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Mário de Andrade no Clube do Professor

A Ciranda de Filmes inaugura um ciclo de sessões no Clube do Professor com o intuito de dar continuidade às conversas em torno dos filmes e temas da mostra, pioneira no Brasil na abordagem da infância e educação.

Na primeira sessão deste ciclo, exibiremos o filme “Mário e a Missão”, do diretor Luiz Adriano Daminello, que refaz o trajeto das legendárias expedições comandadas pelo escritor modernista Mário de Andrade para pesquisar manifestações folclóricas e da cultura popular do Brasil. O poeta Mário de Andrade foi homenageado na Ciranda de Filmes 2016, que teve como tema Mestres, referências para um tempo de incertezas.

“Descobrir e registrar as narrativas populares foram uma das grandes missões e contribuições de Mário de Andrade para o Brasil, país que já nasceu ideia de teceduras de culturas, cosmologias e sincretismos. A cultura popular que nasce e se manifesta das ruas e dos terreiros. Mário ocupou-se de coração e alma, toda sua vida, para narrar a poesia das manifestações populares. Narrador digno das narrativas para as quais se dedicou. Um narrador-guardião, aprendiz da alma do povo, cultura que antes do modernismo brasileiro não era reconhecida ou valorizada.” Vanessa Fort para a Ciranda de Filmes

Logo após o filme houve um bate papo com o cineasta, documentarista e diretor de fotografia Luiz Adriano Daminello, que atualmente é professor de fotografia da Universidade Federal do Pará e realiza suas pesquisas cinematográficas pelas comunidades que habitam a margem do Rio Amazonas, e com o pianista, percussionista e etnomusicólogo Paulo Dias. Paulo é fundador e diretor da Associação Cultural Cachuera! e um grande pesquisador da cultura popular tradicional e da música de raiz brasileira e de suas comunidades produtoras.

Sinopse:
“Mário e a Missão” é um longa-metragem derivado da série com mesmo nome. Mostra as pesquisas sobre as manifestações folclóricas realizadas pelo escritor modernista Mário de Andrade, desde sua lendária viagem pelo rio Amazonas indo de Belém a Iquitos no Peru, sua Viagem Etnográfica pelo Nordeste, até a Missão de Pesquisas Folclóricas comandada por ele em 1938. O documentário apresenta um extenso material de arquivo e refaz o trajeto das expedições, registrando na atualidade os mestres das mesmas manifestações estudadas por Mário de Andrade.

Direção: Luiz Adriano Daminello

Roteiro: Luiz Adriano Daminello, Ligia Schiavon Duarte, Simone Azevedo, Maristela Tredice, Decio Filho

Fotografia: Luiz Adriano Daminello, Marcelo Sponberg, Marcio Langiani

Montagem: Luiz Adriano Daminello, Lídia Chaib, Osmar Jorge Bush, Marcelo Ruggiero, Ligia Schiavon Duarte, Cristina Amaral

Produção Executiva: Jorge Palmari

Som: Márcio de Oliveira, Durval Leal Filho, Armando Onofri

Elenco: Paschoal da Consceição, Marcos Azevedo, Andre Boll, Chico Carvalho, Fernando Alves Pinto, Silvio Restiffe, José Rubens Chachá, Natalia Barros

Produção: Luiz Adriano Daminello

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Olhares Olhares 2016

O voo da infância no cinema

“Quando saio com ele, alguém diz:
‘É Billy Casper e seu falcão de estimação’.
Eu fico doido. Ele não é um bicho de estimação.
Ou quando vem alguém é pergunta: “É domesticado?”
Falcões não podem ser domesticados.
Eles são ferozes e selvagens.”

Cabelos desgrenhados, fala por vezes sussurrada e olhar perdido no horizonte, Billy Casper é um menino franzino, amiudado por um entorno hostil, tanto em casa como na escola, um “verdadeiro inferno”. Num intenso desejo de se libertar de sua condição carcerária, mira da janela da sala de aula os rasantes dos pássaros no céu. Até que certo dia captura um filhote de falcão, que é alimentado e treinado com afinco pelo menino, que projeta no voo da ave o voo da própria infância.

É a arte do visível, o cinema, que nos introduz no mundo invisível de Billy Casper, protagonista de “Kes” (1969), filme de Ken Loach, que traz uma representação metafórica da infância que se rebela da domesticação empreendida pelo mundo adulto. “Falcões não podem ser domesticados”, nos alerta o menino inglês, em meio a uma paisagem insistentemente cinzenta.

Esse universo-menino vulnerável é desvelado pelo cineasta britânico por meio de gestos, olhares e silêncios (nada esvaziados de dizeres, falares ou pensares). O filme nos coloca cara a cara com um “comportamento de infância, seu movimento, sua corporalidade, sua gestualidade”, segundo o educador e filósofo Jorge Larossa. É que o cinema é a verdadeira “escritura do gesto”, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben.

Essa ânsia por liberdade é tema recorrente nos filmes que retratam a infância ou o universo infantil. Assim, Billy Casper vem de uma linhagem de meninos que desejam romper com uma infância carcerária, ou as masmorras do mundo adulto. São meninos como o emblemático Antoine Doinel, de “Os Incompreendidos” (1959), obra de François Truffaut, cineasta para quem “nada é pequeno no que se refere à infância”.

Sim, o cinema tem muito a nos contar sobre a infância, a criança e o universo infantil em diferentes épocas, nacionalidades e culturas, com temas, perspectivas e concepções diferentes. São muitos os filmes que revelam o olhar genuíno das crianças e sua persistência poética diante da aridez do mundo, além de situações de vulnerabilidade, como abandono e violência.

Desde os primórdios do cinema, as crianças sempre estiveram presentes na telona. O menininho órfão de “O Garoto” (1921) e o bebê abandonado no carrinho que desce a escadaria em “O Encouraçado Potemkin” (1925) são só alguns exemplos da presença infantil nas narrativas cinematográficas das primeiras décadas do século 20.

Ao longos dos tempos, as crianças foram ganhando espaço e protagonizando suas histórias. Ainda assim, vemos muitos filmes em que meninos e meninas protagonistas figuram mais como uma “paisagem de infância”. Daria para dizer que estão tão grandes na telona quanto distantes da essência infantil.

São muitos os cineastas que nos levaram ao universo da infância pelas aventuras e desventuras de pequenos protagonistas – Carlos Saura, Abbas Kiarostami, François Truffaut, Louis Malle, Theodoros Angelopoulos, Roberto Rossellini, Walter Salles, Guillermo Del Toro, Ingmar Bergman, Wes Anderson e tantos outros. Ou, como diria Andrei Tarkovski, diretor dos clássicos “A Infância de Ivan” (1962) e “O Espelho” (1975), não é exatamente um retorno “ao território perdido da infância”, pois “talvez nunca tenhamos saído dele”.

Retorno ou não ao “território perdido da infância”, o cinema estabelece pontes entre o universo adulto e o mundo da criança. É a arte que nos desafia a ver o quanto nos distanciamos desse outro que também já fomos. Lança um olhar atento para a criança, que também nos olha. Para o crítico André Bazin, o olhar da criança “nos enfrenta (…), nos interroga, nos interpela, pede resposta muitas vezes”. E diz isso muitas vezes entre silêncios.

Segundo Sonia Krammer, no prefácio do livro “A Infância Vai ao Cinema”, encontramos na telona “ora um outro modo de conhecer as crianças, ora a expressão do mundo da maneira como as crianças veem, escutam e experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a subvertê-lo”.

Subverter o mundo. Eis uma das imagens mais fortes da infância no cinema. Um filme que bem ilustra tal questão é “Zero de Conduta” (1933), uma poesia selvagem do cineasta francês Jean Vigo que virou maldito e ficou proibido de ser exibida na França até 1946. Emblemático, o filme é considerado uma das poucas obras com olhar realmente subversivo para a infância; dificilmente seria feito nos dias de hoje. E tem as cenas de mais pura poesia subversiva da infância.

O filme traz um grupo de quatro meninos – Caussat, Bruel, Colin e Tabard, alter ego de Vigo – que se rebela contra o sistema repressivo e as rígidas regras de um colégio interno francês em um dia festivo. Numa atmosfera surreal, os meninos são bem sucedidos na rebelião e triunfam no telhado, numa cena que parece que vão alçar voo. O mesmo voo que representa a ânsia de de liberdade de Billy Casper, protagonista de “Kes”.

Que o cinema continue nos “emprestando” os olhos das crianças para que a gente possa enxergar melhor o mundo – e, claro, a subvertê-lo.

Texto: Gabriela Romeu, que, em parceria com Adriana Costa, desenvolveu a oficina Imagenário da Infância, que estreou na Ciranda de Filmes, em 2016, e segue circulando com outras discussões sobre cinema e infância. Nas imagens abaixo, um registro do encontro.
 
 
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Representações infantis nas artes

Rio de Janeiro, século 18. Entre a população escrava que crescia com os navios negreiros que incessantemente cruzavam o Atlântico, as crianças representavam dois entre cada dez cativos. Algumas eram doadas ao nascer; outras, já no fim da infância, vendidas. Com altíssima taxa de mortalidade infantil, a maioria morria antes de completar cinco anos de idade. E aquelas que persistiam enfrentavam a orfandade.

Se em muitos estudos as crianças são números, ainda que contextualizados, na exposição “Histórias da Infância”, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), meninos e meninas ganham corpo, cara e também voz, em diferentes tempos e espaços. Numa incursão por muitas infâncias – a das crianças do período Colonial, de povos indígenas, dos faróis das cidades grandes –, a exposição constrói uma ideia de infância por meio da arte e mostra como as crianças foram representadas ao longo de séculos.

Assim como Philippe Ariès, pesquisador francês que fez uma radiografia da infância a partir da Idade Média a partir das imagens (ou falta delas) representadas na arte pictórica, a exposição leva o espectador a tecer ideias de infância por meio das 200 obras expostas, organizadas por sete eixos temáticos – maternidade, escola, família, brincadeiras e morte, por exemplo – e dispostas na altura do olhar das crianças visitantes, estabelecendo um diálogo entre infâncias.

Fotografias, pinturas, vídeos e esculturas de artistas diversos como Renoir, Van Gogh e Portinari são misturadas a desenhos feitos pelas crianças, “desrespeitando hierarquias e territórios”, como bem define um dos textos curatoriais. Tal postura rapidamente nos remete a uma lúcida provocação do modernista Mario de Andrade, que não só colecionou desenhos infantis, como fez importantes leituras a partir dessas criações: “Primeiro: nós não damos importância ao que o menino faz. Acha-se graça e apenas. Segundo: damos importância por demais ao que os gênios catalogados fazem. Acha-se importante e guarda-se.”

A ideia de infância é uma construção social e varia conforme a época e a sociedade. Segundo Ariès, até o século XII, a arte medieval desconhecia a infância. Homens miniaturizados, sem nenhum traço de infância, muitas vezes faziam as vezes das crianças nas obras, num tempo em que nasciam e morriam, “não sem tristeza, mas sem desespero”, como escreveu décadas depois o humanista Montaigne (1533-1592). A ordem, definiu o filósofo, era “não reconhecer nas crianças nem movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo”.

Só lá pelo século XIII é que surgem representações de crianças um pouco mais próximas do sentimento moderno. Como a teologia acompanhará a representação da infância por muito tempo, um dos modelos mais recorrentes na arte pictórica é o do Menino Jesus, “ancestral de todas as crianças pequenas na história da arte”. Vestido com camisolas ou enrolado em cueiros, tal representação ganha também destaque na exposição.

Ali, entre as imagens que tratam dos temas natividade e maternidade, estão também fotografias que trazem as amas de leite negras com crianças brancas no colo, “uma face supostamente romântica das escravidão”, da “mãe negra dadivosa”. São retratos anônimos, pouco sabemos quem são essas mulheres que cuidam de pequenos senhores cujas identidades são geralmente reveladas.

Ao adentrar a exposição, a contraposição de obras provoca o olhar do espectador. Assim, uma pintura de duas meninas brancas, bochechas rosadas e vestidos de babados está disposta ao lado de uma fotografia de dois meninos negros, descalços e trajando sungas num piscinão.

Com gritante distância social entre as crianças retratadas, a primeira imagem é “Rosa e Azul”, as irmãs Alice e Elizabeth, filhas do banqueiro Cahen d’Anvers, representadas com doçura na pintura de Renoir. Já a fotografia (Sem Título, da série Brasília Teimosa), com os dois meninos de olhares convincentes, é de Bárbara Wagner. Apartadas de modo temporal, as duas imagens têm muito a revelar sobre o exercício de ser criança.

Percorremos a infância do nascimento à morte, tema que traz a emblemática obra “Criança Morta” (1944), de Cândido Portinari, além de “O Enterro”, de Jose Pancetti, e “Cemitério Caiçara” (1989), do fotógrafo Araquém Alcântara. Mais uma vez dialogando com o viés histórico da obra de Ariès, representações de crianças mortas, em retratos colocados em túmulos, começam a surgir por volta do século XVI. É um marco na história dos sentimentos relacionados à infância, cujos altos índices de mortalidade banalizavam sua (in)existência por muito tempo.

A partir do século XVII, as crianças passam a ser retratadas sozinhas, como na obra “Retrato de John Walter [ou Wharton] Tempest” (1779-80), de George Romney, que traz um menino-cavaleiro com vestes nobres. Ao seu lado, um outro menino, de um outro tempo, uma outra infância: a fotografia de “Vendedor de Amendoim” (1990), de Luiz Braga. São muitos os retratos que nos revelam as crianças em poses que encaram o espectador, às vezes de forma mais pueris, às vezes mais inquisidoras.

No eixo educação da exposição, ganha destaque a obra “O Escolar” (1888), de Van Gogh, mas nosso olhar é facilmente atraído para uma fotografia em preto e branco que tem um menino de calças curtas de castigo, virado para um canto da sala de aula. A escola nasce com o surgimento da infância, e a representação do espaço escolar como lugar das regras e das punições se contrapõem aos momentos livres, de brincar, nos espaços públicos.

Crianças indígenas, com corpos nus pintados, sendo “educadas” (“domesticadas”?) na mesma ideia de escola, com carteiras, cadernos e lápis, parecem pouco se encaixar ao sistema na fotografia “Escola Kayapó” (1991), de Milton Guran.

As crianças nos fitam. Estão na série “Crianças de Açúcar”, de Vik Muniz, feitas com filhos de trabalhadores das plantações de cana do Caribe; na onírica “Menino-anjo” (1963), de Maurren Bisilliat; num retrato anônimo de Dom Pedro II, imobilizado pelas vestes nada apropriadas para seu corpo de menino.

Numa das paredes da exposição, entre obras de dimensões agigantadas e entre uma diversidade de olhares para a infância, uma caixinha de Rochelle Costi, “Intimidades – A Vesga Sou Eu” (1984), pode passar despercebida. Mas ela sintetiza de forma poética e metafórica esse tempo-menino de muitas representações. É um inventário de pequenos restos e nadas – botões, fotografias, fitas de cetim – da infância.

Texto: Gabriela Romeu

 
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Olhares Olhares 2015

Na natureza da infância

Entre a natureza lá fora e a natureza da infância, há o desenvolvimento dos sentidos, da sensibilidade, dos significados e da relação com o mundo, com a vida e com as subjetividades infantis. A Roda de conversa Criança na natureza construiu conexões profundas entre todas essas dimensões, proporcionando um forte e emocionante encontro entre o Gandhy Piorski, Rita Mendonça e o Dr. Ricardo Ghelman.

 

Em um mundo organizado pelos adultos, com toda sua funcionalidade e estrutura social, existe a necessidade de criar espaços que proporcionem o desenvolvimento da potência da natureza infantil; espaços que proporcionem o desenvolvimento desses agentes da natureza humana em sua potência, as crianças.

 

Quais são os diferentes olhares sobre a natureza? Por que é importante o contato com a natureza? Por que esse contato é fundamental para o desenvolvimento das crianças? O quê nos faz humanos?

 

Hoje em dia, o nosso contexto se tornou urbanizado, industrializado e distante da natureza. Como podemos nos aproximar novamente dela e de nossa necessidade de conexão? “A humanidade tem que encontrar sua plenitude no jogo e no contato com a natureza”, disse Rita Mendonça.

 

Os três convidados se aprofundaram em vários filmes como “Mutum”“Feral” e, especialmente, o quase unânime “Indomável Sonhadora”, filme preenchido de representações mitológicas e dimensões sensíveis e profundas. Poderíamos dizer que Hushpuppy, a pequena protagonista do filme, foi também protagonista da conversa. Gandhy e Ricardo fizeram juntos, cada um a seu modo, uma análise do filme. Cumprindo um papel de Criança Divina, a pequena Hushpuppy percorre seu caminho de interiorização rodeado de uma natureza adversa que apresenta seus recursos para construção de sua autonomia e sobrevivência.

 

A nossa idealização de vida e dos recursos para o desenvolvimento infantil pode estar nos mantendo longe da diversidade das infâncias? Não seria a diversidade que nos mantêm nas realidades que são muitas? Como criar uma conexão mais profunda com isso para ficarmos atentos a essa possível idealização que normatiza o entendimento dessas distintas realidades?

 

A natureza somos nós e, portanto, como ela tem história, tem diversidade. No estudo das mitologias são mitos e as histórias que “não são apenas cantadas, como uma espécie de música, mas vividas. Para um povo, são suporte, sua forma de expressão, de pensamento e de vida”  (Criança Divina – uma introdução à essência da mitologia). As histórias que expressam algo mais universal, algo da substância do mundo do ser humano. Por isso que essas Roda de Conversa acolhida no universo da Ciranda, repleto de personagens e suas histórias, pareceu fazer ainda mais sentido.

Roda de conversa: Criança na natureza (2015)

Com Rita Mendonça, Gandhy Piorski e Dr. Ricardo Ghelman

Moderação: Fernanda Heinz

Texto: Vanessa Fort

Fotos: Aline Arruda/Ciranda de Filmes

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Olhares Olhares 2016

De quem é o coração que ouvimos bater?

“Caverna dos sonhos esquecidos”, do mestre Werner Herzog, é um diálogo sobre nossas poéticas: a matéria e a sensibilidade de que somos feitos, as imagens que pulsam a nossa mitologia, as traduções do tempo que ligam obras da natureza e do homem, a partir da compreensão do tempo como algo irreversível, impreciso e misterioso. 

No Sul da França foi encontrado um dos mais importantes sítios de arte pré-histórica do mundo, a Caverna de Chauvet. Um pequeno grupo formado por arqueólogos, pesquisadores e artistas adentrou a esse lugar para investigação de pinturas rupestres, até então intocáveis. Herzog acompanhou e compôs um olhar e uma conversa surpreendentes com os pesquisadores. Coisa que apenas mestres do documentário sabem fazer e provocar.

“Silêncio! Por favor, vamos ouvir! Se ficarmos em silêncio podemos escutar a batida do coração”, um dos pesquisadores chamou atenção. Herzog complementa, como mestre das narrativas que provocam: “essa batida de coração será deles (eles todos que viveram ou passaram por essa caverna em 30.000 anos), ou de nosso coração?” Qual a precisão dessa batida? A aura incrível desse caverna que guarda mistérios da história da humanidade em seu útero, se encontra facilmente ligada a uma peça de Wagner e a uma pintura romântica alemã. Como essas coisas se conectam como parte uma da outra? Como uma apoia a apreciação e o transbordamento da outra?

As nossas formas de narrar o tempo não dão conta desse lugar. Os arqueólogos criam hipóteses sobre um conjunto de desenhos em uma mesma parede. Eles podem ter sido feitos, cada uma deles, com milhares de anos de diferença. Um abismo no tempo. É como se seu bisavô tivesse feito um desenho há muitos anos atrás e você estivesse finalizado o mesmo nos dias atuais, em um lugar que lhes é comum. A nossa ancestralidade presente simultaneamente em todos os tempos. 

Uma das investigações mais impactantes foi de uma pegada de uma criança de 8 anos que está próxima à pegada de um lobo. Os estudiosos detectam as duas espécies, a idade, não há informações precisas, mas algumas suposições: era uma criança que fugia do lobo? Eles caminhavam juntos, eram amigos? Viveram no mesmo período? Fotografias de vidas sobrepostas que pairam por esse lugar.

O que nos é comum, em todos os tempos, é nossa capacidade de adaptação, comunicação e registro; recursos de nossa humanidade que nos apoiam em nossa necessidade de evocação dos mistérios e de transmissão do nosso olhar perante o mundo. 

Saiba mais sobre o filme aqui

Texto: Vanessa Fort 

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Olhares Olhares 2016

O movimento dos sonhos na realidade

No tempo de incertezas, o movimento foi celebrado na Ciranda como mestre de poesia, de criação e de intervenção do mundo. Poesia que compõe a vida em uma coreografia entre sonhos e realidade.

O filme “Billy Elliot”, do diretor Stephen Daldry, narra a história de Billy, um garoto apaixonado por dança e que nasceu bailarino. De família conservadora, o menino perdeu a mãe muito cedo e se vê em meio a preconceitos do pai, irmão, e de toda comunidade. Sem nenhuma outra opção a não ser o que se é, Billy se esforça para aprender os passos da coreografia da sua própria vida. 

“Sonhos em movimento – nos passos de Pina Baush”  é um documentário que mostra a reunião de adolescentes em torno da mestre-precursora da dança-teatro. Os diretores Anne Linsel e Rainer Hoffmann mostram a experiência de aprender e ensaiar o célebre Kontkthof, anteriormente dançada por profissionais e por idosos. Como os bastidores da vida de Billy, vemos os bastidores da montagem do espetáculo e a condução generosa de Pina Baush.

Pina Baush explicou que sua vontade em montar várias vezes a mesma coreografia com grupos diferentes tem a ver com seu desejo de estar com o outro. Com os adolescentes isso passou a ser um rito de iniciação na poesia de ser o que se é em companhia do outro, a partir da intensa obra de Baush.

Billy e os jovens de Sonhos em movimento incorporam seus sonhos e sua própria vida diante dos nossos olhos. 

Para saber mais sobre “Billy Elliot”, clique aqui.

Para saber mais sobre “Sonhos em movimento – Nos passos de Pina Baush”, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Sobre memória, imaginação e amizade

“Cinema Paradiso” é um clássico, uma ode ao cinema e ao sonho. Entre memórias e a imaginação compartilhadas por toda uma cidade, vemos a construção de uma profunda amizade junto à composição de lindas sequências famosas do cinema. A amizade inspirando a vida, assim como o cinema inspira também.

O filme de Giuseppe Tornatore nos mostra a narrativa de vida do pequeno Totó. Tudo começa com ele já adulto, Salvatore, revisitando a memória de sua infância mesclada às imagens da tela grande. Lugar do sonho, Totó aprendeu sobre si na sala escura, viveu a vida dos personagens (enquanto criava a sua própria), se emocionou com eles e com seu amigo Alfredo, maestro das imagens, do mistério da projeção de histórias que saem da boca do leão.

Com toda poética do cinematográfica, vemos a passagem do tempo, o amadurecimento e a sensibilidade do protagonista sempre fortalecidos por Alfredo e pelo cinema. Quando Salvatore volta à sua cidade, sabendo da morte do seu amigo, ele faz uma visita a alguns lugares, entre eles o seu quarto de criança. Nesse momento, suas memórias transbordam como nossas nessa linda narrativa de vida que acompanhamos durante 2 horas.

Em sua sensibilidade, Alfredo deixa um presente à Salvatore: todos os beijos de diversos filmes que foram censurados na sala do Cinema Paradiso. Como os bons amigos fazem, ele o inspira a viver o que lhe falta. É como devolver à vida as cenas que não aconteceram. O filme acaba mas não a vida (nem a amizade que segue ecoando para sempre).

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Último dia das rodas

O tom comum da terceira e última Roda de Conversa foi a integralidade, a importância do entendimento e valorização do todo. Com o tema “Maestria do Chão”, recebeu o coletivo Contrafilé (com as presenças de Cibele Lucena e Joana Zatz), a arquiteta e urbanista Beatriz Goulart e a bióloga e permacultora Mônica Passarinho Mesquita. Assim como aconteceu nas conversas anteriores, as convidadas rememoraram parte de suas infâncias.

Joana coloca que “território urbano não é físico, acontece em várias escalas”. Com esse pontapé a conversa discorreu sobre o uso dos diversos espaços – da maneira como foram construídos, o que trouxeram de simbólico em suas estruturas, o uso e a percepções que temos deles.

Beatriz Goulart, especialista em projetos que integram cada vez mais as escolas e outros lugares de educação, dá concretude à fala: para ela, o modelo arquitetônico das escolas é completamente segregador, serve para separar, apartar, vigiar e punir. Como se a vida e a cultura ficassem do lado de fora. “A compreensão de uma unidade foi perdida. A gente desenvolveu poros, olhos e ouvidos para as partes”, defende.

Mônica, atualmente à frente do Instituto Toca, fala com orgulho do processo integral que promovem e vivem na prática com crianças pequenas. E destaca a alimentação como um momento e instrumento de proximidade, convívio e entendimento de ciclos e processos da natureza. Novamente, a noção de que integramos um coletivo, de que as coisas estão interligadas. Lá, as crianças plantam, colhem, preparam, cozinham e comem. E até mesmo o banheiro foi construído conjuntamente – e integrando o ciclo completo do alimento, até virar adubo.

A finalização dessa roda aconteceu uma frase de Fritjof Capra: “Uma comunidade humana sustentavel interage com outras comunidades – humanas e não humanas”.

Texto: Regina Cintra
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Roda de conversa: Mestre do Intangível

A segunda Roda de Conversa da Ciranda de Filmes reuniu nessa tarde, no Cinesesc, a coreógrafa e bailarina Georgia Lengos, a educadora musical Teca Alencar Brito e o fotógrafo e pedagogo Claudio Feijó. A mediação ficou por conta da jornalista especializada em infância Gabriela Romeu.

Todos eles abriram suas falas contando sobre suas infâncias, memórias e a relação que tiveram, desde cedo, com o corpo, movimento e som. Georgia, que tem a figura de seu pai dançando em cima da mesa como uma forte lembrança, fala e enaltece a importância da nossa relação com o próprio corpo. Para a coreógrafa, o movimento é algo intrínseco ao animal e ao ser humano: “desde a concepção, tudo é movimento”. Não por acaso, seu caminho foi a dança que, ainda segundo sua leitura, reúne corpo, movimento, espaço e o tempo. Os mesmos elementos que, somados, constituem a essência da brincadeira.

E a brincadeira tem ainda a imprevisibilidade, a surpresa, um caminho inicialmente traçado e pouco depois, desviado. Aspecto comum também às manifestações culturais – sejam elas quais forem. A cultura como mestre foi norte dessa conversa. Ela que se relaciona de forma integral com o sensível, apresenta novos horizontes e realidades, questiona certezas e alimenta a alma. Na conversa falou-se de música, dança, olhar, da escola como um ambiente muitas vezes não estimulante ao que foge do padrão já consagrado de conhecimento.

Teca acredita que “a criança mergulha no sonoro, ela inventa, se reinventa” e, a partir dos quatro anos, sua habilidade e capacidade nata de criação passam a ser menos estimuladas e valorizadas. Não coincidentemente, estamos aqui no período do início da escolarização. A educadora musical apresenta, então, uma gravação feita por alguns de seus alunos que tiveram liberdade na narrativa, instrumentos e tempos utilizados. Possibilidades que enriquecem o jogo da cultura, a brincadeira, aumentam o repertório, lidam com o diferente, respeitam as novidades.

Em sua fala de abertura, Teca contou que começou as aulas de piano aos 5 anos; que seu avô tocava violão e os dois juntos “eram um todo”. Também desde cedo ficou intrigada com a obrigatoriedade de ir às aulas, de seguir o método formal. Sabiamente, sempre ouviu também o entorno, o informal. E defende: “a gente tem que transformar essa ideia de quem é o professor, o educador”.

Claudio Feijó, fotógrafo e que vem ministrando oficinas de “descondicionamento do olhar” ao redor do país, diz que um mestre muito importante – e desconsiderado – é a ignorância. E conta que seus pais “não esperavam nada” dele e, por isso, pôde ir “para todos os lados”. Sua fala tem início de uma maneira inusitada: diferentemente das outras convidadas da roda, Feijó contou seu relato sentado numa cadeira da platéia, entre o público. Para ele, os hábitos e a repetição provocam expectativas limitantes. O nosso olhar sobre nós mesmos, o que os outros têm sobre nós e o que temos do mundo se somam e criam um universo de diferentes interpretações e camadas.

Texto: Regina Cintra

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Homenagem ao Mário de Andrade


“Mário e a Missão”, filme de Luiz Adriano Daminello, é um documentário repleto de material de arquivo e entrevistas. E música, dança e falas de mestres populares em seus territórios: jongo, coco, cavalo marinho, tambor de crioula, batuque. E quem comanda essa pesquisa pelas danças folclóricas e cultura popular é Mario de Andrade. Através da curiosidade e vasta pesquisa feita pelo escritor modernista, décadas atrás, chegamos na essência de muitas dessas manifestações.

O documentário reconta, por exemplo, a lendária viagem feita por Andrade pelo rio Amazonas, indo de Belém a Iquitos, no Peru, além de sua viagem etnográfica pelo Nordeste. Há sons e imagens captadas nos anos 20 e 30, por exemplo, e há conversas com quem vive e lida com cultura popular na ponta, no fazer – feitas recentemente.

Logo depois da sessão, no Cinesesc, aconteceu uma conversa aberta ao público. E, ao lado do diretor, ninguém melhor que o músico, compositor e bailarino Antonio Nóbrega, artista plural que une, como poucos, a tradição, o popular e o erudito. O pernambucano começa sua fala contextualizando a origem da cultura popular: a mistura, as referências múltiplas, as memórias, narrativas e vivências do povo indígena negro e português. A formação do Brasil em suas diversas camadas. “É esse o caldo étnico cultural que, ao longo dos anos, vai criar esse majestoso universo, que acabamos de ver”.

Infelizmente, para ele “o Brasil não legitimou a sua cultura popular” e provoca sobre a sua importância, já que ela não está impregnada nos nossos hábitos culturais: serviria para alguma coisa que não a pesquisa? Para ele, há duas linhas culturais que correm quase que paralelamente e, em poucos momentos, se encontram. Cita Heitor Villa-Lobos e Guimarães Rosa como referências desses pontos de intersecção.

Daminello completa que o “para turista ver” também acabou por empobrecer diversas manifestações, inclusive no tempo de suas execuções. A partir daí, os governos bancam também com esse propósito: pouco tempo e um pouco de tudo, o que interfere radicalmente nas essências daquelas danças.

Terminando a conversa, Nóbrega se apresentou rapidamente ao público, com sua voz e violão.

Texto: Regina Cintra