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Olhares Olhares 2016

De quem é o coração que ouvimos bater?

“Caverna dos sonhos esquecidos”, do mestre Werner Herzog, é um diálogo sobre nossas poéticas: a matéria e a sensibilidade de que somos feitos, as imagens que pulsam a nossa mitologia, as traduções do tempo que ligam obras da natureza e do homem, a partir da compreensão do tempo como algo irreversível, impreciso e misterioso. 

No Sul da França foi encontrado um dos mais importantes sítios de arte pré-histórica do mundo, a Caverna de Chauvet. Um pequeno grupo formado por arqueólogos, pesquisadores e artistas adentrou a esse lugar para investigação de pinturas rupestres, até então intocáveis. Herzog acompanhou e compôs um olhar e uma conversa surpreendentes com os pesquisadores. Coisa que apenas mestres do documentário sabem fazer e provocar.

“Silêncio! Por favor, vamos ouvir! Se ficarmos em silêncio podemos escutar a batida do coração”, um dos pesquisadores chamou atenção. Herzog complementa, como mestre das narrativas que provocam: “essa batida de coração será deles (eles todos que viveram ou passaram por essa caverna em 30.000 anos), ou de nosso coração?” Qual a precisão dessa batida? A aura incrível desse caverna que guarda mistérios da história da humanidade em seu útero, se encontra facilmente ligada a uma peça de Wagner e a uma pintura romântica alemã. Como essas coisas se conectam como parte uma da outra? Como uma apoia a apreciação e o transbordamento da outra?

As nossas formas de narrar o tempo não dão conta desse lugar. Os arqueólogos criam hipóteses sobre um conjunto de desenhos em uma mesma parede. Eles podem ter sido feitos, cada uma deles, com milhares de anos de diferença. Um abismo no tempo. É como se seu bisavô tivesse feito um desenho há muitos anos atrás e você estivesse finalizado o mesmo nos dias atuais, em um lugar que lhes é comum. A nossa ancestralidade presente simultaneamente em todos os tempos. 

Uma das investigações mais impactantes foi de uma pegada de uma criança de 8 anos que está próxima à pegada de um lobo. Os estudiosos detectam as duas espécies, a idade, não há informações precisas, mas algumas suposições: era uma criança que fugia do lobo? Eles caminhavam juntos, eram amigos? Viveram no mesmo período? Fotografias de vidas sobrepostas que pairam por esse lugar.

O que nos é comum, em todos os tempos, é nossa capacidade de adaptação, comunicação e registro; recursos de nossa humanidade que nos apoiam em nossa necessidade de evocação dos mistérios e de transmissão do nosso olhar perante o mundo. 

Saiba mais sobre o filme aqui

Texto: Vanessa Fort 

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O movimento dos sonhos na realidade

No tempo de incertezas, o movimento foi celebrado na Ciranda como mestre de poesia, de criação e de intervenção do mundo. Poesia que compõe a vida em uma coreografia entre sonhos e realidade.

O filme “Billy Elliot”, do diretor Stephen Daldry, narra a história de Billy, um garoto apaixonado por dança e que nasceu bailarino. De família conservadora, o menino perdeu a mãe muito cedo e se vê em meio a preconceitos do pai, irmão, e de toda comunidade. Sem nenhuma outra opção a não ser o que se é, Billy se esforça para aprender os passos da coreografia da sua própria vida. 

“Sonhos em movimento – nos passos de Pina Baush”  é um documentário que mostra a reunião de adolescentes em torno da mestre-precursora da dança-teatro. Os diretores Anne Linsel e Rainer Hoffmann mostram a experiência de aprender e ensaiar o célebre Kontkthof, anteriormente dançada por profissionais e por idosos. Como os bastidores da vida de Billy, vemos os bastidores da montagem do espetáculo e a condução generosa de Pina Baush.

Pina Baush explicou que sua vontade em montar várias vezes a mesma coreografia com grupos diferentes tem a ver com seu desejo de estar com o outro. Com os adolescentes isso passou a ser um rito de iniciação na poesia de ser o que se é em companhia do outro, a partir da intensa obra de Baush.

Billy e os jovens de Sonhos em movimento incorporam seus sonhos e sua própria vida diante dos nossos olhos. 

Para saber mais sobre “Billy Elliot”, clique aqui.

Para saber mais sobre “Sonhos em movimento – Nos passos de Pina Baush”, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

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Sobre memória, imaginação e amizade

“Cinema Paradiso” é um clássico, uma ode ao cinema e ao sonho. Entre memórias e a imaginação compartilhadas por toda uma cidade, vemos a construção de uma profunda amizade junto à composição de lindas sequências famosas do cinema. A amizade inspirando a vida, assim como o cinema inspira também.

O filme de Giuseppe Tornatore nos mostra a narrativa de vida do pequeno Totó. Tudo começa com ele já adulto, Salvatore, revisitando a memória de sua infância mesclada às imagens da tela grande. Lugar do sonho, Totó aprendeu sobre si na sala escura, viveu a vida dos personagens (enquanto criava a sua própria), se emocionou com eles e com seu amigo Alfredo, maestro das imagens, do mistério da projeção de histórias que saem da boca do leão.

Com toda poética do cinematográfica, vemos a passagem do tempo, o amadurecimento e a sensibilidade do protagonista sempre fortalecidos por Alfredo e pelo cinema. Quando Salvatore volta à sua cidade, sabendo da morte do seu amigo, ele faz uma visita a alguns lugares, entre eles o seu quarto de criança. Nesse momento, suas memórias transbordam como nossas nessa linda narrativa de vida que acompanhamos durante 2 horas.

Em sua sensibilidade, Alfredo deixa um presente à Salvatore: todos os beijos de diversos filmes que foram censurados na sala do Cinema Paradiso. Como os bons amigos fazem, ele o inspira a viver o que lhe falta. É como devolver à vida as cenas que não aconteceram. O filme acaba mas não a vida (nem a amizade que segue ecoando para sempre).

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Último dia das rodas

O tom comum da terceira e última Roda de Conversa foi a integralidade, a importância do entendimento e valorização do todo. Com o tema “Maestria do Chão”, recebeu o coletivo Contrafilé (com as presenças de Cibele Lucena e Joana Zatz), a arquiteta e urbanista Beatriz Goulart e a bióloga e permacultora Mônica Passarinho Mesquita. Assim como aconteceu nas conversas anteriores, as convidadas rememoraram parte de suas infâncias.

Joana coloca que “território urbano não é físico, acontece em várias escalas”. Com esse pontapé a conversa discorreu sobre o uso dos diversos espaços – da maneira como foram construídos, o que trouxeram de simbólico em suas estruturas, o uso e a percepções que temos deles.

Beatriz Goulart, especialista em projetos que integram cada vez mais as escolas e outros lugares de educação, dá concretude à fala: para ela, o modelo arquitetônico das escolas é completamente segregador, serve para separar, apartar, vigiar e punir. Como se a vida e a cultura ficassem do lado de fora. “A compreensão de uma unidade foi perdida. A gente desenvolveu poros, olhos e ouvidos para as partes”, defende.

Mônica, atualmente à frente do Instituto Toca, fala com orgulho do processo integral que promovem e vivem na prática com crianças pequenas. E destaca a alimentação como um momento e instrumento de proximidade, convívio e entendimento de ciclos e processos da natureza. Novamente, a noção de que integramos um coletivo, de que as coisas estão interligadas. Lá, as crianças plantam, colhem, preparam, cozinham e comem. E até mesmo o banheiro foi construído conjuntamente – e integrando o ciclo completo do alimento, até virar adubo.

A finalização dessa roda aconteceu uma frase de Fritjof Capra: “Uma comunidade humana sustentavel interage com outras comunidades – humanas e não humanas”.

Texto: Regina Cintra
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Roda de conversa: Mestre do Intangível

A segunda Roda de Conversa da Ciranda de Filmes reuniu nessa tarde, no Cinesesc, a coreógrafa e bailarina Georgia Lengos, a educadora musical Teca Alencar Brito e o fotógrafo e pedagogo Claudio Feijó. A mediação ficou por conta da jornalista especializada em infância Gabriela Romeu.

Todos eles abriram suas falas contando sobre suas infâncias, memórias e a relação que tiveram, desde cedo, com o corpo, movimento e som. Georgia, que tem a figura de seu pai dançando em cima da mesa como uma forte lembrança, fala e enaltece a importância da nossa relação com o próprio corpo. Para a coreógrafa, o movimento é algo intrínseco ao animal e ao ser humano: “desde a concepção, tudo é movimento”. Não por acaso, seu caminho foi a dança que, ainda segundo sua leitura, reúne corpo, movimento, espaço e o tempo. Os mesmos elementos que, somados, constituem a essência da brincadeira.

E a brincadeira tem ainda a imprevisibilidade, a surpresa, um caminho inicialmente traçado e pouco depois, desviado. Aspecto comum também às manifestações culturais – sejam elas quais forem. A cultura como mestre foi norte dessa conversa. Ela que se relaciona de forma integral com o sensível, apresenta novos horizontes e realidades, questiona certezas e alimenta a alma. Na conversa falou-se de música, dança, olhar, da escola como um ambiente muitas vezes não estimulante ao que foge do padrão já consagrado de conhecimento.

Teca acredita que “a criança mergulha no sonoro, ela inventa, se reinventa” e, a partir dos quatro anos, sua habilidade e capacidade nata de criação passam a ser menos estimuladas e valorizadas. Não coincidentemente, estamos aqui no período do início da escolarização. A educadora musical apresenta, então, uma gravação feita por alguns de seus alunos que tiveram liberdade na narrativa, instrumentos e tempos utilizados. Possibilidades que enriquecem o jogo da cultura, a brincadeira, aumentam o repertório, lidam com o diferente, respeitam as novidades.

Em sua fala de abertura, Teca contou que começou as aulas de piano aos 5 anos; que seu avô tocava violão e os dois juntos “eram um todo”. Também desde cedo ficou intrigada com a obrigatoriedade de ir às aulas, de seguir o método formal. Sabiamente, sempre ouviu também o entorno, o informal. E defende: “a gente tem que transformar essa ideia de quem é o professor, o educador”.

Claudio Feijó, fotógrafo e que vem ministrando oficinas de “descondicionamento do olhar” ao redor do país, diz que um mestre muito importante – e desconsiderado – é a ignorância. E conta que seus pais “não esperavam nada” dele e, por isso, pôde ir “para todos os lados”. Sua fala tem início de uma maneira inusitada: diferentemente das outras convidadas da roda, Feijó contou seu relato sentado numa cadeira da platéia, entre o público. Para ele, os hábitos e a repetição provocam expectativas limitantes. O nosso olhar sobre nós mesmos, o que os outros têm sobre nós e o que temos do mundo se somam e criam um universo de diferentes interpretações e camadas.

Texto: Regina Cintra

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Homenagem ao Mário de Andrade


“Mário e a Missão”, filme de Luiz Adriano Daminello, é um documentário repleto de material de arquivo e entrevistas. E música, dança e falas de mestres populares em seus territórios: jongo, coco, cavalo marinho, tambor de crioula, batuque. E quem comanda essa pesquisa pelas danças folclóricas e cultura popular é Mario de Andrade. Através da curiosidade e vasta pesquisa feita pelo escritor modernista, décadas atrás, chegamos na essência de muitas dessas manifestações.

O documentário reconta, por exemplo, a lendária viagem feita por Andrade pelo rio Amazonas, indo de Belém a Iquitos, no Peru, além de sua viagem etnográfica pelo Nordeste. Há sons e imagens captadas nos anos 20 e 30, por exemplo, e há conversas com quem vive e lida com cultura popular na ponta, no fazer – feitas recentemente.

Logo depois da sessão, no Cinesesc, aconteceu uma conversa aberta ao público. E, ao lado do diretor, ninguém melhor que o músico, compositor e bailarino Antonio Nóbrega, artista plural que une, como poucos, a tradição, o popular e o erudito. O pernambucano começa sua fala contextualizando a origem da cultura popular: a mistura, as referências múltiplas, as memórias, narrativas e vivências do povo indígena negro e português. A formação do Brasil em suas diversas camadas. “É esse o caldo étnico cultural que, ao longo dos anos, vai criar esse majestoso universo, que acabamos de ver”.

Infelizmente, para ele “o Brasil não legitimou a sua cultura popular” e provoca sobre a sua importância, já que ela não está impregnada nos nossos hábitos culturais: serviria para alguma coisa que não a pesquisa? Para ele, há duas linhas culturais que correm quase que paralelamente e, em poucos momentos, se encontram. Cita Heitor Villa-Lobos e Guimarães Rosa como referências desses pontos de intersecção.

Daminello completa que o “para turista ver” também acabou por empobrecer diversas manifestações, inclusive no tempo de suas execuções. A partir daí, os governos bancam também com esse propósito: pouco tempo e um pouco de tudo, o que interfere radicalmente nas essências daquelas danças.

Terminando a conversa, Nóbrega se apresentou rapidamente ao público, com sua voz e violão.

Texto: Regina Cintra

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Olhares Olhares 2016

Do pó da terra, barro de comunhão

“O verdadeiro modelador sente, por assim dizer, animar-se sob seus dedos, na massa, um desejo de ser modelado, um desejo de nascer para a forma”-

 Gaston Bachelard. 

“Do Pó da Terra” cria-se arte e comunhão. Onde os afetos e a tradição são forças que circulam pelos dedos da natureza de uma comunidade, junta-se o pó, faz-se o barro, vence a matéria, cria-se e concretiza-se imagens de mulheres e homens que se regeneram, concretizando suas fortalezas. As ausências e presenças, muitas vezes inconciliáveis, apresentam-se nesse grandioso Vale de nome Jequitinhonha. 

Os sonhos e as saudades criam rachaduras na terra e oferecem a matéria-prima para composição da vida. As ataduras de gerações, os partos de mães, as dores dos abandonos, a inspiração das memórias modelam as narrativas. Vidas compostas em artesanato.

O matriarcado dessas comunidades é tecido pelos braços, mãos e forças de mulheres. A ancestralidade brota desse chão que, mestre, vibra todo o valor da cultura que circula nos corpos desse lugar. Do trabalho pesado, envelhecem com a terra, misturam-se à ela, transformam-se nela, em fortalezas de barro.

Para saber mais sobre o filme, clique aquiTexto: Vanessa Fort

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Roda de conversa: Mediador de Mundos

Esta foi uma das emocionantes falas que estiveram na Roda de Conversa inaugural da Ciranda.
Roda de Conversa: Mediador de Mundos – Foto: Aline Arruda

A primeira “Roda de Conversa”, que integra a programação da Ciranda de Filmes, aconteceu há pouco, no Cinesesc, em São Paulo. O encontro, com o sugestivo nome de “Mediador de Mundos”, reuniu Ailton Krenak, José Pacheco e Lira Marques. Ou seja, num mesmo espaço de discussão estiveram presentes uma importante liderança indígena, o educador português responsável pela Escola da Ponte (fundada em 1976 e ainda hoje considerada uma referência mundial em pedagogia inovadora) e uma artesã e educadora negra – diversidade essa destacada por Fernanda Heinz Figueiredo, uma das idealizadoras e curadoras da mostra e também mediadora dessa conversa.

O pontapé inicial foi a figura do “mestre”, tema dessa edição da Ciranda. Krenak pontuou, com uma fala pragmática e poética ao mesmo tempo, a importância, o respeito e o poder da natureza – através da relação estabelecida com ela é possível uma enorme aprendizagem. Foi através dela que aprendeu e vivenciou o sentido estrito da palavra “liberdade”, por exemplo. Lira falou de um modo bastante emocionado sobre a sua mãe como primeira e maior mestre; foi ela quem lhe ensinou a trabalhar a cerâmica e o valor e o gosto pela música. Já o educador português mencionou um vizinho, o sr. Cardoso, que lhe apresentou aos livros, antes mesmo dele ir para a escola.

Krenak compara a natureza à “uma mãe rígida”, a uma instância que orienta, sinaliza, se impõe, exige e devolve respeito. Também ambientalista, escritor e Professor Doutor Honoris Causa pela Faculdade Federal de Juiz de Fora, ele não vê possibilidade de uma vida em harmonia, um ambiente saudável, respeitoso e inventivo sem uma forte conexão com o meio ambiente. Mais do que isso, para ele, “abraçar a beleza da vida” está intrinsicamente à convivência com elementos da natureza e com o seguir “os rastros dos nossos ancestrais”.

E ele conta que, da sua etnia, existem apenas cerca de 350 pessoas. Elas mantém suas histórias e tradições através de falas, gestos, rezas, “benzações” e rituais. São essas as narrativas que contam a história de quem são. O que temos no Ocidente são outras narrativas. Apenas diferentes, nem melhores e nem piores. A diversidade existe – e é fundamental que seja mantida e respeitada. Compara as crianças de hoje à chips, a população como um todo a computadores e programas feitos em série. Krenak brinca: “deveria ser considerado bullying quando se pergunta a uma criança o que ela vai ser quando crescer. A criança é uma estrela de uma constelação; ela vem para ensinar”.

Lira, do Vale do Jequitinhonha, corrobora a importância das nossas relações com os antepassados, tradições e memória. Está fresco nessa ceramista e colocado em suas obras as cantigas de roda que aprendeu desde menina e o espírito de comunidade que sempre sentiu.

Não por acaso fez uma vasta pesquisa, ainda por meio de fitas-cassete (foram 250!), e registro de cantigas de roda e festejo local. Diz que “andava com um caderninho” e anotava tudo, ia atrás quando ouvia uma cantiga pela primeira vez. Isso lhe preencheu, lhe deu sentido: a música que ouvia em casa, que a acolhia e a arte que aprendeu com sua mãe, seu modo de escrever e se colocar no mundo.

Em “Do Pó da Terra”, documentário exibido na sessão de abertura da Ciranda, a artesã deixa claro seu modo de escrever – no barro. Quando lhe perguntam, por exemplo, se ela “faz noivinhas” (em referência à grande maioria das peças feitas por artesãs do Vale), ela diz que não; para ela, não é o que quer fazer e apresentar ao mundo; suas aflições e alegrias não estariam estampadas nessas figuras.

José Pacheco enfatiza a importância das perguntas: perguntar sempre é o melhor caminho. E revela que sua inovação no modelo escolar português se deu a partir de diversos questionamentos. “Por que há turmas? Por que o tempo do intervalo é esse? Por que há banheiros separados para alunos e professores? Por que cada aula dura 50 minutos?”. Para ele, os mestres são as crianças e são elas que podem nos ensinar – fala que encontrou eco com Krenak. A liderança indígena defendeu em certo momento da roda ideia bastante semelhante: “são elas que vêm que nos ensinar”.

E Pacheco está otimista. Ele tem acompanhado uma série de comunidades e experiências realizadas no Brasil. O educador sente que há professoras/es com bastante consciência a respeito do modelo obsoleto de educação que ainda temos vigente. Ele defende e luta por uma “nova construção social de aprendizagem”. Mas pondera que a “síndrome de vira-lata do Brasil” atrapalha – e não tem sentido algum. Em suas pesquisas, descobriu que o “primeiro escrito” a respeito de uma nova comunidade de aprendizagem se deu no Brasil e creditou o trabalho a Lauro de Oliveira Lima.

Perguntas, memórias, respeito aos antepassados, ligação com a natureza, manifestação pela arte, sensibilidade e comunidade: denominadores comuns nas falas e no espírito de cada um dos convidados.

Texto: Regina Cintra

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Olhares Olhares 2016

Mestres e brincantes, narradores e guardiões

“Abancado à escrivaninha em São Paulo

Na minha casa da rua Lopes Chaves

De supetão senti um friúme por dentro

Fiquei trêmulo, muito comovido

Com o livro palerma olhando pra mim

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!

muito longe de mim

Na escuridão ativa da noite que caiu

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos

Depois de fazer uma pele com a borracha do dia

Faz pouco se deitou, está dormindo

Esse homem é brasileiro que nem eu.” – Poema O descobrimento,

de Mário de Andrade

Descobrir e registrar as narrativas populares foram uma das grandes missões e contribuições de Mário de Andrade para o Brasil, país que já nasceu ideia de teceduras de culturas, cosmologias e sincretismos. A cultura popular que nasce e se manifesta das ruas e dos terreiros. Mário ocupou-se de coração e alma, toda sua vida, para narrar a poesia das manifestações populares.  Narrador digno das narrativas para as quais se dedicou. Um narrador-guardião, aprendiz da alma do povo, cultura que antes do modernismo brasileiro não era reconhecida ou valorizada.

 Ao sermos tantas coisas, as tensões de assumir-se sem fronteiras, a afirmação de nossas diferenças nos faz um lugar de conflitos que construíram nossa história. Não conflitos armados com armas de fogo, mas armas de Jorge, Xangô, São Francisco de Assis. Sobreposição de afirmações que nos fazem múltiplos, do cavalo-marinho, Bumba meu boi, Maracatu, Caboclinho, Congo e de todas as expressões do Brasil do fundo, uma espécie de oração e comunhão entre diversos e comuns.

 A composição de diferenças, crenças e saberes criam obras dignas da sensibilidade de artista, esse que sente um “friúme por dentro” ao perceber e encantar-se pelo outro, outros vários que são brasileiros como ele. Em seu olhar sensível e curioso mapeou as cartografias brasileiras como missões de vida, como cartografias de nossa cultura que sempre se reinventa para sempre afirmar os homens de seu tempo.

“O povo é a voz do mundo. O povo muda tudo”, Manuel Papaí, Babalorixá

Nas tensões e conflitos entre classe artística e cultura popular, a vanguarda e a vanguarda da tradição, a sabedoria e a cultura da burguesia, Mário de Andrade dedicou-se a anotar em seu caderno o coração das coisas brasileiras para descobrir novamente o Brasil. Para descobrir os portadores dos segredos de cada manifestação, os mestres e os brincantes.

Em Mário e a Missão”de Luiz Adriano Daminello, vamos acompanhar esses trajetos e descobrir novamente o Brasil, todas as vezes que forem necessárias.  A série documental do Sesc TV ganhou uma versão especial de longa-metragem para a Ciranda 2016. Após a sessão, teremos uma prosa com o brincante-guardião das manifestações populares, Antônio Nóbrega, para celebrar a poesia da comunhão. Um encontro entre Mário e Nóbrega, e todo o Brasil profundo. Na Ciranda ainda teremos a exibição especial do “Brincante”, filme de Walter Carvalho. 

Para saber mais sobre Mário e a Missão, clique aqui.

Para saber mais sobre o Brincante, clique aqui

Texto: Vanessa Fort

Foto: Leia já imagens

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Olhares Olhares 2015

Cordilheira de Amora II

A Cordilheira da Amora II”  é um filme que começa quando acaba. Um filme que desperta nosso poder criativo para novas realidades. A Ciranda vai chegando ao fim com a intenção de inspirá-las.

Da Celebração do fim que se inicia, convidamos Jamille Fortunato (diretora), Lia Matos (produtora) e Alexandre Basso (imagens) para compartilhar o processo do filme, suas intensidades, insights e afetos. O filme é um documentário que apresenta o quintal de Cariane, uma indiazinha Guarani kaiowá da Aldeia Amambai, em Mato Grosso do Sul.

Em uma tarde no quintal

por Jamille, Lia e Alexandre

O encontro com a Cariane aconteceu durante a execução do projeto Memórias do Futuro, uma ação produzida pelo Espaço Imaginário, que tem como objetivo pesquisar a Cultura da Infância do Brasil através de um processo de sensibilização do olhar investigativo e criativo de jovens, educadores e crianças. Em ações que se propagam em redes virtuais e presenciais, o Espaço estimula a aproximação de gerações e a troca de conhecimentos e práticas relacionados ao brincar.

Jovens de diferentes grupos culturais do Mato Grosso do Sul: indígenas, quilombolas, ribeirinhos e da cidade participaram das duas oficinas: a de sensibilização para a importância do Brincar e a de técnicas de produção audiovisual. O propósito da segunda era estimular os jovens para uma investigação e documentação de suas infâncias e as infâncias de suas comunidades.

Entre os jovens estava a Francielli Martines, irmã da Cariane, uma das participantes do projeto, integrante do JIGA – Juventude Indigena Guarani em Ação, grupo muito ativo na Aldeia Amambai em MS. Eles defendem e compartilham a memória e Cultura local com um acervo audiovisual maravilhoso.

Fazia parte do processo de formação dos jovens, o acompanhamento da pesquisa dos integrantes do projeto em cada comunidade. Foi justamente durante este período de acompanhamento da pesquisa que conhecemos a Cariane, em um dia em que fomos convidados pela Francielli para conhecer a sua casa e família.

Logo após o almoço a Jamille foi dar uma caminhada nos arredores da casa e encontrou a Cariane. Pouco depois ela nos chamou e disse: “venham ver aqui uma coisa!” Fomos os 3 com outra câmera. Para nosso encanto, o filme aconteceu assim, como as crianças são: de um jeito muito espontâneo. Aos poucos ela foi nos mostrando o universo que havia ali no seu quintal, nos contando suas histórias e sonhos, inclusive de um filme invisível.

Dentro desse processo, uma de nossas tentativas foi capturar para as telas as brincadeiras do imaginário de uma criança. “Cordilheira de Amora II” foi também o resultado dessa busca, regada pelos olhares delicados e pela nossa parceria. Apesar de ter sido um documentário espontâneo, sem planejamento prévio, filmado em menos de uma hora, usando apenas celular e handcam, ele só foi possível porque foi um trabalho em equipe que já vinha sendo realizado. Tivemos todo o cuidado e respeito ao entrar nas comunidades, sempre pedindo licença.

Naquela tarde de quintal, descobrimos muito mais do que já havíamos apreendido até então. E reafirmamos a nossa certeza – e consciência – sobre a capacidade que cada criança tem de transcender e transformar o que já está posto.

Questões de território e transcendência de fronteiras

Cariane nos mostra uma realidade de maneira muito sutil: um Brasil riquíssimo e abandonado, com interferências e valores sócio-culturais diversos que chegam às crianças de forma descuidada, muitas vezes descontextualizadas, questões de territórios – suas propriedades, apropriações e novas elaborações.

Mesmo assim a criança alcança e transcende com seu potencial incrível de criação e transformação. Ela e seus amigos nos dizem que, sim, é possível ser bonito, que é possível ter mais respeito, que é preciso ouvir, que é possível ter uma casa, cuidar, passear, transformar a escola em um lugar menos chato, que o lixo não é lixo e pode ser transformado. Cariane deixa acontecer cordilheiras na planície do centro-oeste brasileiro com seus sonhos altos e pézinhos no chão. Assim faz a vida menos seca e mais doce como as amoras! Ela nos diz que é possível transformar!

E, assim, acreditamos que todas as crianças deste mundão carregam cordilheiras de amoras nos seus sonhos e corações. Acreditamos também que o grande potencial do filme, o grande potencial que o cinema é de sensibilizar, educar à transcendência com novas possibilidades de transformação para situações difíceis que estão colocadas no mundo e que parecem impossíveis de serem solucionadas.

E, de forma contrária, a criação, simplicidade e beleza nos dizem que, sim, é possível!