Gandhy Piorski é uma dessas pessoas dedicadas ao profundo infantil. Artista, escritor e pesquisador das infâncias, de suas linguagens, símbolos e imaginário, ele tem uma experiência e dedicação de anos nesta pesquisa. Além de diversos projetos, ele está escrevendo um livro que será publicado em breve e outro que já está em produção. Gandhy também colabora em diferentes iniciativas, como o Projeto
Território do Brincar.
Fizemos uma prosa com ele sobre a infância, o seu sentido de corporeidade e moradia, a relação da natureza como interioridade e potência criativa, a expressão política e cultural da infância, espaços compartilhados e muitas outras coisas. Compartilhamos aqui a preciosidade dos pensamentos e reflexões do nosso querido convidado.
Gandhy participou da Roda de conversa: Criança e Natureza, na Ciranda 2015, com a Rita Mendonça e o Ricardo Ghelman.
Ciranda: Conte um pouco de sua pesquisa e dedicação em torno da infância e suas linguagens. Quais são seus novos planos e produções como artista plástico, pesquisador e escritor?
Gandhy Piorski : Por um período estive inteiramente voltado para crianças e natureza. No universo natural. Estive em diversos lugares do interior, em comunidades tradicionais, em litorais, serras e sertão. Assim alguns anos transcorreram. Isso tudo se transformou em uma exposição inaugural sobre os 4 elementos no brincar. Também seminários, palestras e caminhos estéticos outros como colaboração com o cinema, com o filme
Território do Brincar (Renata Meirelles e David Reeks) e as artes visuais com curadoria de exposições e colaboração com companhias de dança como a Balangandança (projeto Ninhos – Georgia Lengos) e etc.
Mas criança e natureza inquieta muito as pessoas. A pergunta recorrente, era e é: como ficam as crianças das grandes cidades? Essa inquietação não para de nascer entre as pessoas que acompanham o trabalho. Assim voltei-me para um projeto em busca de apontamentos sobre a natureza, a criança e a cidade. Então esse é o trabalho mais recente. Estamos atuando em diversas camadas de narrativas das crianças na cidade de Fortaleza. Até agora são dois projetos. No primeiro trabalhamos por um período de 3 meses com 1200 crianças. Chamamos de Salão de Artes da Criança. Uma espécie de ateliê livre, aberto, angariando o dizer das crianças da cidade.
O segundo está acontecendo de agora até outubro. Estamos atuando em 6 regiões da cidade, junto a escolas públicas e periferias. São festivais de ludicidade, criação livre e construção. Sairá daí um outro amplo acervo de narrativas.
Com isso temos construído novos caminhos de discussão. Esse novo repertório já virou exposição, seminário, palestra, e outros novos caminhos que estão a surgir. O próximo projeto é sempre uma emenda do anterior. É sempre um caminho de rastrear coisas de criança. Essa arqueologia não tem fim. Tudo indica que será por mais interiores do Brasil e das crianças.
De escritos tem um livro pronto para ser publicado em breve e um segundo em construção.
Ciranda: Você acha que a relação do adulto com a infância tem um sentido de respeito, mas também de controle? A proteção absoluta advém deste sentido de controle? Como poderíamos colocar a infância no centro de uma participação política e símbólica, com sua graça e potência, como sujeito e força de si mesmo? Como a arte e o lúdico pode ter relação com isso?
Gandhy: O controle tornou-se o sentido hegemônico de nossa civilização. Haja visto toda a prioridade dada à visão, à visualidade, à visibilidade desde o advento da chamada modernidade. O olhar hegemônico e toda enxurrada de imagens artificiais que vivemos é anseio de controle.
Imaginemos então: o que transborda disso para uma cultura da educação das crianças? Dimensões éticas e cognitivas sofreram drásticas mudanças neste percurso do culto à visualidade. Enfraquecemos o senso de moradia, de corporeidade, de espacialidade, de tato, de natureza.
Imaginemos novamente: o que é a criança sem senso de moradia, de corporeidade, de espacialidade (cidade, comunidade), de tato e de natureza?
Não se sabe mais do que se protege as crianças. Se da vida ou de ameaças. Não se sabe mais o que é ameaça e o que é vida. Vida é lida muitas vezes como ameaça; ameaça está confundida com vida.
Certamente a participação simbólica e política das crianças não poderá ser no âmbito discursivo e institucional. Está mais para a poética das matérias inúteis (Manoel de Barros),do fazer livre, para uma ontologia do brincar, mais para uma meta-cultura dos gestos e onomatopeias.
A arte é vernacular na criança. Usada sem pudor. Como que silvestre, livre. Usada não como arte, pois a criança não está interessada em fazer arte, mas usada como seu código natural de expressão. A semântica da criança tem aura estética. Justamente por ser semântica do ser.
Gilbert Durand em sua antropologia do imaginário diz que toda memória de infância é imediatamente uma obra de arte, pois é nostalgia do ser. E a linguagem do ser é cometida perenemente do simbólico, do intuitivo, do premonitório, da anunciação de novos caminhos. As crianças, em especial até os 5 anos de idade, são como os grandes artistas, premonizam o mundo.
O mais perigoso nisso tudo é que em quase totalidade de nossa civilização, com poucas exceções, pode-se encontrar muitas coisas nos pedagogos, mas uma coisa que pouco se encontra é senso e fazer estético desenvolvidos. Raro é encontrar nesses trabalhadores que carregam pesados fardos, percepção e significação simbólicas apuradas e imaginação criadora nutrida. Eis um dos abcessos!
Mas esse não é o único. A cultura midiática a todo vapor fazendo coisas como bem entende para crianças, o entretenimento como o inquestionável intorpecente e as pobres famílias exauridas de correr atrás do próprio rabo, ou da salsicha dependurada no final da esteira.
Contudo, já é possível ver que novos caminhos estão nascendo…
Ciranda: Comente um pouco sobre sua pesquisa e o como ela está profundamente ligada na relação da criança com a natureza. a produção simbólica de significados, a força do imaginário da natureza que potencializa o sujeito, a sua produção simbólica e de significados…
Gandhy: As pessoas costumam perguntar: seu trabalho é sobre o que as crianças fazem na natureza, mas e as crianças da cidade? Essa pergunta é muito fortemente vinculada ao nó dos tempos do fabrico, da técnica, da indústria, da desmaterialização do fazer.
Não sabemos mais, não reconhecemos mais que somos natureza. A natureza é um lá fora.
E justamente é esse o objetivo do meu estudo, aproximar as crianças daquilo que somos. E o que somos pode ser uma resposta vasta (do tamanho de tudo o que se fez até hoje), ou talvez nem ter resposta. Entretanto, antes de tudo, somos natureza.
Assim, nessa pesquisa, a busca das fontes do reino animal, vegetal e mineral no homem, na criança, tem uma base. Está naquilo que Bachelard chamou do quarto reino da natureza: a imaginação.
Nela as potencialidades da vida natural estão gravadas, o que precisamos aprender é acioná-las. E resolvi aprender como acioná-las com as crianças. Elas sabem muito bem viver a capacidade que a imaginação tem de criar caminhos de ordenamento interior e reequilíbrio. Deixam a imaginação trabalhar, deixam essa cognição e sensitividade anímica modular estados de ser.
Estas modulações podem se materializar em brinquedos, em matérias primas retiradas do mundo natural. Ganham forma, podem ser lidas. Podem até ser mapeadas. Tenho percebido apontamentos para uma cartografia da imaginação no brincar. Uma pedagogia de hormônios simbólicos despertos pelo contato com as matérias da natureza.
Brinquedos livres, construídos pelas crianças, são tratados dos estados de interioridade. São rastros de tatilidade ancestra, de anseios primitivos, de sonhos recorrentes desde o mais antigo rumor de humanidade na terra. Nosso corpo tem memória, nossas células, nosso psiquismo. Memória não só biográfica, mas memória dos antepassados que não conhecemos, memória geológica, cosmológica. Nosso corpo necessita de espaço e lugar para tudo isso habitar e sentir. Isso dizem esses pequenos ensaios de materialidade do brincar com a natureza.
São eles espelhos de ranhuras inscritas na criança, em sua interioridade e biologia, em sua tessitura de memórias, em sua corporeidade. Podem ser ativadas pelo brincar. São potências guardadas em instâncias criadoras da imaginação. São depósitos de expansão e abertura do ser. Janelas novas de conhecimento, valoração, cognição.