A nossa existência neste mundo às vezes é breve; às vezes, longa. Mas o que estamos fazendo com esses anos se ela não for plena de sentido? Em alguns momentos nos sentimos completos. Ao percorrer seu álbum de fotografias e rever a infância, a adolescência e o casamento com Beto, Marina Bitelman, a protagonista narradora de “Verdade Passageira”, conclui que teve muita sorte na vida. Em outros momentos, porém, algo nos falta, e esse significado se esvai. Marina expressa o seu vazio: “De repente, o mundo parou”, ouvimos, entrando na surda escuridão de um túnel na estrada.
Em busca do sentido que recoloque seu mundo em marcha, Beto e Marina partem em uma longa viagem sem data de volta. Eles nos levam a países distantes, como o Marrocos, o Nepal, a China, em um misto de trabalho e de busca espiritual. A casa foi desmontada, a vida em comum dentro de caixas de papelão. As mochilas de viagem voltam a ser apenas duas. Ela se pergunta: “Nós éramos uma família. E agora, o que somos?”.
No Marrocos, ponto de partida dessa jornada, o casal entrevista empreendedores para descobrir como o microcrédito (especialidade de Beto) pode ajudá-los a desenvolver seu potencial, materializar seus sonhos. É assim que eles e nós conhecemos as histórias, as esperanças e as dores de tanta gente diferente. A tapeceira Ellaouat explica como aprendeu sozinha a arte que desde menina a encantou. Ela graceja, conta seu ofício, enxuga lágrimas. Sentadas no chão, ela e Marina se abraçam, entre risos. “Como eu posso me sentir tão próxima de alguém que eu nunca vi na vida — e talvez nunca mais veja?”
O próximo trem parte. “Eu olho pro Beto e me pergunto: será que a gente ainda é uma família?” Da janela, avistamos apenas a calmaria de uma extensa planície, a caminho da Ucrânia, terra dos avós de Marina. De lá, o casal vai à Rússia, ao Quirguistão, ao Vietnã. Cada chegada a um novo país traz à narradora uma sensação de insegurança, de ter perdido tudo o que havia conquistado até aquele momento. Um lento exercício de aceitação da impermanência.
Ela ouve a história da vietnamita Huynh Thi Kim Lien, que vende brinquedos e faz faxina para sustentar a casa, e ainda assim só ganha o suficiente para a comida. Chove, e uma pequena cascata desce do telhado para uma bacia na cozinha. Ela se diz uma mulher azarada: o marido só bebe, não trabalha porque é fraco para os serviços braçais. Seu sonho é ter uma casa sólida. “De onde essa mulher tira força para sustentar a família sozinha?”, reflete a narradora.
Ver o mundo passar pela janela do trem faz Marina entrar em um tempo só dela. E então ela volta para o dia em que sua filha Sofia nasceu, em 2005. O bebê carequinha aparece na tela, no colo do pai, abraçado pela esposa, olhando para nós. O vazio é nomeado. “Como aguentar a dor de perder uma filha?”
Seguindo viagem, o casal conversa com as mulheres de uma sangha indiana, uma espécie de comunidade em que elas trocam experiências para ajudar as outras a realizar o sonho de ter um negócio com o dinheiro que ganham com a prostituição, onde são jogadas para pagar dívidas, às vezes contraídas por seus maridos. A força e a vulnerabilidade dessas mulheres intriga a narradora.
No Nepal, Suntali Tamang, dona de uma avícola e criadora de uma associação comunitária de microcrédito, conta que um filho trabalha na fazenda, o outro acabou de se formar e o mais novo está estudando. Mas a filha não está mais entre eles: foi estuprada e morta em um canal ali perto. No silêncio, a emoção contida de uma dor que Suntali não esqueceu.
No ritmo do barco que desliza rio abaixo, Marina reflete. “Juntos, olhamos pra nossa dor. O caminho não é negá-la, mas deixar ela nos transformar.” Cada uma dessas histórias, para ela, devolveu ao casal a capacidade de sentir e de reestabelecer elos com as pessoas. A dor que marca um período também traz um novo olhar para ressignificar a vida e construir novas verdades, ainda que passageiras. Ao voltar da viagem, Marina e Beto construíram outras carreiras, uma nova família, pois “quando um coração se quebra, ele se abre ainda mais”.
Texto: Bruna Fontes