Quantos ritmos cabem nesta Ciranda? Foi com essa pergunta-chamamento que as curadoras da Ciranda de Filmes, Patricia Durães e Fernanda Heinz Figueiredo, abriram a mostra de 2019, no Espaço Itaú de Cinema Augusta, em São Paulo. Era um chamado para percorrrer as sonoridades Brasil adentro e mundo afora, ouvindo os sons ao longo do rio Amazonas, os ritmos das quebradeiras de coco, a toada do bumba-meu-boi, as sonoridades dos ciganos em jornada da Índia à Espanha, um músico encantando elefantes em terras tailandesas ou as vozes da natureza nos rincões do planeta.
Ali se iniciavam quatro dias de programação intensa, com filmes, oficinas, vivências, trocas, escutas e reflexões. Já na abertura, uma diversidade de ritmos marcava a telona: “Amazônia Groove” (Bruno Murtinho) inaugurou o encontro com o ecletismo do carimbó ao technobrega, da música clássica à guitarrada. Aliás, guitarrada do mestre Manoel Cordeiro que, se fechou o documentário de Bruno Murtinho com um show, abriu a Ciranda de Filmes com outro. Foi surpreendente sair das salas de cinema e encontrar o músico paraense num coreto de fitas coloridas convidando todos a dançar ritmos de sua terra natal. Era só o começo.
Na quinta-feira, a primeira vivência foi o toré dos Kariri-Xocó. Com chocalhos nos pés e maracas nas mãos, cantaram e dançaram em roda, num ritmo que significa “o que a tristeza significa”, “para poder desabafar, lembrar-se”. Terminada a apresentação, abriram uma rodada de perguntas. Foi uma “maravilha de vozes”, observou um dos espectadores, uma reunião de diferentes timbres que formam uma unidade harmônica. O mestre Wyanã Uia-Thê Kariri-Xocó explicou a inspiração para tal maravilhamento: “Vemos o gesto do passarinho, o som do vento, o som da água. Não nos preocupamos muito em botar muita letra [nas composições], nos preocupamos com a espiritualidade. O sentir, daí nos deixamos levar”.
A potência da música foi reafirmada mais tarde, na exibição de “Vivo por dentro: uma história de música e memória” (Michael Rossato-Bennett), que relata casos de tratamento de Alzheimer a partir da musicalidade – a área do cérebro que responde a estímulos musicais é uma das últimas a ser comprometida. Assim, perguntar a esses pacientes quais suas canções favoritas, aquelas que marcaram suas vidas, ajuda a reavivar memórias. A importância da música na área da saúde entrou ainda mais na roda durante a conversa com o grupo Arte Despertar, que trabalha com sons e histórias em hospitais. Para o musicoterapeuta André Lindenberg, um dos integrantes do grupo, a música é capaz de ressignificar um espaço como o do hospital e de transformar o tempo. Experiências que dilatam o tempo.
Com Lydia Hortélio, a música adentrou o território da infância. “Qual a mais remota lembrança musical dos tempos de criança que vocês têm?”, perguntou a etnomusicóloga que no Brasil abriu caminhos para um cuidadoso olhar para a cultura da infância. Na palestra da educadora que até hoje exercita seu corpo brincante, ela relembrou sua meninice em Serrinha, cidade na Bahia, onde fez um extenso registro dos brinquedos musicais em diferentes décadas do século passado, reunindo mais de 600 cantigas. Numa fala em tom de urgência, falou também do “fosso que separa cidade e campo no país”. Na zona rural, “onde o Brasil está encoberto”, a música acompanha todos os gestos das comunidades que persistem em habitar a natureza. E convocou: “Temos que voltar a cantar”.
Seguimos cantando e conversando. Ou melhor, seguimos com “O Piano que Conversa” (Marcelo Machado), um filme com muitos diálogos musicais protagonizados pelo instrumento do título, em parceria com o pianista Benjamim Taubkin. Quando perguntado sobre a sua relação com as sonoridades de outras culturas, Taubkin respondeu sobre a música ser “o próximo estágio da humanidade”, em que “quanto mais a pessoa puder ser o que ela é, melhor”. E as prosas desse instrumento continuaram ecoando em outros filmes, como o documentário “Nelson Freire” (João Moreira Salles), o curta “O Afinador” (Fernando Camargo e Matheus Parizi) e a ficção cubana “Esteban” (Jonal Cosculluela).
Na sexta-feira , a educadora Therezita Pagani, da escola Te-Arte, quintal para a vivência plena da infância, participou de um bate-papo após a exibição do filme “Música na Te-Arte” (Fernanda Heinz Figueiredo). Therezita, batizada de “talismã” da mostra por uma integrante da plateia, lançou uma pergunta às mães: “Qual foi o primeiro embalo que cantaram para seus filhos?”. Foi bonito o que elas entoaram em forma de resposta: de composições autorais a canções que há tempos rondam a noite infantil. A música é o primeiro elo para que a criança se entenda, conheça seu ritmo interno, a educadora explicou. Ao final da conversa, um último pedido da educadora: “Vamos continuar sensíveis à música até o fim da vida”.
Já na exibição de “Amazônia Groove” aberta ao público, o diretor Bruno Murtinho nos contou como musicalidade e espiritualidade caminham juntas. Falou das dificuldades de gravar na região Norte, território imenso, onde o deslocamento é oneroso e leva bastante tempo. Da imersão em um mundo desconhecido pelos brasileiros. Do trabalho de entrevistas de cinco anos. Ao final, um resultado que impressiona: “A Amazônia me deu tudo que eu pedi a ela”. Um filme sobre fé, que foi feito a partir de vários pequenos milagres.
Benjamim Taubkin, em parceria com os também músicos João Taubkin e Kabe Pinheiro, voltou a inspirar o público da Ciranda numa outra conversa (intensamente) musical. A partir de três filmes inspiradores para o seu fazer artístico – Encontro com homens notáveis (Peter Brook), Camelos também choram (Byambasuren Davaa, Luigi Falorni) e Todas as manhãs do mundo (Alain Corneau) –, dialogou sobre a potência da música, território imprescindível. Entre uma prosa e outra, ele e os outros músicos criaram na hora composições em sintonia com o que tínhamos acabado de ver e ouvir no cinema, onde um piano marcou todos os dias presença.
O sábado começou com a apresentação da orquestra das crianças da EMIA, que encantou o saguão do cinema com músicas como com Tico-tico no fubá. Para continuar o assunto de ensino musical, uma partilha de experiências se desenrolou com a presença de Claudia Freixedas, Jorge Fofão, Roseli Novak e Teca Alencar de Brito. Papo que rendeu reflexões sobre como entender a música como um jogo aberto, em que cabem inúmeras possibilidades e experimentações. Entendido como manifestação natural do ser humano, território também do brincar. Espaço em que é necessário respeitar a autoria das crianças.
A plateia surgiu com algumas questões a respeito de expressões musicais contemporâneas e como educar as crianças nesse sentido – e o tempo ficou curto para tamanha discussão. Como fechamento, a fala de Fofão emocionou a plateia e destacou a importância de procurar sentido nas letras, nos sons. Eles significam algo. O fazer musical é parte da existência, “a música está na essência do homem, quando ele perde isso, ele está se machucando dentro dele mesmo”.
A exibição de “Ouça o Silêncio” (Mariam Chachia) foi seguida por uma discussão sobre o papel da música no desenvolvimento humano com o médico neurocientista Mauro Muszkat. O ponto principal da conversa girou em torno dos impactos da tecnologia nesse processo. Sobre a velocidade de informação a que os jovens estão expostos e as dificuldades em assimilar todo esse conteúdo, o médico comentou: “Nosso cérebro é plástico, mas não é elástico”. É interessante estimular uma criança a partir de diversas ferramentas e instrumentos, mas perceber se elas estão sincronizadas com esse movimento é essencial. “Quando você escuta uma música, tem que ter tempo para processar”, se as crianças ficam conectadas digitalmente durante muito tempo, esse tempo não é respeitado.
A urgência da musicalidade em nossas vidas permeou muitos territórios. E adentrou as aldeias no bate-papo Cantos da floresta, com a educadora Berenice Almeida e o músico Gabriel Levy. Eles começaram pedindo que o público se levantasse e aquecesse o corpo com um canto Krenak. Relacionar voz, palma e pisada, para muitos, foi difícil e exigiu algumas tentativas. A intenção era justamente conectar a plateia com essa sonoridade tão distinta do que é consumido musicalmente em grande parte do Brasil, influenciado por um padrão cultural europeu. A educadora musical proporcionou uma sensibilização sonora. À medida que apertava o play no computador, pedia para que as pessoas dissessem as imagens e sensações que vinham à cabeça. Chocalho, aves voando, força, terra e fogueira, tudo coube na floresta que foi trazida à sala de cinema.
Sempre presentes no saguão, as crianças vieram para a sessão comKids, com as reações mais diversas para a seleção de filmes. Não faltaram dancinhas nas cadeiras para momentos alegres, choros para os momentos mais obscuros de “O Rapto” (José Luis Jiménez Díaz) e aplausos ao fim de cada filme. Entre um murmúrio e outro, uma menina pergunta à amiga, após assistir ao curta-metragem “Cassiopeia” (Paulina Urreta), obra mais introspectiva: “Mas, afinal, o que esse filme tem a ver com música?”, confusa. A outra lhe responde apenas: “É o silêncio”.
Mais tarde, houve a exibição de “Patrimônio imaterial número 82” (Emma Franz), sobre o baterista australiano Simon Barker em sua jornada por conhecer a música tradicional coreana. O músico encontra Kim Seok-Chul, um importante xamã que estava profundamente doente. O longa documental é permeado pela filosofia coreana, em que os xamãs-artistas se utilizam da música para trazer os espíritos antigos; em que essa linguagem artística se apresenta como uma forma de “comunicar a energia”, sendo energia sinônimo de ritmo. Assim são conhecidos, como xamãs-artistas, pois acreditam que “os músicos são uma ponte espiritual entre o Espírito Santo e as pessoas”.
Tudo isso está profundamente conectado à natureza. Para eles, o “yin” está presente no vale e o “yang”, na montanha. A cachoeira, então, seria o lugar onde esses dois elementos se encontram, um espaço de equilíbrio pleno, da “beleza rústica” da pedra, da água corrente. É onde muitos buscam essa conexão com os ensinamentos da Terra, da mudança, do caminho, do que chamam de “brilhantismo despertado”: “Você pode escolher ser um rio ou um lago”, diz uma voz, no filme, sobre as lições do refúgio no mundo natural.
Após essas reflexões de uma cultura tão distante geograficamente, um convite ao que está perto: Gustavo Gitti ofereceu a vivência TaKeTiNa, com ritmos tradicionais de diversas culturas, inclusive a coreana. O inventor desse método, o austríaco Reinhard Flatischler, aprendeu seus princípios com Kim Seok-Chul, o xamã do filme “Patrimônio imaterial número 82” . Todos, então, se juntaram no saguão do cinema, em uma roda, entoando sons em um mesmo ritmo, uma mesma sintonia. “Boa parte do nosso sofrimento vem da desconexão”, abriu Gustavo Gitti, chamando as pessoas a buscarem essa cura por ritmos arquetípicos, inclusive brasileiros, para trabalhar corpo e mente. A vivência de vinte minutos foi intensa, mas apenas uma amostra do método que costuma durar horas – e que já havia sido experienciada por alguns na oficina que Gitti ofereceu durante os dias da Ciranda.
Tony Berchmanns também encantou o público na exibição do clássico “O Garoto” (Charles Chaplin). Enquanto o filme passava, reproduzido em um projetor cinematográfico analógico 35mm, o pianista improvisava sua trilha sonora ao vivo. Em uma masterclass oferecida um pouco antes, contou algumas de suas técnicas: “A minha partitura é o filme, estou em intenso diálogo com ele”. Por isso, tem um “vocabulário de temas” em sua cabeça, o qual acessa quando está em uma sessão de Cinepiano. Mostrou diferentes variações de harmonia, ritmo, melodia e sonoridades que podem atribuir outros sentidos a uma trilha sonora, mais alegre ou mais triste, mais calma ou mais agitada. Tudo isso como uma construção de clichês que foram construídos durante a história da música. “Meu foco é tentar trazer o que a narrativa quer construir”, disse Berchmanns, aplaudido de pé.
A noite do sábado não findava ali. Marcelo Machado, cineasta consagrado que se especializou em filmes ligados ao tema musical, trouxe também a público histórias de bastidores de seu documentário lançado em 2012, “Tropicália” – as entrevistas com artistas que participaram desse movimento cultural, pesquisa e montagem do longa, que foi exibido na mostra. Entre as curiosidades, o fato de que o filme foi pensado inicialmente de forma muito diferente. Seria a história de um artista estrangeiro que vem ao Brasil conhecer o tropicalismo, mas temeu que esse personagem externo “eclipsasse” as verdadeiras estrelas do filme, os brasileiros.
Decidiu, então, começar com a pesquisa, um trabalho de garimpo que durou dois anos. Pressionado pela produtora, colocou todo o material em uma linha do tempo e percebeu que já era suficiente. Começou as entrevistas com artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé, sempre em uma “caverna da memória”, espaço escuro e com uma grande tela que organizava especialmente para isso. Lá, mostrava a seus entrevistados “partituras”, trechos de vídeos da época não tão conhecidos, com dez a quinze minutos de duração.
Foi inevitável comparar aquele tempo com o presente, mesmo com diferenças bem marcadas. Isso veio nas perguntas do público, em que o diretor reconheceu as semelhanças. “Por mais que dialogue com o tempo atual, o grande mérito do filme é trazer a memória.” Sobre política, assunto que permeia todo o longa, resumiu: “Quando os tempos são de convulsão, os músicos são antenas como todo artista. Eles [os tropicalistas] viveram seu tempo com grande intensidade”.
Então já era domingo, dia de exibição do filme “Mantra – Sounds into silence”, em que um dos personagens do documentário começa definindo tal prática: man (“mente”), tra (“transcender”). O longa de Georgia Wyss traz o tempo todo essa busca pela calmaria interna, pelo desligamento do excesso de informações que nos cerca, pela liberdade. Sugere caminhos para desviar-se do “kali yuga”, o “tempo das máquinas”, e dedicar mais tempo a nós mesmos. São diferentes perspectivas mostradas no filme, diversas “comunidades sonoras”, incluindo a de presidiários que também estão nessa empreitada de desenvolvimento da espiritualidade e têm contato com o kirtan, um tipo de mantra. Afinal, a espiritualidade permite que qualquer um, de qualquer crença, envolva-se em tais práticas. “Espiritualidade é sobre sabedoria, e não sobre poder.”
Terminada a exibição do filme, fomos convidados a uma rica vivência com Fátima Caldas, do Instituto de Gestalt de Vanguarda Claudio Naranjo. Foi uma experiência de imersão para acessar nossa interioridade por meio da música. Bach, Mozart, Beethoven: suas composições conduziram uma meditação guiada, de acolhimento de si. A proposta era adentrar em diferentes tipos de amor, experimentar estados interiores, tudo por meio da música. Deixar que ela “fale através de você”. “Não importa a cultura, não importa a linguagem musical, precisamos de um lugar que a música acessa com facilidade […], que sempre clama por contato.”
Também fomos marcados por um documentário essencialmente musical que, sem falas ou diálogos, conta a história de migração dos ciganos, do noroeste da Índia à Espanha, trazendo tradições culturais e questões políticas ligadas ao povo. Assim é “Latcho drom” (Tony Gatlif), um dos últimos filmes exibidos na Ciranda de Filmes, seguido por uma conversa com o professor de mitologia Marcos Ferreira-Santos. Ele comparou o modo de vida das populações ciganos ao dos povos afros e indígenas. “Não são sociedades-museu, são sociedades vivas”, lembrou o educador, ao citar semelhanças como a vida em comunidade, a relação intrínseca com a natureza, a tradição oral e uma outra concepção de infância.
“Mais do que aprender a falar, aprendemos a ouvir”, diz, sobre uma “poética da escuta” exercitada pelos povos mencionados. Nessas comunidades, a saúde pessoal corresponde à saúde comunitária. “O ser humano não é essencialmente bom ou essencialmente mau. Ele é doente.” E o que é melhor do que a música para curá-lo? Afinal, “a nossa pátria é a música, a dança e a língua”, conclui.
Após tantas experiências transformadoras, chegou a hora da despedida da 5ª Ciranda de Filmes. O encerramento foi anunciado por uma grande mestra da música, que ressoa até hoje na nossa tradição popular: a fluminense Clementina de Jesus retratada em documentário de Ana Rieper. Considerada o “elo perdido” entre a cultura brasileira e suas raízes africanas, marcou o Brasil e o mundo com sua voz e suas composições, além do extenso repertório de canções africanas.
Era o fim? Ao sair da sala de cinema, ainda movidas pelas histórias e rimas da sambista, as pessoas se depararam com os brincantes do bumba-meu-boi comandados pelo mestre maranhense Tião Carvalho, com a participação do Grupo Cupuaçu. Todos entraram na roda e brincaram junto ao Pai Francisco e à Mãe Catirina, sem poder faltar, é claro, o boi e seus giros que tanto encantaram as crianças. A brincadeira foi tão intensa que transbordou para a rua, em plena Augusta, com os tambores ressoando em meio às buzinas dos carros e ônibus, abastecendo a cidade “de poesia, beleza e coragem”, assim como nos contou a professora Shirley Maria de Oliveira, que disse frequentar a Ciranda como quem “adentra um portal, um lugar de encantamento, encontro e afetos”.
Texto: Gabriela Romeu, Luísa Cortés e Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas
Fotos: Samuel Macedo