Vivemos um tempo de divisão. Cada um em seu lado, entrincheirado em suas ideias, afirma-se como indivíduo (ilusoriamente) independente e se opõe a quem pensa e vive de maneira diferente. Na vida cotidiana, estamos surdos para o outro. Nas redes sociais, ficamos também cegos, pois algoritmos nos escondem o que não nos agrada, constroem feudos nos quais a única comunidade possível é a que concorda, a que suprime conflitos.
Vivemos, também, um tempo de batalhas. Lutas para limitar direitos civis conquistados por comunidades diversas — mulheres, negros, LGBTs, entre tantas outras –, lutas para manter esses direitos, numa disputa quase sempre binária. Ou para conquistar outros, como a renda mínima, o transporte gratuito, a moradia acessível. A batalha por um teto fica mais acirrada em São Paulo, uma metrópole feita de migrantes e imigrantes, e agora também de refugiados de países em guerra. Mais gente está chegando, mas onde vão morar?
Achamos uma pista passeando pelo centro duro, cinza, da capital, mas com tanta vida agitando as ruas. Quem nos leva é a câmera do filme “Era o Hotel Cambridge”, filme de criação coletiva, no limiar entre a ficção e a não ficção, dirigido por Eliane Caffé, presença confirmada nas telas e nas rodas desta quarta edição da Ciranda de Filmes.
Seguindo seu olhar curioso, chegamos a uma porta vermelha, onde se abre uma brecha para entramos nesse hotel modernista abandonado na avenida Nove de Julho. Subimos pelas entranhas da construção, viajando pelos canos e pela fiação elétrica; ouvimos a estática e a descida da água, notamos que esse grande prédio não está vazio. Emergimos em uma comunidade barulhenta, viva, que tomou o imóvel e se estabeleceu ali junto com a Frente de Luta por Moradia, um dos tantos movimentos organizados desde os anos 2000 para ocupar prédios abandonados e expor, junto com suas bandeiras, o problema dos sem-teto na cidade.
Lá dentro convivem pessoas diferentes – o filme mostra os ocupantes reais do Cambridge misturados a alguns atores. Há o nordestino e o palestino. O poeta agitado e a líder do movimento social. Uma senhora que sonha com tempos passados, o jovem que deseja outro futuro. Cada um é a seu modo, mas neste mundo não vemos trincheiras. Para os sem-teto, formar uma comunidade para preencher o prédio vazio é a única forma de resistência. Juntos, resistem à solidão de estar longe da família, à dura vida de quem tenta sobreviver em uma metrópole que não fala sua língua, onde não se encontra a sua comida, onde o dinheiro não chega para ter uma casa só sua.
No interior do Hotel Cambridge vemos uma comunidade real bem distinta dos feudos digitais. Um grupo que se estabelece sobre suas diferenças, e não sobre superficiais semelhanças. Os refugiados de países em guerra, como Congo e Palestina, descobrem que continuam no meio de uma zona de conflito. Em uma assembleia convocada às pressas, os moradores ficam sabendo que a juíza concedeu a reintegração de posse do imóvel e determinou o despejo em 15 dias. A angústia imediatamente traz à tona as divisões guardadas em cada quarto.
Um homem se levanta e diz: “A gente já não tá podendo nem cuidar de nós, os brasileiros, e ainda tem que cuidar de refugiado do Congo, dos libaneses e palestinos?”. A líder real do movimento Frente de Luta pela Moradia, Carmem Silva, traz a conversa de volta para a importância de resistirem juntos. “A luta é com vocês, não é para vocês”, responde rápido. “É hora de a gente estar unido.”
Fica claro que ninguém ali sobreviverá sozinho, fechado no mundo do seu apartamento. Juntos, eles cozinham, limpam, consertam, amam, tentam aprender a falar português. Descobrem comidas, música, poesia e costumes de outros países – e que no Congo, antes de pedir alguém em namoro é preciso comprar um presente. Cada um conta a sua história, na tentativa de tecer a rede de humanidade que une as pessoas que não falam a mesma língua. Em roda, dão voz ao desespero que os tirou de sua terra natal, inventam performances artísticas, passam uma caneca de cachaça para contar suas filosofias. Para instituir a poesia, recita o veterano palestino, é preciso caminhar no coração da ferida. Resistir. Beijar suas cicatrizes. “O destino do rio é sempre ser o rio”, finaliza.
Organizados como um grupo, os ocupantes do Cambridge combinam estratégias para demover a juíza da decisão do despejo (ou para pelo menos serem ouvidos rapidamente, encurtando a paciência dela com uma descascação geral de mexerica). Constroem um bloqueio para retardar a invasão dos policiais que querem desocupar o imóvel, criam saídas de emergência, barricadas para resistir. E, finalmente, reúnem um novo grupo para ocupar o próximo imóvel. “Toda a minha vida eu fui num país ocupado. Pela primeira vez, eu sinto que eu tô ocupando uma coisa”, desabafa o veterano palestino. E assim começa uma nova comunidade.
Texto: Bruna Fontes
Fotos Divulgação