Terreiro é espaço do sagrado, da (con)vivência. É “lugar pra brincar”, “busca do espaço de intimidade”, da tessitura de relações de uma comunidade, todos reunidos num só fazer. É verdadeiro território do brinquedo que transborda as linhas do objeto, transcende, vira folguedo, festa popular.
Como a criança se nutre dessa força que habita os terreiros e seus brinquedos? É uma pergunta que norteia o filme “Terreiros do Brincar”, de David Reeks e Renata Meirelles, com produção da Maria Farinha. Em viagens pelo Brasil durante o projeto Território do Brincar, uma coprodução com o Instituto Alana, o casal de documentaristas vivenciou manifestações populares, como Nego Fugido, Festa do Divino, Bumba Meu Boi e Folia de Reis, em diversas comunidades.
A cultura popular é leite que alimenta a criança, nos diz o músico cearense Alemberg Quindins, uma das vozes que ajudam na tessitura de imagens que evocam os folguedos, da preparação às festas. “As crianças somam ao coletivo e não estão ali para um dia virem a ser um membro participativo, já o são desde que entram para o grupo. Essa maneira de olhar para a criança no presente, considerando todo seu potencial, ao invés de querer suprir o que lhe falta, ou treiná-la para o devir, desperta reflexões e vivências muito importante para nós”, conta Renata, que fez o roteiro em parceria com Soraia Chung Saura.
Nesse percurso, o corpo se fez em festa. “O canto e a dança ficam reverberando e ninguém pode tirar isso de nós. São lembranças de momentos de muita vida. É como se pudéssemos pedir licença para emprestar essa energia e quanto mais você participa, mais ela se torna parte de você. Já éramos encantados com a cultura popular, mas esse intenso contato com tantos grupos mostrou, como diz a Péo, ‘a inteireza da manifestação criadora e criativa’.”
Na entrevista a seguir, é possível desvelar outras imagens por trás das imagens. Como a do Velho Tonho, que lidera um pequeno reisado com brincantes-meninos num vilarejo do litoral do Ceará. Se a entrega é de corpo e alma em dia de folguedo, Velho Tonho vive o resto do tempo a “xingar o vento em um interminável monólogo”, recorda a diretora. Mas, no reisado, em dia de festa, “o Velho e as crianças transcendem o cotidiano e constroem um forte vínculo, um respeito mútuo pelas tradições, pela festa e pela brincadeira”.
Depois das andanças e da montagem de “Terreiros do Brincar”, como definiria que espaço é o terreiro, abordado de várias formas e em diversos momentos no filme?
Renata Meirelles – Entendemos que terreiro é um espaço íntimo, que agrega um coletivo de pessoas que vivem em liberdade. Em alguns cantos do Brasil o terreiro significa quintal, espaço em que acontecem as intensas explorações e descobertas infantis. Nos quintais, vive-se o mistério e o encantamento com a força de transcender o tempo e o espaço. Ali o corpo é meio para se deslocar do concreto e viver o essencial em estado de liberdade. Paulo Dias, entrevistado no filme, nos explica que o terreiro no universo das festas populares é qualquer espaço de intimidade de uma comunidade, principalmente dessas que foram perseguidas ou escravizadas e que precisam dos seus espaços “longe das vistas do controle”. Pode, ou não, ser um espaço religioso, mas o que realmente configura o terreiro é a vivência íntima da comunidade em um local reservado de (para) transcendência. O corpo em movimento canta, dança e brinca em devoção a alguma divindade ou simplesmente na experiência de sentir o corpo (pessoal e comunitário) como o próprio templo. Entendemos que a criança e o adulto vivem o terreiro com essa mesma intimidade coletiva, e foi aí que nasceu o nome do filme.
Poderia contar um pouco suas experiências nas festas, destacar momentos que, como define Péo no filme, mostram “a inteireza da manifestação criadora e criativa”? Depois da vivência das festas, o que ficou impresso no corpo e na alma?
Renata Meirelles – Era um interesse antigo viver festas populares pelos olhares das crianças e do brincar coletivo, portanto, esse tema não poderia ficar de fora do roteiro de viagem do “Território do Brincar”. Ao todo registramos 33 grupos de manifestação popular em 8 Estados brasileiros e percebemos que todos eles incluem a criança em sua força espiritual, corporal e lúdica. As crianças somam ao coletivo e não estão ali para um dia virem a ser um membro participativo, já o são desde que entram para o grupo. Essa maneira de olhar para a criança no presente, considerando todo seu potencial, ao invés de querer suprir o que lhe falta, ou treiná-la para o devir, desperta reflexões e vivências muito importante para nós.
No vilarejo de Tatajuba, no Litoral de Ceará, por exemplo, vimos um reisado liderado pelo Velho Tonho e seu pandeiro solitário. Ele reúne umas 15 crianças, entre 4 e 15 anos de idade, em uma brincadeira de muita inteireza. Ele e seus pequenos brincantes revelam uma entrega de corpo e alma que faz a energia da festa acontecer. No dia a dia, o Velho Tonho carrega questões sociais complicadas, vive sozinho pelas ruas xingando o vento em um interminável monólogo. Mas, no reisado, o Velho e as crianças transcendem o cotidiano e constroem um forte vínculo, um respeito mútuo pelas tradições, pela festa e pela brincadeira. E isso é o que se vê em outros grupos, cada qual com sua intensidade e teores diversos.
Sobre a nossa experiência pessoal, o que fica no corpo é a festa. O canto e a dança ficam reverberando e ninguém pode tirar isso de nós. São lembranças de momentos de muita vida. É como se pudéssemos pedir licença para emprestar essa energia e quanto mais você participa, mais ela se torna parte de você. Já éramos encantados com a cultura popular, mas esse intenso contato com tantos grupos mostrou, como diz a Péo, “a inteireza da manifestação criadora e criativa” e a força que tudo isso tem.
Quais imagens envolvendo as crianças na festa tocaram mais fundo a sua alma? Poderia compartilhar alguns momentos?
Renata Meirelles – Muitas crianças vêm de famílias que fazem parte dessas manifestações há muitas gerações, outras entram nos grupos por motivação pessoal, quando percebem, intuem até, o sentido que os elementos da festa têm. O encontro dessas crianças com as manifestações é revelador. Iniciam-se em uma nova família e tornam-se adotivos de corpo e alma desse coletivo, onde o vínculo é a alegria, os símbolos, a espiritualidade, o corpo, a música. Uma vez dentro de um grupo, há espaços para encontrar o que dá sentido a sua existência, já que fora dela, muitas vezes, sentem-se órfãos de sentidos.
Tem um menino no Nego Fugido que nos marcou muito. Ele tinha uns 6 anos de idade na época em que filmamos, e era um novo membro do grupo. Ele já tinha vários amigos que faziam parte e, portanto, sentia-se confortável entre eles. Mas foi fascinante presenciar como ele tateava, experimentava tudo o que há de caótico dessa festa e como usufruía dessas emoções. Em um período de 15 minutos dava para vê-lo oscilar entre tantos sentimentos. É uma festa que não tem ensaio, aprende-se fazendo, e tudo para ele era novo. Esforçava-se muito para coordenar e processar os passos da dança, os momentos dramáticos das cenas, o cuspir sangue falso e tremer no chão. Cada momento uma descoberta. Mas, quando parecia confiante, com o corpo finalmente relaxado para fluir, passava um “caçador” com sua saia de bananeira imensa – quase o derrubando. Seu olhar era como o de uma presa em estado de alerta ao predador. Dava para ver o fluxo entre o pânico e a entrega total. Depois de três anos voltamos para apresentar a essa comunidade os nossos materiais editados. Lá estava ele, com seu corpo claramente mais tranquilo, cantando e dançando – dono de si. A benção da repetição anual do ritual tinha formado mais um, ele agora estava totalmente conectado à essência do grupo.
Ao contar uma história, deixamos de contar muitas outras… Quais outras histórias que não foram contadas em “Terreiros do Brincar”?
Renata Meirelles – Sabemos que um filme é um recorte sobre um tema e há sempre escolhas difíceis de fazer. As histórias de vida das pessoas retratadas nesse filme é algo que ficará dentro de nós, mas fora do filme. Conhecemos muitas pessoas que se nutrem de suas raízes, de suas tradições e usufruem de uma estética riquíssima e bastante diversa, mas pouco valorizada no mundo moderno. Todo conhecimento vivido por essas pessoas é pouco aparente, é uma camada submersa em subjetividades, símbolos, ancestralidade, mas, segundo Agostinho da Silva, estamos atualmente empenhados em “usar o conhecimento como poder” e, assim, viramos as costas para essas pessoas, suas histórias e suas raízes que falam tanto sobre todos nós.
Outro aspecto não contado no filme, mas conversado longamente com um estudioso do assunto, o Roberto Pinho, é reconhecer e apresentar a origem histórica dessas manifestações, para conseguirmos, aos poucos, alcançar o saber primordial vivido dentro delas. Esses grupos estão a duras penas mantendo vivas essas festas, através dessa força extraordinária que vem de dentro da comunidade e de suas tradições. Essa luta alegre, trabalhosa e persistente de manutenção histórica, porém, sempre se atualizando no contexto de hoje, isso não foi possível incluir nesse filme.
O foco desse filme são as crianças e o brincar dentro dessas manifestações populares, esse é o nosso recorte. Todo o registro que fizemos de cada grupo retornou como material bruto e editado para eles, e sempre que foi possível fizemos essa entrega pessoalmente, em gratidão e respeito pela continuidade dos vínculos que criamos. Era fundamental para nós que pudessem receber de volta o material audiovisual produzido pelo “Território do Brincar”, para contribuir nessa manutenção de suas histórias e tradições.
Em termos de narrativa, qual foi a ideia de tessitura do filme? Qual a razão para o encadeamento das festas tal qual tecido?
Renata Meirelles – O filme tem duas camadas narrativas: o arco-dramático do ciclo da própria festa (da preparação ao fim da festa) e a costura dos depoimentos que ampliam nosso olhar para o que habita essas manifestações, mas não se revela de imediato nas imagens.
Esteticamente, escolhemos incluir longas sequências com cenas das festas sem falas em “off”, para convidar o espectador a entrar nos diferentes espíritos de celebração, que são bastante diversos. O Nego Fugido, por exemplo, carrega uma densidade intensa, caótica, já a Festa do Divino é pura elevação, sublimação do tempo e do espaço. Assim, reunir ambas energias em uma linha narrativa de um filme é um grande desafio.
Começar o filme com o Bumba meu Boi situa o espectador no espírito de celebração, cor e ritmo que essa manifestação oferece. Abre a porta para entrar na festa! Seus ciclos são muito bem definidos, começa no nascimento e vai até a morte e precisávamos dessa estrutura para adentrar no filme.
Mergulhar no estranhamento imagético do Nego Fugido chega a ser perturbador para alguns, desloca de um lugar conhecido, confortável e revela obscuridades que são importantes. Carrega dores do passado e do presente vividas na brincadeira coletiva, festiva e coloca a criança como representante dessa transcendência.
A Festa do Divino é uma festa que eleva a alma em uma vibração de esperança, um apontamento para o futuro. Por que coroam crianças? A Péo, em sua entrevista, diz lindamente que a criança é esse ser que traz a pureza, a inocência e a imaginação. A capacidade de se voltar para o que é imprevisível, o que que ainda vem, aquilo que é desconhecido. Segundo ela, a Festa do Divino é prospectiva, propõe um futuro. Não é uma festa do passado, é uma festa que anuncia o novo. E a criança é justamente o símbolo do novo. Ela é o vir a ser. É aquele ser que traz todas as possibilidades dentro de si, de viver com alegria. É a passagem também, onde ao fim ela entrega a coroa para o próximo. Era preciso terminar o filme com essa característica do vir a ser com a abertura para o imprevisível e toda força do imaginário.
A Folia de Reis, o Reisado, o Batuque, Caretas, as Festas da comunidade indígena Panará e o Samba de Roda intercalam essa trama narrativa e celebram a diversidade, a participação da criança em todas elas, o corpo, o sagrado e costuram o passado, presente e futuro do nosso povo com todas as dores, alegrias e as mazelas de sermos quem somos.
Como o aspecto ritualístico das festas repercutem no corpo e na alma das crianças? Poderia dar exemplos a partir do que viu, ouviu, viveu?
Renata Meirelles – Vale dizer aqui que, durante a montagem do filme, percebemos o quanto as crianças desse filme são também os adultos. Porque quando estão dançando, cantando e celebrando eles vivem a essência das crianças. Essa dimensão surge no lúdico. A criança está presente nos adultos, ele sai do contexto cotidiano e vira criança. É uma manifestação da criança também nos adultos. Esse pode ser considerado um aspecto ritualístico importante que repercute em quem participa dessas festas. É viver os ciclos da vida, todos unidos em uma celebração.
Sempre me encanto pela motivação intrínseca que vivem essas pessoas em estado de doação física, espiritual e até financeira. Passam meses em preparos intensos, gastam um dinheiro que não têm para que a festa esteja à altura do que é preciso celebrar, e isso sem o desejo de mostrar para plateias, mas para viverem o terreiro, esse chão de terra circular que carrega a intimidade do coletivo. Uma inspiração profunda para quem se sente desgarrado do tempo, do grupo e das tradições. E a criança lê isso com toda verdade que essas características têm. É a “verdade verdadeira” instaurada a céu aberto e a criança sente isso.
A possibilidade de viver os ciclos anuais é fundamental também. Todo ano a festa é a mesma, mas a criança, não. Quem muda é a criança e não a festa. Assim, ela pode vivenciar seus diferentes aspectos e emoções. Um exemplo claro disso foi o que vivemos em relação as Caretas e Nego Fugido de Acupe. O fato de estarmos com nossos filhos, e o caçula ter 3 anos na época, nos possibilitou perceber com mais clareza as dimensões do pânico vividas pelas crianças nessas manifestações. Os gritos de um filho, seu corpo tremendo, colado ao meu buscando refúgio para o medo descontrolado, foi uma experiência bem forte para mim. Ali as crianças têm a chance de percorrer, na brincadeira, todas as dimensões do medo. A cada ano esse sentimento se dilui, se ameniza até se transformar em coragem e valentia. Fiquei desejando que meu filho vivesse isso com a intensidade que a festa oferece, mas só seria possível se ele tivesse a chance de participar anualmente dessa festa. Agradeço a oportunidade de ter retornado a Acupe três anos depois e poder verificar o corpo e a alma crescidos do meu caçula.A câmera muitas vezes mostra plena devoção, às vezes cai em festa, mistura-se com os brincantes. Tem hora que é sagrada, às vezes é profana. Quais os desafios de filmar nas comunidades em que festejar é o pleno viver?
Renata Meirelles – O desafio inicial é de pedir licença para filmar, não ser invasivo e, principalmente, não perturbar os brincantes e a energia instaurada ali. Recebida a permissão para adentrar com câmeras, o trabalho duro começa ao sacar a câmera e entrar no espaço sagrado do outro. Claro que a câmera invade, mas captando imagens significativas envolve um equilíbrio de atenção e persistência. É preciso aceitar o primeiro choque, transcendê-lo – respeitando os espaços e criando relações para aquele momento. Eventualmente, os brincantes se acostumam com presença da câmera e não mais a percebem. É neste momento que devemos prestar atenção para os detalhes da entrega de cada integrante. O encantamento pelo tema e o vínculo já está estabelecido com essas pessoas começam a mover olhos e mãos no ato de filmar. A entrega nas imagens tem que ter uma dimensão semelhante ao objeto que se está filmando. Assim, vamos transitando pelos sentimentos, gestos, vigor, delicadeza, vibração do todo e de cada um, tentando compor o que acontece ali.
Texto: Gabriela Romeu
Fotos: David Reeks/Território do Brincar