O som seco e alternado das mulheres batendo seus bastões nos pilões para fazer farinha atravessa uma aldeia Malinkê na Guiné, na pontinha oeste da África. No embalo desse apiloar, acompanhamos a percussão do cotidiano: o peneirar da massa, os secos passos das mulheres que cruzam a savana carregando gravetos na cabeça, o tempo da menina puxando a corda para trazer a água do fundo do poço. “Todas as coisas são o ritmo”, diz um veterano Malinkê na abertura do curta-metragem “Foli – Não existe movimento sem ritmo”, dos holandeses Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg.
Do outro lado do oceano Atlântico, o percussionista Naná Vasconcelos passeia por Salvador (BA) captando essa cadência da vida: os múltiplos sons que nascem dos estreitos corredores do mercado popular, a remada no rio, o trem em seu trilho, o talher triscando o prato, a onda do mar que bate na pedra. No documentário “Diário de Naná”, de Paschoal Samora, as crianças escutam atentas o que o mestre tem a dizer.
“O primeiro instrumento é a voz. E o melhor instrumento é o corpo”, diz Naná, que das palmas das mãos tira o som de um pandeiro imaginado. O ritmo é a música que nasce da escuta do corpo, e não da abstração da alma, inspirado pela atenção ao compasso do mundo.
Para dois jovens irmãos portugueses, o ritmo está nas cordas do violão e do violino. Já para o menino angolano, sai dos braços, dos quadris e da cabeça, acompanhando a música que toca. E, para o brasileiro, corre com a bola de futebol no quintal de terra de uma casa que ficará pronta a seu tempo. No ônibus, a caminho do ensaio, até tabuada vira canção para os estudantes de Ceilândia (DF). Seus sotaques e vidas tão diferentes entrarão em compasso quando os meninos de Portugal, Angola e Brasil se encontrarem para cantar junto com Naná e o maestro Gil Jardim em Brasília (DF), a jornada que acompanhamos em “Língua Mãe”, de Fernando Weller e Leo Falcão.
No filme, o berimbau de Naná faz a ponte entre essas culturas. A primeira batida espanta e encanta os alunos portugueses. Um menino faz uma entrevista com ele e quer saber como aprendeu a tocar o berimbau. Naná diz que desde criança foi seduzido pelos encantos do instrumento. “Fiquei fascinado porque o som dele é aqui perto do corpo. É tudo aqui perto do coração, dá uma emoção muito forte.”
Na toada do coração, o pulsar ritmado que nos move. Da cave escura ouvimos um canto em uma língua africana, um lamento profundo que nos transporta a tempos ancestrais, como um feitiço marcado para evocar o nosso divino. Desacelera o tempo, até que o grande gongo de Naná soe, grave, aquiescendo a dor e nos trazendo de volta ao compasso presente. À luz do dia, ele canta sozinho na praça: “Mãe minha, ô, mãe minha / ai que dor no coração.” As mãos largam os chocalhos e acolhem a cabeça baixa. Mas o ritmo é também alternância. Logo ele está aos risos com o amigo à beira de uma palafita fincada no oceano. Com um pequeno chocalho e algumas palmas, a conversa logo vira música. Eles param. “Se atravessar esse mar vai dar na África?”
Na tribo Malinkê, o silêncio nos mostra que, para o ouvido, tudo tem uma cadência: o machado que golpeia a árvore até ela cair, as pancadas que moldam o ferro do agogô, as mãos que esculpem e forram um futuro tambor. O trabalho de virar música. Os meninos batem latas na beira do rio, aprendendo o som dos homens. De volta a Salvador, outros meninos tiram sua percussão da sucata, transformando latas de tinta e bombas plásticas em seus instrumentos.
O trabalho também vira música. Foi nos quilombos baianos que a enxada perdeu o cabo para ser batucada e puxar o som do tambor e da cuíca — “capinasom”, define Naná. Em Cachoeira (BA), dona Damiana, veterana do samba de roda, conta como aprendeu a compor seus ritmos nos intervalos do ofício de charuteira, batendo as tabuinhas de madeira que usava para fazer charutos. “Olhe, gente, o samba é a vida, é alegria”, sorri. Para ela, o fim do nosso pulsar não é o fim do ritmo. “Até os mortos levantam da sepultura”, diz, ouvindo a levada acelerada de seu samba de roda.
Texto: Bruna Fontes