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Olhares Olhares 2019

Música: comunicação que transcende a língua

Influenciados em grande parte por referências artísticas europeias e sob um olhar etnocêntrico característico da época, diversos viajantes, cronistas e pesquisadores, dos séculos XVI ao início do XX, classificaram de forma pejorativa as manifestações culturais indígenas. 

Sobre a música dos Botocudo (grupo chamado de Krenak ou Borum, hoje em dia, mais concentrado em Minas Gerais), por exemplo, o naturalista e etnólogo alemão Maximilian zu Wied-Neuwied registrou no início de 1800: “[…] nos homens, o canto se assemelha a um ruído desarticulado, que oscila entre três ou quatro notas, ora subindo, ora descendo, e parece provir do mais fundo do peito […] tudo pareceu-me um simples vozear sem palavras”. Ainda hoje se faz necessário despir-se dessa visão etnocêntrica. Compreender as sonoridades indígenas significa ampliar uma escuta sensível, como explicam as musicistas Magda Pucci e Berenice de Almeida no livro Cantos da floresta – Iniciação ao universo musical indígena, publicado pela editora Peirópolis.

Nesse sentido, um ouvido acostumado, exclusivamente, às músicas originárias dos padrões estéticos centro-europeus e a perceber, muitas vezes, a música como distração, a exemplo do que acontece com a população urbana-ocidental, encontra dificuldades em entender o significado dessa expressão para os povos indígenas. Os povos indígenas, resguardando as particularidades de cada um, compartilham uma relação comum a essa prática: “A música é geralmente considerada parte fundamental da vida, e não complemento ou simples entretenimento, ela quase sempre está imbricada em um caldeirão cultural, no qual todos os saberes estão muito conectados”, comenta a educadora musical Berenice de Almeida. O que para muitos é grito, para os Guarani, é japukaí,o canto forte e estridente da voz aguda das crianças. O que para os mais distraídos aparenta ser silêncio na floresta, para os Kaingang, é a natureza e seus espíritos produzindo som e, assim, afirmando estarem vivos.

A diversidade da música indígena se faz no detalhe. O exótico não tem riqueza musical, é visto como massa amorfa. Reiteração de preconceitos. No território brasileiro, existem mais de 250 povos indígenas, que, juntos, somam cerca 900 mil habitantes, cada um com sua história, seus ritos e sua forma de viver o cotidiano, as suas histórias e sua própria música. Reunir todos em uma categoria de “música indígena” é reduzir um conjunto plural e ignorar as especificidades de cada grupo. Definir a cultura musical dos indígenas como o tocar de tambores oculta a variedade de instrumentos utilizados, que incluem maracás e diversos tipos de sopro. Só reforça estereótipos.

Assim, ao ouvirmos as músicas das muitas etnias brasileiras, podemos refletir que  expressar-se musicalmente é universal, mas cada expressão sonora tem sua singularidade. “Se você não está muito versado nos códigos daquela música, você pode criar estranhamento, achar que não está entendendo. Não é só pela língua, mas pela questão musical propriamente dita”, aponta a etnomusicóloga Magda Pucci, diretora artística do grupo Mawaca. Mas, se existe uma forma de comunicação que transcende a língua, esta se dá pela língua da música. Como quando em períodos pré-históricos, do bater de duas pedras faiscava algum lampejo comunicacional, rítmico, anterior, até mesmo à fala.

A cantora Tikuna Djuena pode, enfim, esclarecer um desses vários entrelaçamentos entre música, experiência e linguagem: “A música para nós, povos indígenas, é nativa, tanto quanto o mais velho ancião. É nativa porque nasce conosco, tem cheiro de fumaça, gosto de mapati e é pintada de urucum e jenipapo. Há música no canto da parteira que acalma a mãe que vai parir e, do lado de fora da maloca, o pajé, ao som do maracá, entoa seus cânticos sagrados para afastar o mal e acalantar os espíritos. O canto faz parte do nosso cotidiano. Cantamos quando nascemos e quando morremos. Há cantoria para botar roça, para pescar e para caçar. Quando chove ou faz sol. Cantamos nos rituais de paz e de guerra. Celebramos a vida através do canto”, diz a cantora, em trecho do inspirador livro Cantos da floresta.

Texto: Miréia Figueiredo

Fotos: Renato Soares e Davi Boarato/Facebook Cantos da Floresta – A Floresta Canta – livros