para uma prosa sobre espaços de aprendizagem.

A imagem dos pássaros bem sintetiza o encontro, que rompeu os muros da escola já nas lembranças e experiências do aprender-viver dos quatro palestrantes – leia mais na biografia escolar (ou contra-escolar) descrita abaixo. A natureza, como espaço de aprendizagem fundamental à infância, foi uma constante em toda a prosa (e em muitos versos). De que adiantam os conteúdos escolares se já não sabemos mais passarinhos?

Ainda evocando os pássaros, o professor de mitologia comparada tirou da mochila sua flauta andina e espalhou na sala uma sonoridade que parece ao mesmo tempo tão longe e tão perto de todos nós. Resgatou as imagens de um dos filmes exibidos no festival – “O Menino e o Mundo”. Na premiada animação de Alê Abreu, um menino pequenino e saltitante segue o som de uma flauta que foi plantado em seu quintal e em seu coração. Está em busca da figura paterna. “Essa flauta também me acompanha por muito tempo”, conta Marcos, que foi alfabetizado pelo pai na infância.

A importância do sonho foi instaurada e também percorreu todas as falas. “Todas as comunidades tradicionais ameríndias ou afro-brasileiras se pautam pelo sonho. O sonho define quem você vai ser, o que vai fazer na comunidade. Qual é o único povo que não se pauta pelo sonho? O ocidental. Pra mim, o ‘dream is over’ não é over nada. Tudo começa com um sonho”, enfatizou o educador. “A grande dívida que temos com a ancestralidade é sermos nós mesmos.”

Como que nos embalando em sua cadeira de balanço, Stela Barbieri teceu imagens sobre cinema, imaginação e aprendizagem. A cadeira de balanço surge algo singular na infância de Stela, que brinca ao dizer que o melhor que sabe fazer é “balançar”. No delicado balanço de sua voz maviosa, falou do mistério do cinema. “Quando a gente senta nessa cadeira e mergulha no filme, o tempo para, você entra num outro tempo. O cinema é a arte que mais se aproxima da imaginação, a gente imagina em movimento. O cinema nos embala e alimenta nossa imaginação e nosso sonho.”

A aprendizagem, segundo Stela, tem um balanço entre o “deixar ser e ao mesmo tempo ajudar a ser”. “Talvez tenham assistido ao filme ‘Birth Story’ [exibido na Ciranda de Filmes]. Fico pensando que a parteira deixa o nenê nascer e ao mesmo tempo o ajuda a nascer. O educador também tem esse papel.”

O educador, segundo Maria Amélia Pereira, a Péo, necessita beber na fonte da poesia. Fundadora da Casa Redonda, é nesse espaço de viver a infância que Péo diz se formar dia a dia como educadora. É uma eterna aprendiz. “Quem vem me formando como educadora são na verdade os poetas, que estão mais perto dos sonhos e das crianças. As crianças são também pequenos poetas porque, diante delas, a cada dia um mistério se revela.”

Péo enfatizou que o ser humano é um aprendiz nato. “Herdamos esse mundo para uma grande aventura, que é a aventura da consciência. O trajeto humano se inicia na criança, no qual o brincar é a linguagem primeira. O brincar é a linguagem da espontaneidade, da imprevisibilidade, da disponibilidade, de um movimento de ações que não tem nenhum caráter utilitário, um tem que, um faço isso para que”, afirma.

Atenta observadora da alma infantil, a educadora conta que no cotidiano com as crianças os aprendizados brotam em cada gesto, em muitos encontros e diálogos. São incríveis relatos de percepções de vida, como a história de uma criança que, quieta e envolta na areia do tanque da Casa Redonda, disse aos amigos que a importunavam: “Será que não posso nem morrer tranquila?”. Péo nos leva por suas reflexões: “Aquela criança estava entregue a sua essência misteriosa. Por isso é preciso ter cuidado, respeito a essas horas sagradas do brincar. E são relações que a gente pode interferir de uma forma inadequada se não descobre o silêncio diante da criança que brinca”.

Numa fala contundente, a educadora chamou atenção para o erro de separar o espaço da natureza de um espaço de construção do humano. “Estamos vivendo um momento de profunda desconexão com a natureza e por isso estamos adoecendo. O problema do homem foi se desconectar da natureza, ali está o chão da criança.” E deixou seu recado para os educadores: “É preciso dar à infância o direito humano de brincar e de pisar na terra com tranquilidade. A falta da natureza é uma violência contra o ser humano”.

Foi numa escola que potencializa também o humano que cresceu brincando e aprendendo a documentarista Fernanda Heinz Figueiredo, diretora do filme “Sementes do Nosso Quintal”. No corpo vivido na Te-Arte, como Fernanda costuma dizer, dialogou intensamente com a natureza. A cineasta conta que, quase três décadas depois de estudar (ou melhor, brincar) na Te-Arte, retorna à escola carregando sua filha caçula, Gaia, aos oito meses, no colo. Na mão, uma câmera. Queria fazer um filme que resgatasse também sua história de menina.

Foram quatro anos para produzir o longa-metragem, que teve pré-estreia na Ciranda de Filmes. Nesse processo, descobriu que o desafio era mostrar que muitos paradigmas a serem derrubados na educação eram já exercitados e vividos na sua escola de infância. “No roteiro, a gente tentou refletir um processo de experiência. Falamos de paradigmas que precisamos quebrar, como o de segurança, que bloqueia a apropriação do corpo, e o de higiene, que impede que a gente tenha contato com a natureza.”

No dizer de Marcos, a documentarista mostrou forte vocação tecelã, uma verdadeira Ariadne, “essa senhora do labirinto”. “Ela nos dá o fio narrativo para que agente entre no coração da experiência. E não há como negar, o coração da experiência está no centro do labirinto, tem um minotauro lá dentro. Você é quem tem que enfrentar esse minotauro, com suas fraquezas e idiossincrasias. E a Fernanda faz isso ao retratar a vida das crianças com um cine-olho respeitoso, que não olha de cima, e cheio de cumplicidade”, aponta o educador.

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Abaixo, um breve biografia escolar dos palestrantes dessa roda de conversa.

Marcos Ferreira Santos
(Professor de mitologia comparada da USP, pedagogo e arte-educador)
Em sua “biografia contra-escolar”, Marcos Ferreira Santos conta que foi alfabetizado pelo pai. Começou a ler aos seis anos nos livros escolhidos pelo pai meio que por intuição – Sócrates, literatura chinesa, mitologia, socialismo. Ao chegar à escola, logo aprendeu a primeira lição: deveria ficar calado. Seguiu calado pelas séries seguintes. Descobriu outros espaços de aprendizagem na vida – no teatro, no movimento anarquista, na música andina de imigrantes chilenos e bolivianos, em muitos sebos. O chão da fábrica no ABC paulista, onde começou a trabalhar aos nove anos, foi outra escola. Com um mestre chileno, descobriu Pablo Neruda e Violeta Parra, ouviu falar sobre temas como autonomia indígena, repressão, ditaduras militares. Com tal “histórico escolar”, ele conta que talvez, por vingança, seja hoje uma tentativa de educador.

Stela Barbieri
(Artista plástica, curadora educacional da Fundação Bienal de São Paulo, escritora e contadora de histórias)
Lá na Araraquara da infância da Stela Barbieri, existia uma cadeira de balanço. Stela balançava em sua cadeira e fazia bolos de terra. Balançava em sua cadeira e corria atrás das galinhas. Balançava em sua cadeira e construía cabanas e muitos outros mundos. O mundo todo passava ali, só naquele balanço. Mais do que a escola, parece que essa cadeira de balanço foi uma verdadeira incubadora de ideias, pra toda uma vida.

Maria Amélia Pereira (Péo)
(Pedagoga, fundadora e orientadora do Centro de Estudos Casa Redonda)
Criada na Salvador dos anos 40 e 50, teve o mar como um grande brinquedo. A praia, com todas as suas gentes, como um importante espaço de aprendizagem, um horizonte aberto. A escola, ainda jardim da infância, ficava pertinho do mar. Pura sorte da menina e de seus castelos de areia. Hoje, na Casa Redonda, a areia do brincar vem da praia – e não do rio. É que areia do mar tem sal, dá liga. Areia de rio é escorregadia. Sabe quem vivenciou no corpo. Assim, há tempos define a natureza como espaço de aprendizagem fundamental para a infância.

Fernanda Heinz Figueiredo
(Diretora do filme “Sementes do Nosso Quintal” e cocuradora da Ciranda de Filmes)
Fernanda Heinz Figueiredo conta que tudo sendo tecido e acreditado. Na chácara do avô, no viveiro de plantas dos pais, na sua primeira escola, a Te-arte. Quando perguntavam qual era sua religião, sempre respondia com convicção: a natureza. Essa certeza vem da paz ao cuidar das plantas, das brincadeiras com girinos e barquinhos nos laguinhos de escalava as árvores da chácara, de ouvir o silêncio absoluto preenchido pela sinfonia dos sapos e insetos notívagos, de se enlamear no campinho da te-arte ou pelo fascínio exercido pelo sangue das galinhas recém-sacrificadas para as festas juninas da escola. Não sabe ao certo, mas tudo ficou ali guardado de maneira intensa. Continua respondendo que sua religião é a natureza. Sementes do Nosso Quintal, seu primeiro longa, comunga com essa ideia.

Na foto, Maria Amélia Pereira, a Péo na Ciranda de 2014 – fotografia de: Aline Arruda