Muitos alunos passaram pela escola e o mais especial é que ninguém nunca esqueceu o sentido da liberdade que a senhorita Olga priorizou em cada aula, em cada experiência. Naquela época de rígida estrutura escolar, de conteúdos fechados e bem definidos, surgiu uma porção de ar fresco que carregou o nome de “nova escola” e fez do processo de ensino-aprendizagem um exemplo de educação feliz e cheio de afetos. Em uma época de fotografias e filmes em preto-branco, as irmãs Cossettini souberam fazer da educação uma experiência cheia de felicidade e cor.
A escola ganha uma dimensão do “entre” da fronteira, daquela que existe para se ir além de si mesmo, da sala de aula e da exatidão das horas de cada matéria; para ir além da excelência didática da educação instrucional que se esforça em colocar os alunos fixos e presos em um lugar e em um momento. A escola como fronteira significa romper com a ideia conformista de que a escola é depósito de pessoas que irão cumprir os seus desejos de adultos. (DUSCHTZKY, Silvia – La Escuela como frontera, 1999)
Como fazer da escola a fronteira para jornadas de vida sensíveis, autênticas e potentes? Quais são os métodos libertários e sensíveis que inspiram a vida e o aprendizado cotidiano? Para que nos servem as experiências dos outros? “É sempre perigoso abrir os olhos de alguém para que se encontre com a verdade?” Essas e outras perguntas surgem ao saber que essa escola existiu e existe. Quando nos aproximamos desse documentário de depoimentos, temos a possibilidade de re-criar as histórias dos próprios protagonistas e aprender com elas. As lembranças de uma infância feliz que marcam profundamente o caminhar de uma vida inteira.
No vídeo abaixo* (em espanhol) o diretor Mário Piazza e a Amanda Paccotti, educadora e ex-aluna da Escola, falam sobre a experiência do documentário e sobre o quanto a história de vida e da escola se misturam. O filme será exibido nos dias da Ciranda.
*Programa “Contra-plano” do Canal Encuentro do Ministério da Educação da Nação Argentina.
Uakti era um Ser enorme que vivia próximo à aldeia dos índios Tucanos, às margens do rio Negro, na Amazônia. Tinha o corpo aberto em buracos. Quando corria pela floresta, o vento, passando através do seu corpo, produzia sons belíssimos, incomuns, envolventes. As índias encantavam-se por esses sons. Os índios enciumados, caçaram e mataram Uakti. No local onde foi enterrado, nasceram três palmeiras, cujos troncos os índios fabricam instrumentos musicais que, quando tocados, evocam os sons de Uakti correndo livre pela floresta.
Assim como o ser da lenda, o conjunto brasileiro Uakti – Oficina instrumental é capaz de produzir sons inimagináveis. A magia de sua música começa pela confecção de seus próprios instrumentos a partir de materiais do cotidiano: tubos de PVC, videos, metais, pedras, borracha, cabaças e até água. Tudo se transforma em som. Uma arte repleta de magia, sons e sentimentos. Sua música envolve e toca fundo, uma viagem fantástica através de um mundo místico e diferente.
O grupo é composto pelos músicos Paulo Sérgio dos Santos, Décio Ramos, Marco Antônio Guimarães e Artur Andrés Ribeiro.
A parceria entre o Uakti e o Território do Brincar teve início quando Artur Andrés foi convidado a compor a trilha sonora do mais novo marco do projeto: o longa-metragem que tem pré-estreia na Ciranda de 2015.
De maneira muito natural o trabalho aconteceu. Tudo se tornou especial quando perceberam a essência da afinidade de suas investigações: o idealizar e o construir que compõem o brincar. Assim como as crianças recolhem materiais do seu cotidiano para criar os seus brinquedos, Marco Antônio, o inventor-infante, cria instrumentos a partir do seu cotidiano, os seus brinquedos de musicar.
“Na língua inglesa, o verbo “to play” é utilizado tanto para a performance de um instrumento musical quanto para o brincar. Acredito que esta palavra represente bem a convergência entre esses dois maravilhosos trabalhos”, diz Artur Andrés.
Uakti fará uma apresentação musical na noite de abertura da Ciranda, logo após a exibição do Filme Território do Brincar.
Como uma experiência de 15 anos, o Território do Brincar cria outro marco de sua pesquisa em torno da cultura da infância e do audiovisual. A trilha sonora de composição de Artur Andrés é interpretada pelo grupo mineiro Uakti, que fará uma apresentação musical depois da exibição do filme.
Durante 21 meses, a equipe do filme percorreu caminhos distantes e diversos por todo o Brasil para conhecer as intenções dos gestos infantis, desvendando as subjetividades, a autenticidade e espontaneidade das crianças.
O desenvolvimento da linguagem cinematográfica visa buscar outros caminhos, sem ser didático e sem a intenção de provocar discussões sobre o certo e errado na educação. No Território do Brincar, as crianças guiam nossos olhares e caminhos. A escuta é atenta, para que se apresentem, a partir delas mesmas. O imprevisível e inusitado é parte fundamental dessa história.
O longa-metragem Território do Brincarmarca um novo momento do projeto que tem um grande e importante mosaico de parcerias com escolas, lideranças comunitárias de todo o Brasil, ONGs, educadores, mestres da cultura popular, pais, profissionais da área de cinema e especialistas da infância. Entre eles Gandhy Piorski, responsável pelo argumento do filme juntamente com Renata Meirelles, David Reeks e equipe. Gandhy é artista plástico, pesquisador das práticas da criança, da antropologia do imaginário, de cultura e das produções simbólicas, e é convidado especial da Roda de Conversa Criança e Natureza da programação da Ciranda.
A seguir compartilhamos uma conversa que tivemos com os diretores Renata Meirelles e David Reeks.
Ciranda: A proposta do filme investiga a “geografia dos gestos infantis”. Falem um pouquinho sobre ela, sobre as suas especificidades em cada lugar em que vocês estiveram e o sobre o que caracteriza a unidade do filme.
Renata e David: A busca é por caminhos distantes e diversos para conhecer as intenções dos gestos das crianças. O primeiro passo é o convívio íntimo com elas, permanecendo um tempo alongado a cada visita, criando vínculos e espaços de muitas trocas. A etapa seguinte é um mergulho nas imagens captadas e desenhar uma espécie de mapa humano com ações que se assemelham, muito mais do que se distanciam. A intenção é apresentar o único dentro do diverso, e nos aproximar de quem somos.
Um bom exemplo para apresentar essas intenções são os meninos das mais diversas regiões brincando com seus carrinhos. Algo óbvio, simples e de conhecimento geral de todos. Construído pelos meninos, montado com peças industrializadas ou comprado, o desejo por esses brinquedos é absolutamente intrínseco ao menino, muito mais que as meninas. O gesto recorrente de empurrar, puxar ou dar vida aos carros, barcos, aviões, trens etc., não é de uma região específica ou de uma época datada. Por isso, para além do carro em si, nossa opção é por mostrar o desejo coletivo do menino de ir, seguir, transitar.
Como esse, muitos outros exemplos ocorreram no trajeto de 21 meses contínuos de vivência com crianças das mais diversas realidades. Um percurso por uma vasta geografia, focados nos gestos infantis para encontrar caminhos por dentro de todos nós.
Ciranda: Comentem um pouquinho sobre o desenvolvimento da linguagem cinematográfica do Território do Brincar, e sua relação com o estado de escuta e observação das crianças.
Renata e David: O Território do Brincarbusca construir uma linguagem cinematográfica que não visa explicar, ser didática ou mesmo provocar discussões sobre o certo e errado na educação. Nesse longa-metragem o foco é sensibilizar o adulto para que ele consiga se ver “contado” por essas tantas crianças.
Diferente de querer se colocar no lugar da criança para entendê-la, ou explicá-la, o desafio aqui é saber olhar para ela. Como a enxergamos pode transformar nossas atitudes em relação a ela. O que é óbvio e desapercebido, recebe uma nova forma de ser visto, ganha protagonismo e muda nossa atitude de vê-la.
No Território do Brincar, as crianças guiam nossos olhares e caminhos, e a câmera corre (literalmente), para focar suas expressões, espontaneidade e subjetividades. A escuta é atenta para que se apresentem, a partir delas mesmas, sem pré-roteiros ou expectativas. O imprevisível e inusitado é parte fundamental dessa história.
O filme é parte de um projeto de pesquisa, registro e difusão que integra diferentes produções culturais. Uma realização que entende o cinema como uma excelente porta para enxergar a mudança que se quer ver.
Ciranda: Quais foram os desafios de contar histórias em um longa-metragem. Como foi essa construção, do argumento original até as gravações e a edição.
Renata e David: Existe um outro filme por detrás do processo de produção de longa-metragem. Uma história de um desenrolar intenso que não aparece na tela. Há algumas particularidades do trabalho de campo que não se vê em cena, mas fazem parte dessa história, como: a vivência afetiva com as crianças nas comunidades, os desafios da viagem em família, a afirmação controversa da grande maioria dos adultos que insistem em afirmar que criança hoje em dia não sabe mais brincar.
Os desafios foram das mais diversas ordens. O principal deles foi permitir que a criança falasse de si, sem deixar escapar as sutilezas e os temas que são tão caros ao projeto.
Inicialmente criamos uma narração entre uma mãe e seu filho, a luz das imagens das crianças brincando. Um diálogo livre, sem amarras que escancarava as dúvidas e descobertas de ambas as partes. Depois de muitas tentativas, ficou claro que a narração fazia sombra na potência da comunicação gestual das crianças. Entendemos que todas as camadas narrativas já estavam ali e nada mais precisava ser dito. Assim, assumimos silenciar a narração. O filme ganhou muito com essa decisão e a infância também.
Ciranda: Qual é a importância das parcerias para esta composição?
Renata e David: Para juntar as peças de toda essa trama e fortalecer esse movimento pela causa da infância, as parcerias foram muitas com escolas, lideranças comunitárias, ongs, educadores, mestres de cultura popular, pais, especialistas da infância, pessoas da área do cinema. A lista é enorme e cada um deles alimentou nosso olhar e nossa coragem para seguirmos caminhando.
Os verdadeiros mestres e guias desse filme foram as centenas de crianças que conhecemos, brincamos e criamos uma intensa amizade e profundo respeito.
O Instituto Alana é o grande parceiro desse Projeto, em uma co-realização que casa desejos, esforços e missão. A Maria Farinha Filmes que, assim como nós, acredita que uma história bem contada pode realmente fazer a diferença na forma como as pessoas veem o mundo.
A equipe de argumento, Gandhy Piorski, Marcos Ferreira e Soraia Saura, que nos levam a lugares essenciais da infância. A editora Marília Moraes e a roteirista Clara Peltier formaram conosco um coletivo de olhos e ouvidos atentos a tudo na produção do filme, em relação harmônica e sem hierarquias. O Artur Andrés e toda sua equipe de músicos do grupo Uakti que transformaram essas imagens em uma trilha sensível e potente, que leva a experiência poética do filme para outros sentidos.
E, por fim, mas não menos importante, houve o nosso envolvimento, pessoal e particular, de sair em viagem durante dois anos, carregando a família e o desejo da convivência máxima com os nossos dois filhos. Durante todo trajeto de captação de imagem, as crianças das comunidades se envolviam com os dois meninos vindos de fora, e ali criava-se um processo absolutamente espontâneo do brincar. Aos poucos isso foi se configurando como uma parceria não planejada, porém, crucial na construção desse filme. O aprendizado e convivência diária com eles é o alimento supremo de tudo, o que reforça o desejo de continuar nessa caminhada.
Ciranda: Qual é a intenção da Oficina: Desvendando o Processo Cinematográfico que parte da equipe do Território do Brincar vai ministrar.
Renata e David: Nessa oficina iremos compartilhar todos os bastidores e processos da produção do filme: dificuldades, conquistas, descobertas e desafios vividos nesses 3 anos de trabalho. Detalhes da pesquisa, da produção de campo, da captação de imagem, da elaboração do argumento, do roteiro e da edição serão compartilhados com todas as dores e delícias de viver esse processo. Além dos diretores, a Marília Moraes (montadora) e a Clara Peltier (roteirista) irão contar seu ponto de vista na participação desse filme e as marcas que as crianças deixaram nos seus trajetos. Um bate-papo que irá apresentar uma experiência de mais de 15 anos de registro da infância, que tem o vídeo como marco do olhar dos pesquisadores.
O lá fora guarda o mistério e alegria das descobertas. Distraídas e dedicadas, as crianças desvendam segredos sobre o viver e o conviver. Dos encantos aos perigos do desconhecido, lá estão todos os lugares onde elas descobrem a vida, vivendo. Desbravando a si mesmas, brincam com as fronteiras invisíveis do ser e do crescer, construindo seus espaços poéticos e sensíveis.
A curadoria da Ciranda 2015 conta com filmes que mostram esses encantos e desafios. Entre eles estão:
“O olho vê
a lembrança revê
e a imaginação transvêa
é preciso transver o mundo”, Manoel de Barros
Com poesias, prosas e peças, mestres nos encantam pela ausência de certezas, pelo constante e potente vir-a-ser. Onde tem inquietação, eles criam potência e inspiração, o caminhar. Sua lição é assumir-se como sua própria obra, assim nos presenteia com sua própria vida.
Mestres de fazer poesia no entre, do espanto, com humor e com a sabedoria do sertão, Manoel de Barros, Rubem Alves e Ariano Suassuna são os homenageados da 2ª Ciranda de Filmes.
Artistas da ética e estética, como sábios que abraçam ao mesmo tempo a decência e a boniteza, esses três grandes nos deixaram em 2014 com uma vasta obra que os eterniza.
Na Ciranda deste ano, poderemos revê-los em três documentários para seguirmos inspirados a transver e a mudar o mundo. Obrigada, mestres!
Foram três dias cirandando, descobrindo-se e encontrando-se em imagens da infância, rompendo os muros da escola, impulsionando uma onda transformadora, urgente. A Ciranda de Filmes, mostra que reuniu documentários, ficções e animações, rodas de conversa e a exposição Território do Brincar, inaugurou um espaço inédito para se pensar a infância e a educação a partir do audiovisual e com todos os desafios da contemporaneidade.
Ao longo do encontro, entre as conversas nas rodas ou nas “esquinas”, entre um filme e outro da programação, os participantes afirmaram a importância de reunir em uma só ciranda diversos personagens e forças em prol da infância e de uma educação pautada pelo sensível. Lydia Hortélio, que teve uma participação especial com sua palestra brincante, foi certeira: “É preciso saber menino”.
Os meninos estavam lá, na tela grande. Na programação, com 35 filmes, entre curtas e longas-metragens, vivemos uma grande aventura do humano. Nascemos com “Birth Story”, demos os primeiros passos em “Bebês”. Crescemos e brincamos muito com os documentários do Território do Brincar. Adentramos a intimidade das casinhas das crianças em “Ô, de Casa”. Vivemos um verdadeiro jardim da infância em filmes como “C’est pas du Jeu” e “Sementes do Nosso Quintal”. Seguimos numa grande jornada, heroica e solitária, necessária para romper mundos interiores em longas como “Matei Copil Miner”. “Adolescemos” e passamos a questionar um sistema educacional cheio de incoerências em “A Educação Proibida”.
Mas não só. Esse foi apenas um jeito de navegar pelas imagens inspiradoras da Ciranda de Filmes. Cada participante construiu sua própria narrativa.
Nas rodas de conversas, especialistas e produtores dialogaram sobre três eixos temáticos – infância e nascimento, espaços de aprendizagem e movimentos de transformação. Diferentes mestres do pensar a infância entraram na mesma roda, cirandaram junto. Paralelamente à exibição dos filmes da programação, as conversas foram tecendo outras imagens, compondo diálogos entre cinema, brincar e viver, literatura, educação, poesia e infância.
Não estavam ali apenas educadores, pediatras, antropólogos, artistas plásticos, cineastas e pesquisadores do universo da criança. Conectados com sua essência de infância, constantemente evocada no encontro, estavam também os meninos e as meninas que foram (e que são). As memórias de infância vieram à tona na cantiga de ninar uruguaia que embalou Adriana Friedmann quando menina, no mar-brinquedo de Maria Amélia Pereira, que teve a praia e a natureza como um verdadeiro espaço de aprendizagem, e no jardim da infância (re)vivido por Fernanda Heinz Figueiredo, entre outras lembranças.
Com os palestrantes-brincantes-cirandeiros, a plateia criou figuras com barbantes, participou de um concerto de pássaros desabrochados, cantou brincos. Brincou. E se a ciranda de Antônio Nóbrega abriu o festival, Tião Carvalho fechou a roda com mais brincadeiras. Assim, o espírito lúdico ali tão evocado extrapolou a telona e o discurso. Cirandar foi um verbo não só flexionado, mas também exercitado. Eu cirando, tu cirandas, ele ciranda, nós cirandamos…