O pão é um alimento que passa por uma das mais incríveis jornadas de transformação. Que mágica acontece para que um pequeno grão de trigo vire uma bela massa de casca crocante, insuflada de complexos aromas e sabores?
Quando essa misteriosa transmutação acontece, algo também muda em quem faz o pão. “Existe algo de encantador em misturar a farinha e a água até eles virarem algo diferente. Isso mexe com a gente, desperta a nossa curiosidade e nos dá um outro olhar sobre a natureza da vida”, conta a padeira artesanal Vania Carvalho, fundadora do Quintal da Aurélia, em São Paulo, e que, durante a 4a Ciranda de Filmes, dará oficinas para quem literalmente quer colocar a mão a massa.
Começamos a sentir essa transformação na ponta dos nossos dedos. Afinal, o pão só cresce se colocarmos a mão na massa, misturando bem a farinha e a água. É o que vemos as mulheres fazendo, ajoelhadas no chão, sovando e dobrando longamente a massa do pane carasau, um pão achatado típico da Sardenha, na Itália, no documentário “Il Pane dei Pastore” (1962).
Nesse ritual comunitário, elas permanecem em silêncio, devotando atenção total ao pão. Já os alunos de Vania são bem conversadeiros. “É interessante como esse fazer junto cria um senso de comunidade. As pessoas compartilham histórias, redescobrem sentimentos e, assim, algumas delas conseguem, por exemplo, superar um momento ruim.”
Depois de tanta sova, chega a hora de deixar o fermento agir sobre o trigo, sem pressa. A espera exige paciência, pois a massa ganha vida a seu tempo, sem seguir o nosso relógio, que tudo quer apressar. Quem se aventura no universo da longa fermentação aprende a controlar a ansiedade, pois um pão desses pode levar até 36 horas para ficar pronto. E não adianta apressar o processo, senão a massa cresce menos do que deveria e o pão desanda de vez.
A longa espera é uma oportunidade para desenvolvermos os sentidos e a intuição, essenciais para saber quando a massa está no ponto para ir ao forno, já que não existe uma fórmula pronta. O padeiro Nicolas Supior, por exemplo, usa as palmas das mãos para sentir, levemente, a consistência da massa que cresce em um grande tacho de madeira na cozinha onde ele prepara seus pães artesanais, no interior da França, como mostra o documentário “La Passion du Pain” (2007). Pelo tato, ele percebe se a massa está firme e aerada a contento. Enquanto isso, nada de mexer com ela. “A intervenção deve ser a mínima possível, e sempre no bom momento”, ele ensina, antes de moldar pequenas bolas que repousarão em cestos de vime até completar a fermentação.
A experiência de observar a fermentação nos mostra que até os micróbios têm seu lado bom. Para Vania, acompanhar esse processo é bastante educativo para as crianças, pois muda sua visão sobre os micro-organismos que tanto combatemos no dia a dia. Sai o nojo, entra a admiração pelo fermento que vai fazer a massa inflar até virar pão.
Ao convocar as crianças para por a mão na massa, transformamos também a sua relação com a comida e com a comunidade. De volta à Sardenha, enquanto as mulheres sentam em círculo para modelar os discos do pane carasau, meninos e meninas se ajeitam fora da roda e ganham um pedaço menor de massa para praticar também – segundo o narrador, é assim que aprendem a importância do brincar e do trabalhar. “Com as mãos, a gente transmite amor para o pão. Elas sentem que esse alimento não vai nutrir só o seu corpo, mas também seus afetos e tomam gosto por cozinhar”, explica Vania. “Quem não faz sua comida passa a vida toda na mão da indústria.”
O jornalista norte-americano Michael Pollan, autor do livro “Cozinhar – A Arte da Transformação”, concorda. Para ele, fermentar pães, compotas e iogurtes em casa é uma forma de protestar contra a homogeneização imposta pela indústria alimentícia. Quem cria sua receita, portanto, descobre novos e complexos sabores e, assim, torna-se independente de uma lógica econômica na qual somos consumidores passivos de produtos padronizados.
Mas a nossa transformação não termina quando o pão sai do forno. Para começar tudo outra vez, não dá para esquecer de alimentar o fermento natural, ou levain, avisa o francês Supior, mostrando a pequena tigela com a massa onde crescerão os novos micro-organismos que darão vida a um novo pão. Todo dia é preciso renovar a mistura de água e farinha, senão a colônia de micróbios se consome e morre. Fica aí a última lição: a disciplina e a serenidade para flertar, todo dia, com o frágil limite entre a exuberância e a podridão.
Texto: Bruna Fontes
Foto: Quintal da Aurélia