Categorias
Olhares Olhares 2017

Resistência em comunidade

Vivemos um tempo de divisão. Cada um em seu lado, entrincheirado em suas ideias, afirma-se como indivíduo (ilusoriamente) independente e se opõe a quem pensa e vive de maneira diferente. Na vida cotidiana, estamos surdos para o outro. Nas redes sociais, ficamos também cegos, pois algoritmos nos escondem o que não nos agrada, constroem feudos nos quais a única comunidade possível é a que concorda, a que suprime conflitos.

Vivemos, também, um tempo de batalhas. Lutas para limitar direitos civis conquistados por comunidades diversas — mulheres, negros, LGBTs, entre tantas outras –, lutas para manter esses direitos, numa disputa quase sempre binária. Ou para conquistar outros, como a renda mínima, o transporte gratuito, a moradia acessível. A batalha por um teto fica mais acirrada em São Paulo, uma metrópole feita de migrantes e imigrantes, e agora também de refugiados de países em guerra. Mais gente está chegando, mas onde vão morar?

Achamos uma pista passeando pelo centro duro, cinza, da capital, mas com tanta vida agitando as ruas. Quem nos leva é a câmera do filme “Era o Hotel Cambridge”, filme de criação coletiva, no limiar entre a ficção e a não ficção, dirigido por Eliane Caffé, presença confirmada nas telas e nas rodas desta quarta edição da Ciranda de Filmes.

Seguindo seu olhar curioso, chegamos a uma porta vermelha, onde se abre uma brecha para entramos nesse hotel modernista abandonado na avenida Nove de Julho. Subimos pelas entranhas da construção, viajando pelos canos e pela fiação elétrica; ouvimos a estática e a descida da água, notamos que esse grande prédio não está vazio. Emergimos em uma comunidade barulhenta, viva, que tomou o imóvel e se estabeleceu ali junto com a Frente de Luta por Moradia, um dos tantos movimentos organizados desde os anos 2000 para ocupar prédios abandonados e expor, junto com suas bandeiras, o problema dos sem-teto na cidade.

Lá dentro convivem pessoas diferentes – o filme mostra os ocupantes reais do Cambridge misturados a alguns atores. Há o nordestino e o palestino. O poeta agitado e a líder do movimento social. Uma senhora que sonha com tempos passados, o jovem que deseja outro futuro. Cada um é a seu modo, mas neste mundo não vemos trincheiras. Para os sem-teto, formar uma comunidade para preencher o prédio vazio é a única forma de resistência. Juntos, resistem à solidão de estar longe da família, à dura vida de quem tenta sobreviver em uma metrópole que não fala sua língua, onde não se encontra a sua comida, onde o dinheiro não chega para ter uma casa só sua.

No interior do Hotel Cambridge vemos uma comunidade real bem distinta dos feudos digitais. Um grupo que se estabelece sobre suas diferenças, e não sobre superficiais semelhanças. Os refugiados de países em guerra, como Congo e Palestina, descobrem que continuam no meio de uma zona de conflito. Em uma assembleia convocada às pressas, os moradores ficam sabendo que a juíza concedeu a reintegração de posse do imóvel e determinou o despejo em 15 dias. A angústia imediatamente traz à tona as divisões guardadas em cada quarto.

Um homem se levanta e diz: “A gente já não tá podendo nem cuidar de nós, os brasileiros, e ainda tem que cuidar de refugiado do Congo, dos libaneses e palestinos?”. A líder real do movimento Frente de Luta pela Moradia, Carmem Silva, traz a conversa de volta para a importância de resistirem juntos. “A luta é com vocês, não é para vocês”, responde rápido. “É hora de a gente estar unido.”

Fica claro que ninguém ali sobreviverá sozinho, fechado no mundo do seu apartamento. Juntos, eles cozinham, limpam, consertam, amam, tentam aprender a falar português. Descobrem comidas, música, poesia e costumes de outros países – e que no Congo, antes de pedir alguém em namoro é preciso comprar um presente. Cada um conta a sua história, na tentativa de tecer a rede de humanidade que une as pessoas que não falam a mesma língua. Em roda, dão voz ao desespero que os tirou de sua terra natal, inventam performances artísticas, passam uma caneca de cachaça para contar suas filosofias. Para instituir a poesia, recita o veterano palestino, é preciso caminhar no coração da ferida. Resistir. Beijar suas cicatrizes. “O destino do rio é sempre ser o rio”, finaliza.

Organizados como um grupo, os ocupantes do Cambridge combinam estratégias para demover a juíza da decisão do despejo (ou para pelo menos serem ouvidos rapidamente, encurtando a paciência dela com uma descascação geral de mexerica). Constroem um bloqueio para retardar a invasão dos policiais que querem desocupar o imóvel, criam saídas de emergência, barricadas para resistir. E, finalmente, reúnem um novo grupo para ocupar o próximo imóvel. “Toda a minha vida eu fui num país ocupado. Pela primeira vez, eu sinto que eu tô ocupando uma coisa”, desabafa o veterano palestino. E assim começa uma nova comunidade.

 

Texto: Bruna Fontes

Fotos Divulgação

Categorias
Olhares Olhares 2017

Quando o amor se avizinhou do mundo

“A torneira da pia estava quebrada, não parava de pingar. O tempo sempre foi causador de muitos defeitos. Era ele quem empoeirava as dobradiças da razão, desaparafusava os sentimentos. Eram as artimanhas para se fazer presente, lembrar a todos que ele também habitava aquele lugar.”

Numa mesa onde hoje sentam três, pai e seus dois filhos, para o café da manhã com “bolo, pão e silêncio”, a quarta cadeira continuava vazia. Mas o tempo permanecia ali, ao redor, também personagem desse universo (atemporal, vale dizer) criado por um cineasta-escritor, Alan Minas, que estreia seu primeiro longa-metragem de ficção, “A Família Dionti”, um dos filmes imperdíveis desta Ciranda.

“A Família Dionti” – tão de hoje, tão nossa, tão dentro de todos nós – conta uma história de amor envolvendo uma mãe que partiu atrás de um outro bem, de um pai que a espera voltar mesmo que em forma de chuva e de seus dois filhos, um que se derrete literalmente de paixão por uma menina de alma nômade e outro que, ressequido por dentro, chora terra em seu travesseiro à noite. Vivem num lugar ermo, longe de tudo, à beira de seu próprio tempo. Ali o silêncio, fatiado à mesa, repercute a não-palavra que a muitos apavora.

Com pinceladas de realismo mágico, essa história nasceu primeiramente num conto, logo transformada em roteiro e, depois, saltou avidamente para as páginas de um romance publicado pela Berlendis & Vertecchia Editores. “A Família Dionti”, o livro, nasceu de uma saudade que Alan Minas sentiu das personagens, daquele lugar habitado de memória, depois de terminadas as filmagens que se estenderam por nove meses.

“Regressei para casa e senti uma enorme inquietude, um vazio. Era uma saudade que não me deixava, que sobrava. Saudade que eu sentia da história, e que, para mim, as personagens também sentiam. Não estávamos saciados. Tudo que vivenciei seguia pulsando”, lembra. O filme havia terminado, mas a história estava incompleta, latente, dentro do seu criador. Aquelas personagens, numa intensa entrega, ainda tinham mais o que transbordar.

A história evoca o amor, colocando esse sentimento no lugar do sagrado, “intocado, puro e ingênuo”, como define o diretor. Na forma de poema visual, no filme, ou de prosa poética, no livro, os elementos da natureza são metáforas da própria vida, que se faz no curso das águas, símbolo da transformação. O menino que “nunca sabia onde as coisas iam desaguar”, derretendo-se de amor por Sofia Doventim, que “nunca soube o que era endereço amarrado”, lembra-nos que as transformações do crescer são um pouco como morrer. “A metamorfose das borboletas”: era esse o texto que liam na aula.

Tanto no filme quanto no livro, a história tem o tempo suspenso. O diretor enfatiza que o filme se descortina em ritmo próprio. “No mundo da família Dionti, as regras e os códigos tornam-se também particulares, está nas palavras, nas ações. E no pensar. A lógica se reinventa, e os vários mundos que nos cercam se afloram. Mas esse tempo não se arranja como um fim, ele se apresenta como instrumento, um objeto operacional.” É que a história se (re)constrói em quem a lê ou a assiste. E uma nova história sempre acontece. “Sobra tempo para o contemplar, sentir junto e se emocionar com as personagens. Sobra um tempo dentro de cada um.”

Josué, Kelton, Serino, além de Sofia, vô Abelino, a professora Ilusângela, a diretora Poesina e Centenádia, a mulher que não consegue morrer, entre tantas outras personagens, habitam um lugar por onde “todas as pessoas do mundo já haviam passado”. Mas lá, veja só, há tempos as estradas “esqueceram seus rumos”. Um buraco do mundo, com uma placa numa bifurcação do caminho indicando dois lugarejos: Angustura e Dores da Vitória. Assim como o tempo, o lugar é também nobre personagem. E ganhou contornos na zona da mata mineira, que imprimiu novos sotaques à narrativa.

“O universo rural, a floresta e suas águas, o desabitado e seus bichos, o seminal das coisas e a terra dialogavam perfeitamente com o lugar que buscava. Eu queria o oposto do real. É o universo impossível que me habita e que eu busco fora de mim. Sabia que o encontraria no interior, em nossas roças. E o essencial que tanto procurava encontrei dentro das personagens. Talvez isso tenha encurtado as distâncias, e a história de um lugar pequeno ganhou perna e se avizinhou do mundo.”

A poesia une as duas obras – filme e livro. Foi bastante desafiador realizar a transição da história em dois suportes diferentes, com linguagens e elementos narrativos próprios, conta o escritor, também cineasta. “Enquanto a literatura me oferece total liberdade para explorar o fluxo de pensamento, cuidar da palavra escrita e de seu ritmo inserido no texto, a elaboração do filme me faz pensar em imagens e na gramática própria do audiovisual. A verborragia nesse filme não teria nada a ver com sua concepção. São duas escritas, duas línguas.”

Se o filme se desenrola no entre palavras, com poucos diálogos, o livro tem uma tessitura que desfia habilidosamente novos dizeres e novas subtramas. Ver o filme e ler o livro (não necessariamente nessa ordem) são duas experiências únicas, que se completam e se intensificam nas descobertas dos muitos cantos dessa história que logo passa a nos habitar, como se há tempos se escondesse em algum lugar de nós, lá longe, bem no fundo.

Texto: Gabriela Romeu

Fotos: Divulgação

 

Categorias
Olhares Olhares 2017

(Trans)bordar feito água de riacho

As sabenças compartilhadas ao pé do fogão, as brincadeiras nos rios-riachos da infância, as memórias desenhadas nas calçadas da rua com pedrinhas do fundo dos córregos, entre muitas outras lembranças do quintal, alimentam o imaginário do grupo Matizes Dumont, formado por uma família mineira que há gerações borda intensamente suas narrativas de origens.

São cinco irmãos: Marilu, Demóstenes, Ângela, Martha e Sávia Dumont, todos descendentes de Antônia, a bordadeira-mãe que ampliou ainda mais o imaginário dos filhos com as tessituras feitas nas barras de vestido, nos lençóis que cobriam à noite as crianças, nas toalhas de mesa que enfeitavam a casa em dia de visita. Dizem eles que seus sonhos “ainda são povoados por pássaros, flores, borboletas, cavalinhos, meninos, barcas, bonecas de pano, carros de boi e noites estreladas”. E é esse sonhar cheio de singelezas que nutre as artes da 4ª Ciranda de Filmes.

O bordado fortalece. Transforma o adulto em criança pequena, árvore, bicho ou até rio, agigantado como o São Francisco que banhou a infância dos Dumont. “Ao bordar, a pessoa pode retomar os fios da memória do vivido, reencontrar espaços internos de amorosidade, experienciar situações de cooperação, perfazer gestos de sensibilidade e, quem sabe, começar de novo um viver na beleza, no reencontro do sentido de vida”, conta Marilu, que crê na formação humana como um bordado.

Cresceu numa família em que “os adultos bordam brincando e as crianças brincam de bordar”. A infância dela e dos irmãos foi tecida entre os bordados da mãe e os causos contados pelo pai da varanda de casa. Os “almanaques”, que chegavam sempre que se ouvia o apito do vapor, eram sempre aguardados. As linhas, agulhas e tecidos, primeiros brinquedos dos filhos, eram misturados àqueles feitos de sementes colhidas no quintal. A vida seguia com a batida do pilão, o barulho do sino da cabritinha no pasto, a cor das asas da juriti.

Da vivência, brotou o saber coletivo do ofício. “Um galo sozinho não tece uma manhã”, dizia João Cabral de Melo Neto. A bordadeira Marilu concorda: há três gerações são transmitidos ensinamentos, na “busca cotidiana de saber ser e saber fazer coletivamente”. E não só dentro de casa. As irmãs oferecem oficinas de bordado em diversos lugares do Brasil. Assim, o ofício é repassado, ensinado, preservado.

Colaborativo, a arte de bordar se assemelha aos fazeres da vida rural. Do mesmo modo se prepara a junta de bois que puxa o carro, para levar todos à festa de reis na beira do rio. Um completa a arte do outro, brincando com agulhas e linhas desde a meninice. Sim, o mais íntimo vem das origens: a fazenda habitada em Pirapora, norte de Minas Gerais, nas beiradas do rio São Francisco, o Velho Chico, onde a vida era de repleta encantamentos.

Toda inspiração brota da natureza de lá, suas cores e suas formas. “As filigranas das samambaias, as árvores encantadas que trocam de roupa a cada dia, a Via Láctea escandalosa sobre o céu refletido no rio São Francisco, as estrelas como que penduradas no pé de jatobá. Cor de manga rosa, gosto de jabuticaba no pé, doce quente de buriti no tacho de cobre.” Todos os fazeres manuais, o trabalhar da farinhada ou o preparar do melado para rapadura, são tecidos. E não só no pano, mas em todas as relações.

E as tramas que se iniciaram com os rabiscos dos toás – aquelas pedrinhas de calcários, do fundo dos córregos – transbordam ainda hoje nos coloridos fios. Assim, bordam bicho, árvore, pessoa. Bordam a história da vida, a morte e tudo o que há de humano. “Todos os rios têm uma história peculiar. O que a gente vai descobrindo é que as narrativas se entrelaçam, e aí que a gente vê que todos os rios são mesmo internos.” Gente faz é (trans)bordar.

Texto: Gabriela Romeu e Luísa Cortés

Imagem do bordado: grupo Matizes Dumont