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Beth Beli: o pertencimento do tambor

Nascida na Brasilândia, zona norte de São Paulo, Elisabeth Belisário cresceu ouvindo do pai militar, um homem rigoroso, que era preciso batalhar para “ser alguém na vida”. Só entendeu melhor o que o conselho significava quando seu mundo foi se expandindo, para além das quebradas. Numa sociedade de profundas raízes racistas, a menina negra da periferia tinha que provar que “era mais”, que podia ir além. E escolheu seu instrumento de luta, inicialmente a contragosto do pai. Virou Beth Beli, forte referência feminina nos tambores.

Aluna de colégio militar na juventude, hoje ela lidera um outro exército. Só de mulheres (trezentas!), atentas a seus sinais para fazer ecoar os sons de agogôs, xequerés, alfaias e djembês. Sua farda é também outra. De camisa colorida e chapéu adornado, ela comanda o bloco afro Ilú Obá de Min, nome iorubá que significa “mãos femininas que tocam tambor para Xangô”. Sua batalha é pelo empoderamento feminino, pela força da cultura negra, pelo direito de ocupar os espaços públicos. “Aqui as mulheres podem cantar, podem dançar e podem tocar”, anuncia ao microfone durante uma apresentação do grupo em São Paulo. Seu comando é o da “suavidade”.

Era jovem quando conheceu sua mestra, uma amiga inspiradora: Girlei Luiza Miranda, filha de bamba, um mestre de bateria, criada nas batidas de escolas paulistanas como Peruche e Rosas de Ouro. Num dia, batucando num balde por brincadeira, Girlei logo percebeu que na menina pulsava um ritmo. Foi sua primeira incentivadora e juntas passaram a frequentar muitos barrões. Tempos depois, criaram com uma turma de amigos a Banda-Lá, sendo esse “lá” a África e todo o seu legado ancestral. “Nessa época só tocava xequeré, não me deixavam tocar tambor”, lembra. “Ainda não era o meu tempo”, diz sabiamente com um jeito doce, sorriso nos olhos.

Era uma banda de ativistas negros, um total de 22 pessoas, entre músicos e dançarinos, que reverenciavam os orixás. Nessa época, foi iniciada nos terreiros de candomblé, onde ouvia atentamente o som dos tambores, que batia fundo na jovem, em seus vinte e poucos anos. Mas revela que o som era também recebido com um certo temor, algo originário lá na infância. “Não sei bem por que, mas eu tinha medo de mar e de tambor”, lembra. Seu medo virou sua matéria-prima. “Eu não escolhi o tambor, foi o tambor que me escolheu”, afirma, ciente de sua missão espiritual – e também social, feminista e artística.

A Banda-Lá durou uma década. Depois muitos dos seus integrantes decidiram ocupar lugar nas universidades. Beth e Girlei herdaram os tambores – e seguiram em busca de suas próprias batidas. Depois vieram a passagem pelo bloco Ori Ashe, grupo afro-sampista, com a participação de homens e mulheres, e os trabalhos teatrais com Zé Celso, Renato Borghi e Ligia Veiga. Também se enveredou pelos caminhos da arte-educação. Mas não demorou muito e reverberou um novo chamado. “Muita gente dizia que eu devia voltar com o trabalho de percussão ecoando a cultura negra. Então eu disse: ‘Eu volto, mas só se for para trabalhar para Xangô, o orixá da justiça. E que seja um grupo só mulheres: no pensar, no dizer, no cantar, no tocar, no dirigir. Em tudo. Queria inverter os acessos”, diz a filha de Oxóssi com Iansã.

Foi nesse período em que o grupo estava em gestação, ainda sem nome, que encontrou uma de suas parceiras até hoje: a sambadeira do Recôncavo Baiano Nega Duda, filha de Xangô. Muitas outras filhas do orixá surgiram em seu caminho. Era um sinal. O Ilú Obá de Min, explica Beth, é regido por Xangô e Iansã, “o casal mais quente do Orum”, o panteão dos orixás. O grupo, que teve também em suas origens a participação de Adriana Aragão, completou 12 anos em 2016. 12 é o número de Xangô. “Estamos no momento de olhar para essa filha e esse filho que está com 12 anos”, diz a fundadora.

O trabalho cresceu, desdobrou-se em muitos projetos, que levam o pensar para a roda (Ilú na Mesa), com encontros entre mulheres da tradição oral e da academia, e também para as escolas (Tenda Afro-Lúdica), com atividades que trabalham a Lei 10.639, sobre o ensino das culturas afro-brasileira e africana na sala de aula.

Nessa trajetória, já cantaram a história de muitas mulheres, Leci Brandão, Elza Soares, Raquel Trindade, Maria Carolina de Jesus e Rainha Nzinga, que nem de longe passou em suas aulas no colégio militar. É cantando a saga dessas personagens femininas inspiradoras, muitas delas esquecidas dos livros escolares, que segue na sua missão de desconstruir 500 anos de história. “Faço isso nas brechas que eu tenho, com os meus alunos nas aulas de arte-educação, com as mães dos meus pacientes [faz há tempos um trabalho com crianças com câncer em hospitais], com as mulheres no Ilú, nas palestras.”

Beth Beli é percussionista, regente, compositora, arte-educadora e cientista social, sua formação mais recente, depois de muito frequentar escolas informais nos barracões, nos teatros e nas ruas. É a caçula de sua família. E também seu esteio. Foi ela quem levou a cultura negra de volta para casa e dialogou com os seus sobre velados processos de silenciamento e branqueamento, historicamente enraizados na nossa sociedade. “Minha mãe me liga pra falarmos de tudo, todas as questões. De algum modo, materializo o que estou fazendo. Quando boto meu paramento, não sou mais a Beth, estou sob o comando de Oxóssi, a força da caçadora, aquela que caça para nutrir a família em todos os aspectos”, diz, ainda vibrante depois de reger uma apresentação. “Onde meu pai estiver ele deve estar contente.”

Texto: Gabriela Romeu

Foto: Vanderlei Yui

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O ritmo está em todo lugar

O som seco e alternado das mulheres batendo seus bastões nos pilões para fazer farinha atravessa uma aldeia Malinkê na Guiné, na pontinha oeste da África. No embalo desse apiloar, acompanhamos a percussão do cotidiano: o peneirar da massa, os secos passos das mulheres que cruzam a savana carregando gravetos na cabeça, o tempo da menina puxando a corda para trazer a água do fundo do poço. “Todas as coisas são o ritmo”, diz um veterano Malinkê na abertura do curta-metragem “Foli – Não existe movimento sem ritmo”, dos holandeses Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg.

Do outro lado do oceano Atlântico, o percussionista Naná Vasconcelos passeia por Salvador (BA) captando essa cadência da vida: os múltiplos sons que nascem dos estreitos corredores do mercado popular, a remada no rio, o trem em seu trilho, o talher triscando o prato, a onda do mar que bate na pedra. No documentário “Diário de Naná”, de Paschoal Samora, as crianças escutam atentas o que o mestre tem a dizer.

“O primeiro instrumento é a voz. E o melhor instrumento é o corpo”, diz Naná, que das palmas das mãos tira o som de um pandeiro imaginado. O ritmo é a música que nasce da escuta do corpo, e não da abstração da alma, inspirado pela atenção ao compasso do mundo.

Para dois jovens irmãos portugueses, o ritmo está nas cordas do violão e do violino. Já para o menino angolano, sai dos braços, dos quadris e da cabeça, acompanhando a música que toca. E, para o brasileiro, corre com a bola de futebol no quintal de terra de uma casa que ficará pronta a seu tempo. No ônibus, a caminho do ensaio, até tabuada vira canção para os estudantes de Ceilândia (DF). Seus sotaques e vidas tão diferentes entrarão em compasso quando os meninos de Portugal, Angola e Brasil se encontrarem para cantar junto com Naná e o maestro Gil Jardim em Brasília (DF), a jornada que acompanhamos em “Língua Mãe”, de Fernando Weller e Leo Falcão.

No filme, o berimbau de Naná faz a ponte entre essas culturas. A primeira batida espanta e encanta os alunos portugueses. Um menino faz uma entrevista com ele e quer saber como aprendeu a tocar o berimbau. Naná diz que desde criança foi seduzido pelos encantos do instrumento. “Fiquei fascinado porque o som dele é aqui perto do corpo. É tudo aqui perto do coração, dá uma emoção muito forte.”

Na toada do coração, o pulsar ritmado que nos move. Da cave escura ouvimos um canto em uma língua africana, um lamento profundo que nos transporta a tempos ancestrais, como um feitiço marcado para evocar o nosso divino. Desacelera o tempo, até que o grande gongo de Naná soe, grave, aquiescendo a dor e nos trazendo de volta ao compasso presente. À luz do dia, ele canta sozinho na praça: “Mãe minha, ô, mãe minha / ai que dor no coração.” As mãos largam os chocalhos e acolhem a cabeça baixa. Mas o ritmo é também alternância. Logo ele está aos risos com o amigo à beira de uma palafita fincada no oceano. Com um pequeno chocalho e algumas palmas, a conversa logo vira música. Eles param. “Se atravessar esse mar vai dar na África?”

Na tribo Malinkê, o silêncio nos mostra que, para o ouvido, tudo tem uma cadência: o machado que golpeia a árvore até ela cair, as pancadas que moldam o ferro do agogô, as mãos que esculpem e forram um futuro tambor. O trabalho de virar música. Os meninos batem latas na beira do rio, aprendendo o som dos homens. De volta a Salvador, outros meninos tiram sua percussão da sucata, transformando latas de tinta e bombas plásticas em seus instrumentos.

O trabalho também vira música. Foi nos quilombos baianos que a enxada perdeu o cabo para ser batucada e puxar o som do tambor e da cuíca — “capinasom”, define Naná. Em Cachoeira (BA), dona Damiana, veterana do samba de roda, conta como aprendeu a compor seus ritmos nos intervalos do ofício de charuteira, batendo as tabuinhas de madeira que usava para fazer charutos. “Olhe, gente, o samba é a vida, é alegria”, sorri. Para ela, o fim do nosso pulsar não é o fim do ritmo. “Até os mortos levantam da sepultura”, diz, ouvindo a levada acelerada de seu samba de roda.

Texto: Bruna Fontes

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Que a educação transcenda a mente patriarcal

“A missão inconfessada da educação é manter as pessoas iguais; para que não mudem. Penso que a educação é ‘o sócio invisível’ do que Einsenhower chamava de  ‘complexo militar-industrial’”; “Neste formato, a educação está feita para criar  trabalhadores e não para o desenvolvimento humano. E eu acredito que sem desenvolvimento humano não há evolução social”, disse Claudio Naranjo a um entrevistador, em sua última passagem por Moscou.

Aos 84, Naranjo parece ter pressa, pois não se aquieta em Berkley, EUA, onde vive desde a década de 70. Nessa época, tornou-se um dos expoentes de Esalen (o célebre Instituto contracultural de estudos humanistas), professor da Universidade da Califórnia e sucessor de Fritz Perls – o “pai” da Gestalt-Terapia.

 

A despeito da idade, sua caminhada parece progressivamente intensa nos últimos anos. Além de escrever livros, dar aulas, pautar a Escola SAT e gerir sua Fundação (FCN), entre outras atividades, o sábio de Valparaiso viaja de um canto a outro do planeta se acercando de públicos variados – de jovens estudantes a autoridades do setor educacional – para difundir ideias e apresentar suas práticas com o objetivo de dispor uma postura inovadora diante do ofício de educar. “Proponho uma educação que transcenda a mente patriarcal”, diz. Por seu trabalho, recebeu a indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2015.

Naranjo poderia ser chamado de “um filósofo de campo”, aquele que cria alicerces para a implementação prática das teorias que vem desenvolvendo ao longo de décadas. Durante esse tempo, alinhou-se diretamente a muitos professores notáveis – de cientistas, pensadores ou artistas ocidentais, como Tótila Albert, até líderes orientais, como Tarthang Tulku Rinpoche. Já há algum tempo, ele é reverenciado como mestre para centenas de pessoas que têm contato com o seu trabalho em diversos países, principalmente por meio da Gestalt Viva (considerada por especialistas como a evolução criativa da filosofia e das ferramentas processuais de F. Perls); do desenvolvimento do Eneagrama da Personalidade e da constituição da Escola SAT.

 

Seria bem frustrante elaborar um resumo de sua trajetória em tão curto espaço. Para isso, a internet está aí com uma vasta pulverização de suas pegadas mundo afora, além de já ser possível encontrar boas biografias publicadas, como  Claudio Naranjo – La vida y sus enseñanzas, do jornalista espanhol Javier Esteban (o mesmo que escreveu o celebrado Psicomagia, em parceria com Alejandro Jodorowsky).

 

Os atributos do pioneiro da Psicologia Transpessoal são inúmeros: médico psiquiatra, cientista, investigador acadêmico, professor, filósofo, pianista clássico, terapeuta, autor de mais de 50 obras literárias que, publicadas em variados idiomas, abordam da meditação à educação, passando pela neurociência, pelo estudo de enteógenos e derivados, pelo cruzamento de técnicas terapêuticas e medicinais, ligações entre desenvolvimento humano e espiritualidade etc.

 

No entanto, não é por conta de seus títulos nem só pela sua extensa obra que a Ciranda de Filmes se sente honrada em ter a presença de Claudio Naranjo, mesmo que virtualmente, em sua programação.

A deferência é principalmente pelo ensinamento de um ativista que, já octogenário, opta por colocar a mão na terra e dedicar seus dias a semear algo que provavelmente não lhe trará o prazer da colheita: a ansiada Revolução Social através da Educação.

 

O exemplo precede as palavras. Por isso, até mais do que por suas férteis ideias, é pelo modelo de sua disposição militante que, simbolicamente, abrem-se todas as Rodas de Conversas deste ano com o trecho de uma palestra (cuja íntegra está disponível abaixo) que Naranjo dedicou especialmente à Ciranda de Filmes 2017.

 

Texto: Ataliba Benaim

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A receita da longevidade

Folhas verdes fresquinhas vão direto da colheita da agricultura familiar para a da merenda escolar no interior paraense, uma horta é cultivada em meio a cidade de São Paulo, um banco de sementes “dos avós” garante a segurança alimentar de comunidades rurais do interior da Paraíba, crianças são “alfabetizadas” na cartilha de alimentos saudáveis, sem excesso de açúcar, em uma ONG paulista.

Com essas e outras histórias, o documentário “Fonte da Juventude”, de Estevão Ciavatta, nos leva a viajar aos grandes centros urbanos e aos rincões do Brasil em busca de uma receita da longevidade. Sua câmera sobrevoa diversas paisagens, das mais rurais às mais urbanas, das monoculturas e das plantações que preservam a biodiversidade, e aproxima o foco dos alimentos que chegam processados ou em natura ao nosso prato. O que nos alimenta ou como nos alimentamos?

Na busca por algumas respostas, há números que assustam: um terço da população do mundo está doente porque come mal. O Brasil vem seguindo esse padrão, mas com um agravante. “O crescimento do excesso de peso é mais rápido do que em muitos países”, afirma Ana Lydia Sawaya, escritora e cientista especializada em nutrição, uma das muitas especialistas que debatem o tema no filme. E esse quadro já compromete as gerações futuras, uma vez que a taxa de obesidade entre crianças tem aumentado 7% ao ano, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

José Graziano, mentor do programa Fome Zero e diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), acha que é possível reverter essa situação. “Está sobrando alimento. Nós desperdiçamos praticamente um terço do que produzimos.” A grande questão é que as pessoas, especialmente as mais pobres, não têm acesso a frutas, verduras e legumes.

A câmera de Ciavatta viaja pela periferia de São Paulo (SP) para mostrar a realidade de quem vive em um deserto alimentar, ou seja, onde não dá para comprar produtos frescos em um raio mínimo de 400 metros. Passamos pelas prateleiras de um pequeno mercado na zona leste da cidade: só embalagens, nada de hortifrúti. “Eu não dou muito o natural, porque nem tudo a gente encontra aqui, e não dá pra cultivar. Se eu estivesse lá na Bahia, era tudo natural”, diz o segurança Manoel Santos, falando da alimentação de seu filho, Daniel.

O que ele nos conta é um exemplo de como o desenraizamento cultural de quem migra da roça para áreas urbanas leva ao abandono do consumo de alimentos frescos. Comendo biscoito e tomando refrigerante cedo demais, Daniel chegou a pesar 19 kg aos dez meses de vida, um quadro que só foi revertido com reeducação alimentar. Como ele, 60% das crianças brasileiras ingerem açúcar antes dos dois anos. “É uma situação gravíssima, pensando na formação do hábito alimentar”, afirma Gisela Solymos, do Centro de Recuperação e Educação Nutricional.

Cuidar da boa alimentação das crianças, descobrimos, é o primeiro passo para reverter esse quadro e, ao mesmo tempo, estimular a produção agrícola. “O ambiente escolar é o mais estratégico para discutir a alimentação”, diz a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Afinal, uma rede pública que alimenta 43 milhões de crianças tem o poder de fortalecer a agricultura local, como vemos em Paragominas (PA). Lá, as escolas preparam a merenda apenas com alimentos comprados de produtores da região. “Tem dia que a gente vende 700 pacotes de cheiro verde, 300 pés de alface”, demonstra o produtor José Carlos Ferreira.

Na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), conhecemos Vanessa Danciger, que virou uma pequena agricultora urbana para ajudar o pai a se alimentar melhor e se livrar do excesso de peso e de problemas como diabetes e hipertensão. Deu certo: depois de passar a comer mais vegetais e frutas, o fotógrafo Maurício Danciger deixou de ser um cara de 130 kg que tomava cinco remédios por dia para chegar aos 90 kg sem precisar tomar mais nenhuma medicação.

De lá, entramos na mata para aprender que a flora brasileira tem 46 mil espécies, das quais 10 mil são comestíveis, segundo o biólogo Valdely Kinupp, professor do IFAM (Instituto Federal do Amazonas). Essas PANCs (plantas alimentícias não convencionais) podem ser consumidas como salada, em sopas como o caldo verde ou empanadas. Ele arranca uma folha verdinha de urtigão. “É riquíssima em boro, molibdênio, ferro, zinco, que são elementos que faltam, inclusive, em alimentos ultraprocessados”, conclui, comendo a folha que estava enrolando.

Seguindo viagem, chegamos a Santarém (PA) para ver como se prepara a mujica, uma sopa grossa de peixe amassado com uma farinha feita com uma das 41 variedades de mandioca da região e que leva vários tipos de PANC, como o cariru, a vinagreira e a alfavaca. “O ato de comer vai além de se alimentar. É cívico, é cultural, é social. É a primeira alavanca em defesa da biodiversidade. Quanto maior for o nosso paladar, mais seguras estarão as nossas reservas naturais”, defende o chef Alex Atala.

Sobrevoando canaviais, passeando por hortas urbanas, entrando na selva e mergulhando em sementes típicas do Brasil, percebemos que o que colocamos no prato não muda só a nossa saúde. Essa escolha tem o poder de transformar todo um modo de produção.

Comer melhor, portanto, é uma maneira de incentivar um novo padrão agrícola. É decidir se vamos fortalecer os 4,5 milhões de agricultores familiares ou os 500 mil trabalhadores de grandes latifúndios; definir o sucesso de um produtor orgânico ou dos produtores de defensivos. “A comida é um ato político. Se a gente não pode escolher o que comer, a gente está sendo refém da política dos outros”, conclui a culinarista e apresentadora de TV Bela Gil. 

Texto: Bruna Fontes

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Quando um coração se quebra

A nossa existência neste mundo às vezes é breve; às vezes, longa. Mas o que estamos fazendo com esses anos se ela não for plena de sentido? Em alguns momentos nos sentimos completos. Ao percorrer seu álbum de fotografias e rever a infância, a adolescência e o casamento com Beto, Marina Bitelman, a protagonista narradora de “Verdade Passageira”, conclui que teve muita sorte na vida. Em outros momentos, porém, algo nos falta, e esse significado se esvai. Marina expressa o seu vazio: “De repente, o mundo parou”, ouvimos, entrando na surda escuridão de um túnel na estrada.

Em busca do sentido que recoloque seu mundo em marcha, Beto e Marina partem em uma longa viagem sem data de volta. Eles nos levam a países distantes, como o Marrocos, o Nepal, a China, em um misto de trabalho e de busca espiritual. A casa foi desmontada, a vida em comum dentro de caixas de papelão. As mochilas de viagem voltam a ser apenas duas. Ela se pergunta: “Nós éramos uma família. E agora, o que somos?”.

No Marrocos, ponto de partida dessa jornada, o casal entrevista empreendedores para descobrir como o microcrédito (especialidade de Beto) pode ajudá-los a desenvolver seu potencial, materializar seus sonhos. É assim que eles e nós conhecemos as histórias, as esperanças e as dores de tanta gente diferente. A tapeceira Ellaouat explica como aprendeu sozinha a arte que desde menina a encantou. Ela graceja, conta seu ofício, enxuga lágrimas. Sentadas no chão, ela e Marina se abraçam, entre risos. “Como eu posso me sentir tão próxima de alguém que eu nunca vi na vida — e talvez nunca mais veja?”

O próximo trem parte. “Eu olho pro Beto e me pergunto: será que a gente ainda é uma família?” Da janela, avistamos apenas a calmaria de uma extensa planície, a caminho da Ucrânia, terra dos avós de Marina. De lá, o casal vai à Rússia, ao Quirguistão, ao Vietnã. Cada chegada a um novo país traz à narradora uma sensação de insegurança, de ter perdido tudo o que havia conquistado até aquele momento. Um lento exercício de aceitação da impermanência.

Ela ouve a história da vietnamita Huynh Thi Kim Lien, que vende brinquedos e faz faxina para sustentar a casa, e ainda assim só ganha o suficiente para a comida. Chove, e uma pequena cascata desce do telhado para uma bacia na cozinha. Ela se diz uma mulher azarada: o marido só bebe, não trabalha porque é fraco para os serviços braçais. Seu sonho é ter uma casa sólida. “De onde essa mulher tira força para sustentar a família sozinha?”, reflete a narradora.

Ver o mundo passar pela janela do trem faz Marina entrar em um tempo só dela. E então ela volta para o dia em que sua filha Sofia nasceu, em 2005. O bebê carequinha aparece na tela, no colo do pai, abraçado pela esposa, olhando para nós. O vazio é nomeado. “Como aguentar a dor de perder uma filha?”

Seguindo viagem, o casal conversa com as mulheres de uma sangha indiana, uma espécie de comunidade em que elas trocam experiências para ajudar as outras a realizar o sonho de ter um negócio com o dinheiro que ganham com a prostituição, onde são jogadas para pagar dívidas, às vezes contraídas por seus maridos. A força e a vulnerabilidade dessas mulheres intriga a narradora.

No Nepal, Suntali Tamang, dona de uma avícola e criadora de uma associação comunitária de microcrédito, conta que um filho trabalha na fazenda, o outro acabou de se formar e o mais novo está estudando. Mas a filha não está mais entre eles: foi estuprada e morta em um canal ali perto. No silêncio, a emoção contida de uma dor que Suntali não esqueceu.

No ritmo do barco que desliza rio abaixo, Marina reflete. “Juntos, olhamos pra nossa dor. O caminho não é negá-la, mas deixar ela nos transformar.” Cada uma dessas histórias, para ela, devolveu ao casal a capacidade de sentir e de reestabelecer elos com as pessoas. A dor que marca um período também traz um novo olhar para ressignificar a vida e construir novas verdades, ainda que passageiras. Ao voltar da viagem, Marina e Beto construíram outras carreiras, uma nova família, pois “quando um coração se quebra, ele se abre ainda mais”.

Texto: Bruna Fontes

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Rosa: para transcender a vida e a morte

O cinza reina, o inverno congelante parece eternizar a escuridão, a guerra, o choro, a espera. O início declara a morte. O que o fim vai declarar? Assim começa uma busca à sombra de uma guerra.

“Rauf”, longa-metragem ficcional dirigido por Barış Kaya e Soner Caner, traz a vida dos curdos, um povo que luta por suas autonomia e independências política e territorial há muitos e muitos anos. Eles vivem em pequenas vilas ao redor do Irã, do Iraque, da Síria e da Turquia. Rauf, que vive num desses vilarejos turcos, é menino curdo, uma minoria frágil que sofre grande perseguição, em meio a uma briga invernal entre grandes, pelo petróleo.

Ao anoitecer, os habitantes da sua vila se escondem em suas casas escuras, apagadas, para se protegerem de ataques. O opressor, como uma raposa, não pode ser visto. Ao som de bombas, Rauf é acolhido pelo carinho maternal. Ele dorme e acorda ligeiramente ao som delicado do choro de sua mãe, que sofre por seu filho mais velho, que foi para as montanhas. Dia após dia, uma senhora silenciosa, sua avó, contempla as montanhas, em uma espera sem fim. A esperança e o sonhar sintetizados em uma imagem de loucura.

Uma figura folclórica do lugar, um veterano curdo de uma guerra estrangeira, vai até a escola para contar suas histórias, lembrar como ele perdeu a visão. Rauf é interrompido na escuta e injustamente expulso da classe. Os adultos escondem, querem ser mestres, se esforçam para não explicar, insistem que as crianças não percebem, não entendem, não sentem.

Quando Rauf é expulso da escola, seu pai o leva para o carpinteiro para que possa aprender o ofício do amigo. A ocupação principal do carpinteiro é fazer caixões para os mortos da causa que todos sabem. Na oficina, Rauf conhece Zara, filha do artesão, uma moça dez anos mais velha que ele, pela qual nutre um amor platônico. Em um esforço de se aproximar e encantar a jovem, Rauf se coloca a tarefa de procurar o rosa, cor preferida da enamorada, enquanto aprende o ofício de enterrar os mortos de seu povo.

Onde encontrar a luz e a cor para a intimidade das casas escuras? Como transcender a morte, o cinza, o inverno congelante, a guerra, o choro? O silêncio da espera se rompe, e a aparente loucura se apresenta como ingresso para a escalada primaveril até o rosa. Mesmo onde aparentemente não há, onde ninguém conhece a cor, Rauf não desiste. Depois de várias mortes, ele amadurece e colore de sentido o viver, o crescer e o morrer que habita.

Texto: Vanessa Fort

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Da inanição à imaginação

O que alimenta o corpo também alimenta a alma? É uma pergunta nos ronda em vários momentos do documentário “Banquetes imaginários”, um filme que convoca silêncio, só interrompido pelo ranger de portas e assoalhos, por murmúrios em noites profundas, pelo zunido do vento nos campos de concentração.

Estamos na Alemanha, idos de 1944, e uma voz nos conta que corpos esquálidos tremiam na paisagem branca. E não só pelo frio que cortava a pele. Mas devido à fome. Ali sobreviveram poucos em meio a um exército de homens e mulheres famintos, “desesperadamente famintos”, enfrentando um cruel racionamento de alimento que perdurava meses, com muitas vezes apenas um “líquido preto” (café?) a escorrer pelas paredes do estômago.

Em meio à inanição, a imaginação. Os concentrados, das mais variadas procedências, escreviam receitas familiares em restos de papel e pedaços de tecido, alguns encapados com ferragens de fuselagens de guerra. Verdadeiros banquetes se faziam em palavras e sussurros, uma espécie de reza de muitas vozes. Os cadernos foram guardados em sigilo, alguns preservados no tempo.

O filme de Anne Georget mergulha nesses registros, feitos em campos de concentração e de trabalho na Alemanha, na Rússia e no Japão. A cineasta leva os documentos à leitura de historiadores, filósofos, psicanalistas, neurologistas e chefes de cozinha, que radiografam os ingredientes, as medidas, os métodos. Algumas receitas traziam com precisão o que só habitava as lembranças. “O sofrimento é tangível nessas receitas, a dor é palpável”, comove-se Olivier Roellinger, renomado cozinheiro francês.

Christiane Hingouët, sobrevivente dos campos de concentração nazista, relata o árduo cotidiano vivido, da lida que se estendia por 12 horas ininterruptas, com pequenas rações diárias (um pedaço de pão, uma salsicha, um caldo ralo). “É terrível sentir fome. Não falo de fome antes do café da manhã. Falo de fome depois de dois anos de inanição. Terrível. É o que mais me marcou. Mais do que as surras.”

Ela não sabia cozinhar, sequer fritar um ovo, mas inaugurou um “banquete imaginário” por meio de muitas descrições de como fazer bolos, sopas, pudins. Conseguia se imaginar cozinhando aquelas iguarias coletivamente relembradas, registradas e sonhadas, numa intensa comunhão daquela fantasia glutona. Às vezes, as receitas embalavam as conversas da hora de dormir. A boca salivava.

Alimento simbólico, transmitido de uma pessoa para outra, as receitas pareciam libertar aquelas pessoas da privação. E depois de uma refeição gourmet imaginária, o alívio. Estavam juntos, reunidos, como num almoço de domingo, partilhando coletivamente o momento. Resistiam naquela fantasia em que a comida, expressão social e cultural de um povo, significava fortemente a ideia de pertencimento a algum lugar que não aquele. Representava a própria existência.

Vestígios familiares surgem nas receitas, do primeiro mingau na infância aos banquetes de casamentos. Sopas, bolos, pudins, ensopados e caldos, refeições simbólicas, de algum jeito uniam aqueles que estavam apartados da família, da casa. Da vida.

Por que não falavam de livros, músicas ou pinturas? “Algumas pessoas não ouviam música, outros não tiveram a sorte de apreciar literatura ou ainda a oportunidade de admirar pinturas. Mas todos tiveram o prazer de experimentar uma boa comida”, explica Roellinger, destacando a universalidade do alimento, disparador de lembranças e afetos.

Escrever os cadernos de receitas foi uma forma de sobrevivência, talvez um ato de resistência, revela um dos entrevistados. Uma resistência baseada no encontro, na partilha e no prazer, que de algum modo os libertou naquela vida simbolizada num banquete imaginário.

Texto: Gabriela Romeu

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“A luta deste tamanho é agora”

Em novembro de 2015, estudantes da rede pública de São Paulo surpreenderam o país com uma atitude inusitada. Às vésperas das férias, os secundaristas se trancaram dentro das escolas, deixando professores e diretores do lado de fora. Sua mensagem era clara: não sairiam enquanto o governo estadual não desistisse da reorganização que pretendia fechar 94 escolas e remanejar alunos para outras unidades, na tentativa de cortar gastos com educação.

Essa é a história que todo mundo conhece. Já a que o cineasta argentino Carlos Pronzato nos conta no documentário “Acabou a paz – Isto aqui vai virar o Chile” é outra: a narrativa com a voz dos jovens que se engajaram na ocupação de 200 escolas estaduais durante 26 dias, sem a mediação da mídia ou do governo. Esse é seu segundo filme sobre esse tipo de mobilização: ele já havia acompanhado as ocupações escolares chilenas de 2006 e dirigido o documentário A rebelião dos pinguins (como são chamados os secundaristas chilenos), que inspirou as ações dos estudantes paulistas.

De saída, os jovens deixam claro que gostam, sim, de suas escolas, e não querem estudar longe de casa e dos amigos sem receber mais explicações. “Essa reorganização chegou do nada. A gente não quer sair daqui porque ele acha que é melhor fazer isso. Até porque a gente sabe que não vai melhorar”, diz Ariane, da Escola Estadual Godofredo, referindo-se ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, retratado com chifres em uma caricatura desenhada em papel pardo atrás dela.

Para os estudantes, a fórmula para a melhoria do ensino é ter menos alunos em cada sala, mais professores e melhor estrutura – o que em muitos casos, eles contam, significa apenas abrir a porta de uma biblioteca trancada ou dar acesso a quadras esportivas que já existem. “Eu estudei a minha vida inteira em escola pública. É triste falar, é pesado, mas eu não aprendi nada em 11 anos”, diz Manuela, da Escola Estadual Alberto Conte, em frente a uma pequena montanha de livros jogados em uma grande sala que virou depósito para obras que os alunos nunca leram.

Com a recusa do governo ao diálogo, os secundaristas vão às ruas. De braços dados, vemos os jovens erguendo faixas com as reivindicações e parando o trânsito paulistano levando suas carteiras para as avenidas, num claro pedido de apoio da sociedade. Do outro lado, a fileira de policiais avança batendo ritmadamente o cassetete nos escudos erguidos, um prenúncio da batalha. “Por que vocês estão levando ele preso?”, questiona o jornalista Caio Castor, antes de sua câmera sair de cena com um tapão.

Ir às ruas tampouco surtiu resultado: o governo manteve sua posição. “O grupo foi percebendo que não dava para ficar só pedindo as coisas, a gente ia ter que exigir”, afirma Francisco “Chico”, da Escola Estadual Fernão Dias. Inspirados pelas cartilhas dos “pinguins” chilenos, os alunos resolveram, por fim, ocupar as escolas. No documentário, eles contam como criaram seu próprio modelo de gestão e ensino. Abriram as portas das quadras e bibliotecas, revezaram-se para fazer a comida e a faxina, organizaram saraus e receberam especialistas para aulas-debate sobre temas como maioridade penal, feminismo e exploração do mercado de trabalho. “Esse mês da ocupação foi a escola ideal para muitos. Aqui todo mundo tinha voz, não era uma coisa vertical, que vinha de cima para baixo”, diz Douglas, da Escola Estadual Diadema.

As decisões sobre os próximos passos da ocupação foram sendo tomadas em assembleias que reuniam membros de todas as escolas que participaram do movimento. Juntos e organizados de maneira horizontal, sem lideranças, os estudantes perceberam que a força de transformação partia de dentro de cada um. E que o momento de agir é o presente, não um futuro idealizado. “A luta deste tamanho é agora”, gesticula, enfaticamente, um estudante não identificado da Escola Estadual Maria José. Depois de 26 dias de ocupação, o governo estadual capitulou e suspendeu a reorganização escolar. Os secundaristas não se deram por satisfeitos. “Não colocaria [isso] como uma vitória, e sim uma conquista”, conclui a jovem Thayná.

Texto: Bruna Fontes

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Juventudes (não) sonhadas

Seguindo a linha do trem urbano que corta a paisagem de morros ou a trajetória da bola no futebol da quadra de concreto, conhecemos os anseios e os receios de jovens de oito Estados das cinco regiões do país no longa-metragem “Nunca me sonharam”. Ao aproximar a câmera dos jovens, o cineasta Cacau Rhoden capta alguns desejos, ouve alguns sussurros. Então, aquela nostalgia de liberdade que sopra com o vento que brinca com cabelos azuis e acompanha coloridas meninas em seus skates se esvai na voz do adolescente: “A partir do momento em que o sonho foi tirado de mim, eu desisti dele também”.

A adolescência, idealizada como a idade em que somos mais livres para sonhar, experimentar, começar a escrever em primeira voz a narrativa de uma vida que ainda não tem as amarras do ser adulto, é “tempo de tempestades e trovões”, profere quem já atravessou um portal que parece apartar mundos. Ou já experimentou o rito de passagem que é percorrer os anos do ensino médio nas escolas brasileiras, públicas ou privadas. “Não queria ser jovem, não, queria passar direto para a fase de adulto”, a voz de outro adolescente nos revela. Não sabemos quem o dono da voz, muitos olhares nos miram.Nas juventudes brasileiras, nem todos têm oportunidades iguais. A câmera acompanha a mochila do estudante caminhando para o ponto de ônibus antes do sol nascer. Em casa, a pressão para trabalhar. A gravidez precoce. A sedução do tráfico. Na escola pública, com cara de presídio, uma vida encerrada entre a grade curricular e a da porta. Um modelo de ensino em que não cabem suas aspirações. Só oferecer a escola é abandono.

Na busca pelo primeiro emprego, a dura realização de que o estudante da rede pública, o negro e o pobre não têm as mesmas chances. Sem o apoio de pais e professores, o encurtamento dos sonhos. “Esses adultos também um dia foram jovens que não aprenderam a sonhar, que foram desde cedo colocados em um lugar onde não podiam agir. Então não podem ensinar ao jovem como transcender esses limites”, observa Cacau. Porcos atravessam a rua de terra de uma cidade piauiense em que metade da população é analfabeta.

Alguém observa que até nosso hábito de perguntar aos jovens o que eles querem ser, projetando o futuro, nega seu espaço no presente, limita sua liberdade de reinventar o mundo em que vivem. Sua opinião não é levada em conta, o diálogo não se realiza em casa, na escola, nas ruas. “A sociedade não ouve esses meninos, eles estão absolutamente abandonados”, constata Cacau. “Qual é o futuro de uma nação em que grande parte dos jovens não têm nem a possibilidade de sonhar?”

Um pequeno foguete risca um voo tímido na tela, e atrás dele vêm, sorrindo, os meninos que o construíram na escola. Como eles, muitos ainda vão voar, às vezes com ajuda dos adultos que os sonham. Como o diretor que convence os meninos mais problemáticos a formar um time de futebol para representar a escola, o corpo escolar que manda uma carta para chamar de volta o menino que deixou os estudos para entregar botijões de gás, o professor que leva os alunos para ampliar seus horizontes em uma aula dentro do rio. “É impressionante a diferença que um educador comprometido faz na vida desses jovens. São eles que estimulam o desejo e o sonho e mostram que é possível fazer educação pública de qualidade”, afirma Cacau.Outro grupo surge aos poucos: jovens de olhar determinado falam com ênfase, pintam o rosto e as paredes para reabrir uma biblioteca. Uma brecha. Chamam para si a responsabilidade sobre seu futuro – e querem ser ouvidos. Vão às ruas com seus cartazes, organizam-se em coletivos, contestam o autoritarismo com suas relações horizontais. “Ou é todo mundo junto ou todo mundo perde”, ouvimos ao fundo. “O futuro é agora. Já. Já foi”, manda a menina poeta entre os grafites que disfarçam os duros muros cinza.

Texto: Bruna Fontes

Fotos Divulgação/Nunca me sonharam

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Remédios da alma da infância Yudjá

A floresta acorda com seus muitos sons. À beira do rio, meninos com remos nas mãos adentram uma canoa. “Para onde a gente vai?”, um deles pergunta, em sua língua. A resposta vem na sincronia das remadas pelas águas, início da criação dos Yudjá, “um nome que vem de desde muito tempo”.

É assim que aos poucos vamos amanhecendo em “Waapa”, curta-metragem dirigido por David Reeks, Paula Mendonça e Renata Meirelles, com produção da Maria Farinha Filmes. O filme acorda em nós o que é cres(Ser) uma criança Yudjá, nome que significa “povo do rio” ou “dono do rio”. “É por isso que hoje o Yudjá não consegue ficar longe do rio”, logo revela a liderança Yabaiwa Juruna, que, na aldeia Tuba Tuba, no Parque Indígena do Xingu (MT), narra uma infância envolta em cuidados especiais nesse filme do Território do Brincar. “Waapa”, palavra da medicina do povo Yudjá, é “elemento da natureza que ensina” ou “remédio que cura”. O crescimento da criança Yudjá perpassa muitos remédios que vêm dos bichos, das plantas, das águas. Assim, é a saracura, um pássaro rápido que nunca se cansa, que traz a agilidade; o osso do tatu, bicho da couraça dura, evoca a força, algo difícil de combater; a aranha resgata as origens da habilidade tecelã; as plantas fornecem seus muitos colírios para ver além. São os donos dos remédios os espíritos, clareados pela Lua.

Paula Mendonça, com dez anos de história com os Yudjá e hoje integrante da equipe do Criança e Natureza (Instituto Alana), explica que tal medicina, o Waapa, produz saúde, provendo a criança de habilidades específicas para a vida na floresta e protegendo seu corpo liberto com a força dos elementos naturais.

“Ter força, mira e velocidade, saber tecer, ser bom flechador, escapar de flechas, todo esse universo simbólico trabalhado pelos remédios vem dotar esse corpo, através das produções de afecções, para que seja um corpo preparado para a vida, para ter autonomia.”

No campo da saúde, imbricado com a rede da espiritualidade, a visão de um corpo saudável pelos Yudjá é o de um corpo em movimento, autônomo. “É preciso ter proteção porque a criança aprende-fazendo, se arrisca, circula com liberdade em seu ambiente. Da experiência é que brota o conhecimento.”

Todo o crescer é enredado por esses muitos fazeres da aldeia. Esse viver na floresta “exige uma força para construir uma casa ou arrastar a canoa do mato até a beira da água”. Eles precisam ter uma resistência física e uma força enorme na lida diária. “O dia a dia na aldeia é pura atividade, um dia você está indo para a roça fazer a farinha, ou você está em plena produção de farinha, ou você está indo pegar um peixe. Não tem como ficar parado. Todo o trabalho deles é corporal.” Em muitas temporadas com os Yudjá, Paula ainda se encanta com o lugar que a criança ocupa nessa sociedade. “Não existe uma separação do espaço e do tempo da criança na convivência com os adultos. Ela participa de todos os processos, de todas as atividades. É incluída em todos os fazeres, todos os cotidianos, tudo, tudo. Ela pode muito, tem uma liberdade enorme.”

A cena que abre o filme está impressa na memória da pesquisadora como um retrato de uma infância em sua extrema potência. “Pra mim, o fato de elas irem para a praia sozinhas, sem um adulto, pegar a sua canoa e lá brincar mostra a carga enorme do espírito de liberdade desse povo. Essa liberdade que têm de circulação e de pouca restrição faz com que aprendam sobre sua sociedade.” Esse corpo de uma infância liberta é entidade de toda a vida.

“Waapa” é um filme tecidos por alguns fios: o trajeto dos meninos no rio, os muitos fazeres dos adultos e das crianças na aldeia, o levantar e o deitar do dia, além da narrativa afetuosa de Yabaiwa. Nessa tessitura, a infância Yudjá, potente, livre e autônoma.

Texto: Gabriela Romeu
Fotos: David Reeks/Waapa