“Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia
Faz pouco se deitou, está dormindo
Esse homem é brasileiro que nem eu.” – Poema O descobrimento,
de Mário de Andrade
Descobrir e registrar as narrativas populares foram uma das grandes missões e contribuições de Mário de Andrade para o Brasil, país que já nasceu ideia de teceduras de culturas, cosmologias e sincretismos. A cultura popular que nasce e se manifesta das ruas e dos terreiros. Mário ocupou-se de coração e alma, toda sua vida, para narrar a poesia das manifestações populares. Narrador digno das narrativas para as quais se dedicou. Um narrador-guardião, aprendiz da alma do povo, cultura que antes do modernismo brasileiro não era reconhecida ou valorizada.
Ao sermos tantas coisas, as tensões de assumir-se sem fronteiras, a afirmação de nossas diferenças nos faz um lugar de conflitos que construíram nossa história. Não conflitos armados com armas de fogo, mas armas de Jorge, Xangô, São Francisco de Assis. Sobreposição de afirmações que nos fazem múltiplos, do cavalo-marinho, Bumba meu boi, Maracatu, Caboclinho, Congo e de todas as expressões do Brasil do fundo, uma espécie de oração e comunhão entre diversos e comuns.
A composição de diferenças, crenças e saberes criam obras dignas da sensibilidade de artista, esse que sente um “friúme por dentro” ao perceber e encantar-se pelo outro, outros vários que são brasileiros como ele. Em seu olhar sensível e curioso mapeou as cartografias brasileiras como missões de vida, como cartografias de nossa cultura que sempre se reinventa para sempre afirmar os homens de seu tempo.
“O povo é a voz do mundo. O povo muda tudo”, Manuel Papaí, Babalorixá
Nas tensões e conflitos entre classe artística e cultura popular, a vanguarda e a vanguarda da tradição, a sabedoria e a cultura da burguesia, Mário de Andrade dedicou-se a anotar em seu caderno o coração das coisas brasileiras para descobrir novamente o Brasil. Para descobrir os portadores dos segredos de cada manifestação, os mestres e os brincantes.
Em “Mário e a Missão”, de Luiz Adriano Daminello, vamos acompanhar esses trajetos e descobrir novamente o Brasil, todas as vezes que forem necessárias. A série documental do Sesc TV ganhou uma versão especial de longa-metragem para a Ciranda 2016. Após a sessão, teremos uma prosa com o brincante-guardião das manifestações populares, Antônio Nóbrega, para celebrar a poesia da comunhão. Um encontro entre Mário e Nóbrega, e todo o Brasil profundo. Na Ciranda ainda teremos a exibição especial do “Brincante”, filme de Walter Carvalho.
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Texto: Vanessa Fort
Foto: Leia já imagens