“Saímos para poder dar o nome, para saberem que existimos.” A fala de Wyanã Uia-Thê Kariri Xocó, sobre a importância de trazer para zonas urbanas os cantos e as danças do toré, manifestação presente em diversos povos indígenas nordestinos, corta uma manhã barulhenta na cidade de São Paulo. Entre uma buzina de ônibus, uma freada de carro ou o burburinho do próprio lugar, esse mestre dos cantos de seu povo ressalta num falar doce e atento a força dos sons e gestos dessa tradição secular.
“[O toré] significa o que a tristeza significa. Porque tem hora que a pessoa está triste, não sabe lidar com isso. Faz aquela cançãozinha para poder desabafar, lembrar-se. Significa nossa tradição, nossas origens, nosso respeito. Pode não ser um deus, mas é um grande mestre”, explica Wyanã, que, desde pequeno, trabalha com essa tradição de seu povo, habitante da cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas, um grupo há cem anos resistente às invasões do Império brasileiro. Assim como outras etnias indígenas da região, os Kariri-Xocó perderam há tempos os peixes que pescavam no rio, seu território, tiveram subtraída parte de sua língua.
Um século depois, Wyanã segue a tradição de sua família e continua puxando os cantos do toré, ensinados a seus cinco filhos, com quem sonha em gravar em CD. Antes disso, no entanto, é possível ouvir esses cantos e experimentar seus passos na Ciranda de Filmes, no dia 23 de maio, após a exibição do curta-metragem documental “Toré das Crianças”, dirigido por Sandro Egues, que enfoca o poder do canal energético que se cria com os espíritos dos antepassados e da natureza durante tal manifestação.
A cerimônia do toré pode assumir duas formas. A primeira, mais reservada, o ritmo dos cantos é mais profundo, antes até proibidos entre os mais jovens da aldeia. É nela que os rostos são pintados como forma de proteção à essa forte energia espiritual, sua realização está relacionada ao aprendizado e à cura. Nesse chamado “toré espiritual”, as canções são elaboradas ao vivo, a partir da frequência dos participantes. Já o toré que transpõe o território íntimo da aldeia é mais ritmado, com cantos mais leves. Mesmo assim, ainda há muito de cura e de espiritualidade na cantoria puxada por Wyanã, escolhido mestre de cantos pela conexão que carrega com seus ancestrais.
Em ambas as cerimônias, o mestre vai aos poucos lembrando dos cantos que já ouviu de seus antepassados. Entoadas em duas vozes, as músicas da comunidade ou do grupo respondem aos ritmos que ele recupera. “O toré não é você se preocupar com a letra, é também o sentir, ver aquela energia, liberar-se, trazer a sua criança para poder aprender”, explica Wyanã sobre a manifestação, cuja dança simboliza o dia a dia, a caminhada da vida, e o canto, as palavras, sempre puxadas pela maraca. Tal instrumento musical, batizado de “mestra dos cantos”, representa o planeta Terra. É uma verdadeira professora sabedora das mais diversas melodias.
Quando essa cerimônia desembarca em um lugar como a cidade de São Paulo, traz em suas sonoridades e movimentos a cura dos Kariri-Xocó. É um antídoto para se lidar com a solidão e a depressão, tão comuns nos grandes centros urbanos. Outra possibilidade é promover um encontro entre a zona urbana e o povo que até pouco tempo não era sequer reconhecido como tal. Os Kariri-Xocó são formados por dois povos indígenas, que viviam em lados opostos do rio São Francisco. Quando a terra dos Xocó, na ilha fluvial de São Pedro, em Sergipe, foi invadida pelo Império, parte deles buscou refúgio junto ao povo que vivia ao outro lado do rio. No entanto, a denominação só foi reconhecida num passado recente, após a criação da Funai, em 1967.
Ou seja, assim como nos diz Wyanã no início de nossa conversa: é, sim, preciso cantar e dançar para mostrar o quanto esse povo (re)existe, resiste.
Texto: Luísa Cortés/Estúdio VeredasFoto: Divulgação