Para alcançar sua rota, algumas aves migratórias se orientam durante o dia a partir da topografia de rios, árvores e montanhas e, à noite, seguem extraordinariamente o eixo estelar numa viagem de pouco pouso. As mais jovens, que não têm ainda o senso de orientação tão apurado, perdem-se por vezes do bando. Mas reencontram o rumo e seguem seu destino, que se repete e se renova a cada ciclo.
Essa imagem das aves em migração é a delicada metáfora que o cineasta Olivier Ringer usa para falar dos ritos de passagem na infância. Ou talvez melhor dizendo: sobre os trânsitos na infância. Crescer é mesmo uma longa jornada, cheia de noites de pouca visibilidade em pleno voo, ele nos avisa no longa-metragem de ficção “Os Pássaros Migratórios” (Les oiseaux de passage).
Ele delineia com um leve tom de aventura a história de Cathy, que, em seu aniversário de dez anos, recebe do pai um presente inusitado: um ovo fertilizado. Numa caixinha aquecida, uma incubadora, a menina cuida do ovo e espera ansiosamente o dia da eclosão, pois a ave vai identificar como mãe aquele ou aquela que primeiro mirar seu romper o mundo. Mas é sua amiga Margaux, uma menina cadeirante, quem está lá na hora em que sai da casca. E a história toma outro rumo.O filme traz a saga de crescimento de Margaux, que, com a ajuda de sua fiel amiga Cathy, descobre como ir além dos limites circunscritos por adultos que já deram o veredito de sua condição. Margaux e Cathy, como as jovens aves que se perdem do grupo, têm de encontrar sua verdadeira rota, seguir firmemente seu caminho.
No protagonismo das duas meninas (uma tendo de cuidar da outra, ajudando a amiga a protagonizar), o filme trata do profundo sentido de cuidar, deixar crescer e, principalmente, deixar ser. Cathy, a heroína, assume um certo papel de coadjuvante da história de Margaux. Juntas, vão ter de enfrentar os pais, que antagonizam o belo voo.
Margaux tem pais protetores que subjugam o potencial da filha, que precisa ser cuidada e não pode da ave cuidar. Cathy tem uma mãe que dispensa “coisas sem utilidade” e acha pura bobagem esse presente do pai, seu ex-marido, o único sabedor de que é preciso deixar as duas cumprirem seu percurso e, sozinhas, romper o ovo.
Nesse contexto, exercitam ser “mãe”. A menina que não anda é persistente em ensinar a ave a nadar. Para Cathy, não há caminho (por terra ou por água) que a amiga não possa percorrer naquela relação afetuosa, de pura cumplicidade. “Como seria se fôssemos aves?”, pergunta Margaux. “Seria mais fácil, iríamos pra onde a gente quisesse, quando a gente quisesse”, responde Cathy, uma menina que parece sempre olhar pra dentro. Na água, perto da ilha onde as aves migram, experimentam uma certa liberdade do corpo, numa das cenas de máxima ternura do filme.
Esta é a segunda produção de Olivier Ringer exibida nas edições da Ciranda de Filmes. Em 2016, Na ponta dos pés (A pas de loup; 2012) trouxe a história de uma menina que se sente invisível a seus pais e, para ter certeza, decide desaparecer. No olhar do diretor, a temática parental pela perspectiva infantil rende cenas que nos convocam um profundo pensar. Avoar.
Texto: Gabriela Romeu