Seguindo a linha do trem urbano que corta a paisagem de morros ou a trajetória da bola no futebol da quadra de concreto, conhecemos os anseios e os receios de jovens de oito Estados das cinco regiões do país no longa-metragem “Nunca me sonharam”. Ao aproximar a câmera dos jovens, o cineasta Cacau Rhoden capta alguns desejos, ouve alguns sussurros. Então, aquela nostalgia de liberdade que sopra com o vento que brinca com cabelos azuis e acompanha coloridas meninas em seus skates se esvai na voz do adolescente: “A partir do momento em que o sonho foi tirado de mim, eu desisti dele também”.
A adolescência, idealizada como a idade em que somos mais livres para sonhar, experimentar, começar a escrever em primeira voz a narrativa de uma vida que ainda não tem as amarras do ser adulto, é “tempo de tempestades e trovões”, profere quem já atravessou um portal que parece apartar mundos. Ou já experimentou o rito de passagem que é percorrer os anos do ensino médio nas escolas brasileiras, públicas ou privadas. “Não queria ser jovem, não, queria passar direto para a fase de adulto”, a voz de outro adolescente nos revela. Não sabemos quem o dono da voz, muitos olhares nos miram.Nas juventudes brasileiras, nem todos têm oportunidades iguais. A câmera acompanha a mochila do estudante caminhando para o ponto de ônibus antes do sol nascer. Em casa, a pressão para trabalhar. A gravidez precoce. A sedução do tráfico. Na escola pública, com cara de presídio, uma vida encerrada entre a grade curricular e a da porta. Um modelo de ensino em que não cabem suas aspirações. Só oferecer a escola é abandono.
Na busca pelo primeiro emprego, a dura realização de que o estudante da rede pública, o negro e o pobre não têm as mesmas chances. Sem o apoio de pais e professores, o encurtamento dos sonhos. “Esses adultos também um dia foram jovens que não aprenderam a sonhar, que foram desde cedo colocados em um lugar onde não podiam agir. Então não podem ensinar ao jovem como transcender esses limites”, observa Cacau. Porcos atravessam a rua de terra de uma cidade piauiense em que metade da população é analfabeta.
Alguém observa que até nosso hábito de perguntar aos jovens o que eles querem ser, projetando o futuro, nega seu espaço no presente, limita sua liberdade de reinventar o mundo em que vivem. Sua opinião não é levada em conta, o diálogo não se realiza em casa, na escola, nas ruas. “A sociedade não ouve esses meninos, eles estão absolutamente abandonados”, constata Cacau. “Qual é o futuro de uma nação em que grande parte dos jovens não têm nem a possibilidade de sonhar?”
Um pequeno foguete risca um voo tímido na tela, e atrás dele vêm, sorrindo, os meninos que o construíram na escola. Como eles, muitos ainda vão voar, às vezes com ajuda dos adultos que os sonham. Como o diretor que convence os meninos mais problemáticos a formar um time de futebol para representar a escola, o corpo escolar que manda uma carta para chamar de volta o menino que deixou os estudos para entregar botijões de gás, o professor que leva os alunos para ampliar seus horizontes em uma aula dentro do rio. “É impressionante a diferença que um educador comprometido faz na vida desses jovens. São eles que estimulam o desejo e o sonho e mostram que é possível fazer educação pública de qualidade”, afirma Cacau.Outro grupo surge aos poucos: jovens de olhar determinado falam com ênfase, pintam o rosto e as paredes para reabrir uma biblioteca. Uma brecha. Chamam para si a responsabilidade sobre seu futuro – e querem ser ouvidos. Vão às ruas com seus cartazes, organizam-se em coletivos, contestam o autoritarismo com suas relações horizontais. “Ou é todo mundo junto ou todo mundo perde”, ouvimos ao fundo. “O futuro é agora. Já. Já foi”, manda a menina poeta entre os grafites que disfarçam os duros muros cinza.
Texto: Bruna Fontes
Fotos Divulgação/Nunca me sonharam