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Olhares Olhares 2017

O fio invisível que religa os homens

Os irmãos Daud e Aishah caminham pelas ruas do Brooklyn, Nova York. Ele, um garoto de 11 anos; ela, uma jovem que acaba de passar na faculdade. Ele veste o “thoubh”, traje longo e branco que o difere dos outros meninos não muçulmanos da rua; ela, o “hiyab”, que cobre a sua cabeça, deixando o rosto à mostra. Ao lado, um parque. Adolescentes jogam bola, que escapa e ultrapassa a grade que separa os dois ambientes, caindo ao lado do menino. Ele a devolve. É recompensado com insultos. “Isso é América!”, chega a gritar uma menina, gargalhando. Os irmãos, abraçados, saem apressados.

A cena é parte do longa-metragem “David”, ficção com não atores dirigido pelo americano Joel Fendelman. Dentre os muitos desafios de ser muçulmano na cidade do 11 de Setembro, o diretor optou por uma abordagem outra. Segue por uma trilha permeada de tensões que aos poucos revela aquilo que fortalece as identidades – religiosas ou culturais. Olhar o outro é se ver mais de perto.

O filme marca o encontro entre dois meninos, uma amizade pouco provável, ainda que no contexto multicultural de uma cidade como Nova York. Daud, muçulmano, e Yoav, judeu. Abre os poros das tensões que resistem nas comunidades árabe e judaica de Nova York a partir de um encontro. Acompanhamos a história pelo olhar silencioso de Daud, que parece ilhado por um sentimento de solidão.O menino muçulmano está sempre às voltas com as atividades na mesquita liderada por seu pai, um homem austero que tem que lidar com as questões do tecido da sociedade americana. Aishah, a irmão de Daud, ganha uma bolsa de estudos na Universidade de Stanford, na Califórnia, e tem sua conquista negada pelo pai, que não a quer longe de casa. O embate é entre a tradição e os novos valores por ela incorporados, de que a mulher deve ser livre para estudar e trabalhar. É também entre gerações de uma mesma cultura, que veem o mundo sob diferentes perspectivas. É na relação pai e filha, homem e mulher.

O conflito principal, no entanto, é o do jovem Daud, que, por um engano, acaba adentrando a comunidade judaica. Ele passa a frequentar a escola de Yoav, com quem se vincula, cria uma irmandade que ainda não tinha experimentado. É ali que surge sua identidade dupla, um outro nome: David. Aos 11 anos, o menino passa a ampliar o que entende de si, investigar novos universos a partir do diferente. Das dificuldades surge a oportunidade da descoberta e da jornada pelo autoconhecimento, tão comum nessa fase da vida.

Assim, o cenário que poderia ser a réplica de uma Faixa de Gaza adquire uma atmosfera de aprendizado. O que poderia ser desprezo transforma-se no fascínio de Daud pelo judaísmo, num tom ecumênico. No ritmo pausado em que se desenrola a história, os diálogos acontecem por inteiro, o falar e o escutar.

A tolerância é matéria-prima para a história. Em uma sociedade permeada por diferenças e contradições, encontrar uma maneira de convivência é aquilo que nos faz sobreviver. É, afinal, o que a religião (do latim, religare, unir, ligar) faz: tece o fio que interliga os homens, dá luz à humanidade para suportar a ideia do desconhecido, busca explicar o que permeia o invisível.

Confira vídeo do diretor falando sobre a produção (em inglês).

Texto: Gabriela Romeu e Luísa Cortés

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Olhares Olhares 2017

Trânsitos da infância

Para alcançar sua rota, algumas aves migratórias se orientam durante o dia a partir da topografia de rios, árvores e montanhas e, à noite, seguem extraordinariamente o eixo estelar numa viagem de pouco pouso. As mais jovens, que não têm ainda o senso de orientação tão apurado, perdem-se por vezes do bando. Mas reencontram o rumo e seguem seu destino, que se repete e se renova a cada ciclo.

Essa imagem das aves em migração é a delicada metáfora que o cineasta Olivier Ringer usa para falar dos ritos de passagem na infância. Ou talvez melhor dizendo: sobre os trânsitos na infância. Crescer é mesmo uma longa jornada, cheia de noites de pouca visibilidade em pleno voo, ele nos avisa no longa-metragem de ficção “Os Pássaros Migratórios” (Les oiseaux de passage).

Ele delineia com um leve tom de aventura a história de Cathy, que, em seu aniversário de dez anos, recebe do pai um presente inusitado: um ovo fertilizado. Numa caixinha aquecida, uma incubadora, a menina cuida do ovo e espera ansiosamente o dia da eclosão, pois a ave vai identificar como mãe aquele ou aquela que primeiro mirar seu romper o mundo. Mas é sua amiga Margaux, uma menina cadeirante, quem está lá na hora em que sai da casca. E a história toma outro rumo.O filme traz a saga de crescimento de Margaux, que, com a ajuda de sua fiel amiga Cathy, descobre como ir além dos limites circunscritos por adultos que já deram o veredito de sua condição. Margaux e Cathy, como as jovens aves que se perdem do grupo, têm de encontrar sua verdadeira rota, seguir firmemente seu caminho.

No protagonismo das duas meninas (uma tendo de cuidar da outra, ajudando a amiga a protagonizar), o filme trata do profundo sentido de cuidar, deixar crescer e, principalmente, deixar ser. Cathy, a heroína, assume um certo papel de coadjuvante da história de Margaux. Juntas, vão ter de enfrentar os pais, que antagonizam o belo voo.

Margaux tem pais protetores que subjugam o potencial da filha, que precisa ser cuidada e não pode da ave cuidar. Cathy tem uma mãe que dispensa “coisas sem utilidade” e acha pura bobagem esse presente do pai, seu ex-marido, o único sabedor de que é preciso deixar as duas cumprirem seu percurso e, sozinhas, romper o ovo.

Nesse contexto, exercitam ser “mãe”. A menina que não anda é persistente em ensinar a ave a nadar. Para Cathy, não há caminho (por terra ou por água) que a amiga não possa percorrer naquela relação afetuosa, de pura cumplicidade. “Como seria se fôssemos aves?”, pergunta Margaux. “Seria mais fácil, iríamos pra onde a gente quisesse, quando a gente quisesse”, responde Cathy, uma menina que parece sempre olhar pra dentro. Na água, perto da ilha onde as aves migram, experimentam uma certa liberdade do corpo, numa das cenas de máxima ternura do filme.

Esta é a segunda produção de Olivier Ringer exibida nas edições da Ciranda de Filmes. Em 2016, Na ponta dos pés (A pas de loup; 2012) trouxe a história de uma menina que se sente invisível a seus pais e, para ter certeza, decide desaparecer. No olhar do diretor, a temática parental pela perspectiva infantil rende cenas que nos convocam um profundo pensar. Avoar.

Texto: Gabriela Romeu

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Terreiro, espaço da intimidade

Terreiro é espaço do sagrado, da (con)vivência. É “lugar pra brincar”, “busca do espaço de intimidade”, da tessitura de relações de uma comunidade, todos reunidos num só fazer. É verdadeiro território do brinquedo que transborda as linhas do objeto, transcende, vira folguedo, festa popular.

Como a criança se nutre dessa força que habita os terreiros e seus brinquedos? É uma pergunta que norteia o filme “Terreiros do Brincar”, de David Reeks e Renata Meirelles, com produção da Maria Farinha. Em viagens pelo Brasil durante o projeto Território do Brincar, uma coprodução com o Instituto Alana, o casal de documentaristas vivenciou manifestações populares, como Nego Fugido, Festa do Divino, Bumba Meu Boi e Folia de Reis, em diversas comunidades.

A cultura popular é leite que alimenta a criança, nos diz o músico cearense Alemberg Quindins, uma das vozes que ajudam na tessitura de imagens que evocam os folguedos, da preparação às festas. “As crianças somam ao coletivo e não estão ali para um dia virem a ser um membro participativo, já o são desde que entram para o grupo. Essa maneira de olhar para a criança no presente, considerando todo seu potencial, ao invés de querer suprir o que lhe falta, ou treiná-la para o devir, desperta reflexões e vivências muito importante para nós”, conta Renata, que fez o roteiro em parceria com Soraia Chung Saura.

Nesse percurso, o corpo se fez em festa. “O canto e a dança ficam reverberando e ninguém pode tirar isso de nós. São lembranças de momentos de muita vida. É como se pudéssemos pedir licença para emprestar essa energia e quanto mais você participa, mais ela se torna parte de você. Já éramos encantados com a cultura popular, mas esse intenso contato com tantos grupos mostrou, como diz a Péo, ‘a inteireza da manifestação criadora e criativa’.”

Na entrevista a seguir, é possível desvelar outras imagens por trás das imagens. Como a do Velho Tonho, que lidera um pequeno reisado com brincantes-meninos num vilarejo do litoral do Ceará. Se a entrega é de corpo e alma em dia de folguedo, Velho Tonho vive o resto do tempo a “xingar o vento em um interminável monólogo”, recorda a diretora. Mas, no reisado, em dia de festa, “o Velho e as crianças transcendem o cotidiano e constroem um forte vínculo, um respeito mútuo pelas tradições, pela festa e pela brincadeira”.

Depois das andanças e da montagem de “Terreiros do Brincar”, como definiria que espaço é o terreiro, abordado de várias formas e em diversos momentos no filme?


Renata Meirelles – Entendemos que terreiro é um espaço íntimo, que agrega um coletivo de pessoas que vivem em liberdade. Em alguns cantos do Brasil o terreiro significa quintal, espaço em que acontecem as intensas explorações e descobertas infantis. Nos quintais, vive-se o mistério e o encantamento com a força de transcender o tempo e o espaço. Ali o corpo é meio para se deslocar do concreto e viver o essencial em estado de liberdade. Paulo Dias, entrevistado no filme, nos explica que o terreiro no universo das festas populares é qualquer espaço de intimidade de uma comunidade, principalmente dessas que foram perseguidas ou escravizadas e que precisam dos seus espaços “longe das vistas do controle”. Pode, ou não, ser um espaço religioso, mas o que realmente configura o terreiro é a vivência íntima da comunidade em um local reservado de (para) transcendência. O corpo em movimento canta, dança e brinca em devoção a alguma divindade ou simplesmente na experiência de sentir o corpo (pessoal e comunitário) como o próprio templo. Entendemos que a criança e o adulto vivem o terreiro com essa mesma intimidade coletiva, e foi aí que nasceu o nome do filme.

Poderia contar um pouco suas experiências nas festas, destacar momentos que, como define Péo no filme, mostram “a inteireza da manifestação criadora e criativa”? Depois da vivência das festas, o que ficou impresso no corpo e na alma?


Renata Meirelles – Era um interesse antigo viver festas populares pelos olhares das crianças e do brincar coletivo, portanto, esse tema não poderia ficar de fora do roteiro de viagem do “Território do Brincar”. Ao todo registramos 33 grupos de manifestação popular em 8 Estados brasileiros e percebemos que todos eles incluem a criança em sua força espiritual, corporal e lúdica. As crianças somam ao coletivo e não estão ali para um dia virem a ser um membro participativo, já o são desde que entram para o grupo. Essa maneira de olhar para a criança no presente, considerando todo seu potencial, ao invés de querer suprir o que lhe falta, ou treiná-la para o devir, desperta reflexões e vivências muito importante para nós.

No vilarejo de Tatajuba, no Litoral de Ceará, por exemplo, vimos um reisado liderado pelo Velho Tonho e seu pandeiro solitário. Ele reúne umas 15 crianças, entre 4 e 15 anos de idade, em uma brincadeira de muita inteireza. Ele e seus pequenos brincantes revelam uma entrega de corpo e alma que faz a energia da festa acontecer. No dia a dia, o Velho Tonho carrega questões sociais complicadas, vive sozinho pelas ruas xingando o vento em um interminável monólogo. Mas, no reisado, o Velho e as crianças transcendem o cotidiano e constroem um forte vínculo, um respeito mútuo pelas tradições, pela festa e pela brincadeira. E isso é o que se vê em outros grupos, cada qual com sua intensidade e teores diversos.

Sobre a nossa experiência pessoal, o que fica no corpo é a festa. O canto e a dança ficam reverberando e ninguém pode tirar isso de nós. São lembranças de momentos de muita vida. É como se pudéssemos pedir licença para emprestar essa energia e quanto mais você participa, mais ela se torna parte de você. Já éramos encantados com a cultura popular, mas esse intenso contato com tantos grupos mostrou, como diz a Péo, “a inteireza da manifestação criadora e criativa” e a força que tudo isso tem.

Quais imagens envolvendo as crianças na festa tocaram mais fundo a sua alma? Poderia compartilhar alguns momentos?


Renata Meirelles – Muitas crianças vêm de famílias que fazem parte dessas manifestações há muitas gerações, outras entram nos grupos por motivação pessoal, quando percebem, intuem até, o sentido que os elementos da festa têm. O encontro dessas crianças com as manifestações é revelador. Iniciam-se em uma nova família e tornam-se adotivos de corpo e alma desse coletivo, onde o vínculo é a alegria, os símbolos, a espiritualidade, o corpo, a música. Uma vez dentro de um grupo, há espaços para encontrar o que dá sentido a sua existência, já que fora dela, muitas vezes, sentem-se órfãos de sentidos.

Tem um menino no Nego Fugido que nos marcou muito. Ele tinha uns 6 anos de idade na época em que filmamos, e era um novo membro do grupo. Ele já tinha vários amigos que faziam parte e, portanto, sentia-se confortável entre eles. Mas foi fascinante presenciar como ele tateava, experimentava tudo o que há de  caótico dessa festa e como usufruía dessas emoções. Em um período de 15 minutos dava para vê-lo oscilar entre tantos sentimentos. É uma festa que não tem ensaio, aprende-se fazendo, e tudo para ele era novo. Esforçava-se muito para coordenar e processar os passos da dança, os momentos dramáticos das cenas, o cuspir sangue falso e tremer no chão. Cada momento uma descoberta. Mas, quando parecia confiante, com o corpo finalmente relaxado para fluir, passava um “caçador” com sua saia de bananeira imensa – quase o derrubando. Seu olhar era como o de uma presa em estado de alerta ao predador. Dava para ver o fluxo entre o pânico e a entrega total. Depois de três anos voltamos para apresentar a essa comunidade os nossos materiais editados. Lá estava ele, com seu corpo claramente mais tranquilo, cantando e dançando – dono de si. A benção da repetição anual do ritual tinha formado mais um, ele agora estava totalmente conectado à essência do grupo.

Ao contar uma história, deixamos de contar muitas outras… Quais outras histórias que não foram contadas em “Terreiros do Brincar”?

Renata Meirelles –  Sabemos que um filme é um recorte sobre um tema e há sempre escolhas difíceis de fazer. As histórias de vida das pessoas retratadas nesse filme é algo que ficará dentro de nós, mas fora do filme. Conhecemos muitas pessoas que se nutrem de suas raízes, de suas tradições e usufruem de uma estética riquíssima e bastante diversa, mas pouco valorizada no mundo moderno. Todo conhecimento vivido por essas pessoas é pouco aparente, é uma camada submersa em subjetividades, símbolos, ancestralidade, mas, segundo Agostinho da Silva, estamos atualmente empenhados em “usar o conhecimento como poder” e, assim, viramos as costas para essas pessoas, suas histórias e suas raízes que falam tanto sobre todos nós.

Outro aspecto não contado no filme, mas conversado longamente com um estudioso do assunto, o Roberto Pinho, é reconhecer e apresentar a origem histórica dessas manifestações, para conseguirmos, aos poucos, alcançar o saber primordial vivido dentro delas. Esses grupos estão a duras penas mantendo vivas essas festas, através dessa força extraordinária que vem de dentro da comunidade e de suas tradições. Essa luta alegre, trabalhosa e persistente de manutenção histórica, porém, sempre se atualizando no contexto de hoje, isso não foi possível incluir nesse filme.

O foco desse filme são as crianças e o brincar dentro dessas manifestações populares, esse é o nosso recorte. Todo o registro que fizemos de cada grupo retornou como material bruto e editado para eles, e sempre que foi possível fizemos essa entrega pessoalmente, em gratidão e respeito pela continuidade dos vínculos que criamos. Era fundamental para nós que pudessem receber de volta o material audiovisual produzido pelo “Território do Brincar”, para contribuir nessa manutenção de suas histórias e tradições.

Em termos de narrativa, qual foi a ideia de tessitura do filme? Qual a razão para o encadeamento das festas tal qual tecido?

Renata Meirelles – O filme tem duas camadas narrativas: o arco-dramático do ciclo da própria festa (da preparação ao fim da festa) e a costura dos depoimentos que ampliam nosso olhar para o que habita essas manifestações, mas não se revela de imediato nas imagens.
Esteticamente, escolhemos incluir longas sequências com cenas das festas sem falas em “off”, para convidar o espectador a entrar nos diferentes espíritos de celebração, que são bastante diversos. O Nego Fugido, por exemplo, carrega uma densidade intensa, caótica, já a Festa do Divino é pura elevação, sublimação do tempo e do espaço. Assim, reunir ambas energias em uma linha narrativa de um filme é um grande desafio.

Começar o filme com o Bumba meu Boi situa o espectador no espírito de celebração, cor e ritmo que essa manifestação oferece. Abre a porta para entrar na festa! Seus ciclos são muito bem definidos, começa no nascimento e vai até a morte e precisávamos dessa estrutura para adentrar no filme.

Mergulhar no estranhamento imagético do Nego Fugido chega a ser perturbador para alguns, desloca de um lugar conhecido, confortável e revela obscuridades que são importantes. Carrega dores do passado e do presente vividas na brincadeira coletiva, festiva e coloca a criança como representante dessa transcendência.

A Festa do Divino é uma festa que eleva a alma em uma vibração de esperança, um apontamento para o futuro. Por que coroam crianças? A Péo, em sua entrevista, diz lindamente que a criança é esse ser que traz a pureza, a inocência e a imaginação. A capacidade de se voltar para o que é imprevisível, o que que ainda vem, aquilo que é desconhecido. Segundo ela, a Festa do Divino é prospectiva, propõe um futuro. Não é uma festa do passado, é uma festa que anuncia o novo. E a criança é justamente o símbolo do novo. Ela é o vir a ser. É aquele ser que traz todas as possibilidades dentro de si, de viver com alegria. É a passagem também, onde ao fim ela entrega a coroa para o próximo. Era preciso terminar o filme com essa característica do vir a ser com a abertura para o imprevisível e toda força do imaginário.

A Folia de Reis, o Reisado, o Batuque, Caretas, as Festas da comunidade indígena Panará e o Samba de Roda intercalam essa trama narrativa e celebram a diversidade, a participação da criança em todas elas, o corpo, o sagrado e costuram o passado, presente e futuro do nosso povo com todas as dores, alegrias e as mazelas de sermos quem somos.

Como o aspecto ritualístico das festas repercutem no corpo e na alma das crianças? Poderia dar exemplos a partir do que viu, ouviu, viveu?

Renata Meirelles – Vale dizer aqui que, durante a montagem do filme, percebemos o quanto as crianças desse filme são também os adultos. Porque quando estão dançando, cantando e celebrando eles vivem a essência das crianças. Essa dimensão surge no lúdico. A criança está presente nos adultos, ele sai do contexto cotidiano e vira criança. É uma manifestação da criança também nos adultos. Esse pode ser considerado um aspecto ritualístico importante que repercute em quem participa dessas festas. É viver os ciclos da vida, todos unidos em uma celebração.

Sempre me encanto pela motivação intrínseca que vivem essas pessoas em estado de doação física, espiritual e até financeira. Passam meses em preparos intensos, gastam um dinheiro que não têm para que a festa esteja à altura do que é preciso celebrar, e isso sem o desejo de mostrar para plateias, mas para viverem o terreiro, esse chão de terra circular que carrega a intimidade do coletivo. Uma inspiração profunda para quem se sente desgarrado do tempo, do grupo e das tradições. E a criança lê isso com toda verdade que essas características têm. É a “verdade verdadeira” instaurada a céu aberto e a criança sente isso.

A possibilidade de viver os ciclos anuais é fundamental também. Todo ano a festa é a mesma, mas a criança, não. Quem muda é a criança e não a festa. Assim, ela pode vivenciar seus diferentes aspectos e emoções. Um exemplo claro disso foi o que vivemos em relação as Caretas e Nego Fugido de Acupe. O fato de estarmos com nossos filhos, e o caçula ter 3 anos na época, nos possibilitou perceber com mais clareza as dimensões do pânico vividas pelas crianças nessas manifestações. Os gritos de um filho, seu corpo tremendo, colado ao meu buscando refúgio para o medo descontrolado, foi uma experiência bem forte para mim. Ali as crianças têm a chance de percorrer, na brincadeira, todas as dimensões do medo. A cada ano esse sentimento se dilui, se ameniza até se transformar em coragem e valentia. Fiquei desejando que meu filho vivesse isso com a intensidade que a festa oferece, mas só seria possível se ele tivesse a chance de participar anualmente dessa festa. Agradeço a oportunidade de ter retornado a Acupe três anos depois e poder verificar o corpo e a alma crescidos do meu caçula.A câmera muitas vezes mostra plena devoção, às vezes cai em festa, mistura-se com os brincantes. Tem hora que é sagrada, às vezes é profana. Quais os desafios de filmar nas comunidades em que festejar é o pleno viver?


Renata Meirelles – O desafio inicial é de pedir licença para filmar, não ser invasivo e, principalmente, não perturbar os brincantes e a energia instaurada ali. Recebida a permissão para adentrar com câmeras, o trabalho duro começa ao sacar a câmera e entrar no espaço sagrado do outro. Claro que a câmera invade, mas captando imagens significativas envolve um equilíbrio de atenção e persistência. É preciso aceitar o primeiro choque, transcendê-lo – respeitando os espaços e criando relações para aquele momento. Eventualmente, os brincantes se acostumam com presença da câmera e não mais a percebem. É neste momento que devemos prestar atenção para os detalhes da entrega de cada integrante. O encantamento pelo tema e o vínculo já está estabelecido com essas pessoas começam a mover olhos e mãos no ato de filmar. A entrega nas imagens tem que ter uma dimensão semelhante ao objeto que se está filmando. Assim, vamos transitando pelos sentimentos, gestos, vigor, delicadeza, vibração do todo e de cada um, tentando compor o que acontece ali.

Texto: Gabriela Romeu
Fotos: David Reeks/Território do Brincar

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Abandono, arquétipo da infância

Mas voltando ao filme. Baseado no livro homônimo, traz a história de Abobrinha, um garoto de nove anos que sonha com o pai, simbolizado por um herói mascarado desenhado em uma pipa que insiste em voar alto, e envolto no acidente que mata a sua própria mãe. Órfão, ele é enviado a um orfanato, onde tem de lidar com o sentimento de culpa, o bullying dos colegas, a confusão dos acontecimentos. Por sorte, constrói uma amizade com Raymond, o policial responsável pelo seu caso, e apaixona-se por Camille, uma de suas colegas, a menina de “olhos que dão frio na barriga.”


O tom trágico do filme é elevado pela técnica de stop-motion, inspirada em Arthur Rankin Jr e Jules Bass, produtores do clássico Rudolph, a rena de nariz vermelho (1964). Daí a comparação inevitável de Claude Barras com Tim Burton, que bebeu das mesmas fontes em O estranho mundo de Jack (1993), tanto na temática melancólica quanto em certas características físicas dos personagens, como olheiras acentuadas e tons de pele pálidos.


Toda a história trata de um encontro de exclusões – a começar pela mãe solteira e alcoólatra de Abobrinha, personagem não muito explorada, mas em clara situação de vulnerabilidade social. Ao se ver órfão, o menino é tomado da vida conhecida até então e levado ao encontro de outros excluídos. As vulnerabilidades se amplificam.


O filme também fala da infância como descoberta. A sexualidade, o amor, a identidade. A morte. Os sonhos e as esperanças que são carregados nos primeiros anos de vida, pelos olhos de quem tem motivos para não acreditar em nada. Nesse filme sensível e crítico, com personagens que se constroem em sua imbricada razão de ser, encontram-se a inocência infantil e a crueldade do mundo. 

Mas nem todos os adultos ao redor são impassíveis à vulnerabilidade apresentada. A diretora do orfanato sabe escutar, contrariando clichês de muitos filmes com essa temática. E o próprio lugar busca seus sentidos como casa, acolhida. O policial de voz doce, que cultiva um jardim em seu apartamento, também se diz abandonado e é tocado pelas sagas das crianças. A afetuosidade e a empatia, tanto dos adultos quanto das crianças, alimentam a tessitura das relações.Sob pano de fundo, temas sensíveis ao mundo e à Europa – refugiados, crime, drogas – sob a perspectiva do que toca no mais frágil de nós mesmos – violência, suicídio, amor, família. Desfiada num enredo que se movimenta naturalmente, com momentos de tensão equilibrados com cenas mais leves, a obra é um retrato humano e psicológico de problemas sociais profundos. 

A história de Abobrinha, o menino Icare, que insiste em ser chamado como sua mãe o batizou, revela o quanto a criança contemporânea segue envolta em muitos esquecimentos e solidões. Mas as relações humanas que levam ao abandono também conduzem à força para enfrentá-lo nesse filme, tão dolorido quanto necessário.


Texto: Luísa Cortés

Assista “Minha vida de Abobrinha” aqui ou site do Telecine Play

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Atenção plena ao que nos nutre

No meio da correria cotidiana, são muitas as vozes que escutamos, as tarefas que cumprimos, as regras e os modelos que seguimos para ter certeza de que tudo está em seu lugar. A força do hábito às vezes nos traz a sensação de viver no piloto automático, sem parar para ouvir a nossa voz e descobrir o que nutre os nossos sonhos.

Sem essa pausa introspectiva, sem prestar atenção ao que estamos pensando e fazendo, nosso destino seria apenas seguir o bando, vivendo sem autonomia e sem consciência sobre nossas decisões. Mas podemos ir bem além disso, provoca Regina Migliori, coordenadora do MindEduca, um programa de desenvolvimento pessoal baseado em neurociência e atenção plena (ou mindfulness), uma prática que ela vai abordar em três experiências que serão realizadas na Ciranda de Filmes. “O discernimento é uma característica exclusiva da espécie humana. Ainda assim, muitas pessoas apenas seguem a vontade coletiva e tomam atitudes sem autoria. Precisamos reaprender a fazer escolhas conscientes.”

Para ela, o primeiro passo para retomar a perspectiva em primeira pessoa é se colocar no momento presente. Seguindo o conceito de atenção plena, a primeira experiência que Regina vai propor durante o evento é uma prática guiada de introspecção, uma maneira de estimular a autoconsciência e a conexão com o que nutre, de verdade, o nosso ser.  O que ela chama de introspecção consciente é parar para se contemplar com atenção, sem deixar a mente vagar pelo passado –o que traz uma reflexão– nem correr para o futuro, o que leva à preocupação, à ansiedade.

O exercício, aqui, é descobrir um foco de atenção e sustentá-lo. Quando essa atenção permanece, podemos dirigi-la para dentro de nós, descobrir o que queremos de verdade e agir a partir dessa vontade.

“A consciência sobre o momento presente é muito importante para mergulhar em si e retirar dali a melhor versão de si mesmo”, afirma Regina. Assim, ganhamos controle sobre como agimos. “Nossas ações são precedidas por decisões que podem ser tomadas com raiva ou compaixão. Ter consciência dessas ações é ter clareza sobre onde nascem, de que forma nos expressamos no mundo e que impacto causamos.”

Ela destaca uma atividade simples, mas muito importante, sobre a qual podemos ter mais consciência no dia a dia: comer. A ideia é parar para pensar de que forma decidimos nutrir o nosso corpo: com alimentos saborosos ou só rápidos de consumir? Com prazer ou com ansiedade? Por isso, Regina vai propor uma experiência com estímulos sensoriais ligados aos alimentos, para estimular o desejo e a apreciação de cada comida e descobrir o mindful eating (comer com atenção plena), um método que vem sendo usado por médicos e nutricionistas para tratar compulsões alimentares. Ou na reeducação alimentar de quem costuma comer reagindo apenas a estímulos externos — como a imagem de um chocolate cremoso — e não seguindo seu verdadeiro apetite. “O mindful eating é um comer com consciência do momento, do que está no prato, de com quem estamos, prestando atenção à nossa saciedade”, explica.

Na terceira experiência, Regina quer dirigir o olhar para o que está ao redor, incentivar a consciência sobre as teias de conexão que tecemos com o mundo e sobre como elas estão nutrindo os nossos sonhos e os dos outros. “Aquilo que eu penso, sinto e falo se reflete na completude do mundo. Então é interessante pensar em que tipo de teias estamos estimulando com as nossas escolhas de vida e de consumo”, diz Regina. Para fazer parte do sistema, devemos colocar nessa teia os sonhos descobertos, para que eles virem realidade com a colaboração do outro. “Muita gente abre mão do que sonha por não enxergar de que maneira isso pode acontecer. Do outro lado, tem quem não veja de que modo pode contribuir para tornar reais os sonhos dos outros.”

Texto: Bruna Fontes
Foto: Ciranda de Filmes

 

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Poesia é como ardor de borboleta

“Poesia, iluminarás meu caminho como uma borboleta a arder”, pede o então jovem poeta Alejandrito, em meados do século passado, pelas décadas de 40 e 50, em Santiago do Chile. Contrariando a família, o rapaz vira poeta e se junta a um grupo de escritores promissores e anônimos que compartilham uma vida autêntica, livre e louca.

Essa saga é contada em “Poesia sem Fim”, filme do aclamado cineasta Alejandro Jodorowsky, discípulo do surrealista André Breton.

Na obra, estão as experimentações poéticas de um grupo de artistas e intelectuais como Enrique Lihn, Stella Diaz e Nicanor Parra, todos até então desconhecidos, e que, depois, vão se tornar mestres da literatura moderna latino-americana.

O cinema jodorowskiano crê nas poéticas como verdadeiro alimento da alma. A Ciranda de Filmes também. E por isso o universo onírico desse imperdível cineasta, também poeta, mímico, ator e quadrinista, tem pré-estreia marcada na mostra. É para a alma se refestelar de poesia…

Confira o trailer abaixo.

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Resistência em comunidade

Vivemos um tempo de divisão. Cada um em seu lado, entrincheirado em suas ideias, afirma-se como indivíduo (ilusoriamente) independente e se opõe a quem pensa e vive de maneira diferente. Na vida cotidiana, estamos surdos para o outro. Nas redes sociais, ficamos também cegos, pois algoritmos nos escondem o que não nos agrada, constroem feudos nos quais a única comunidade possível é a que concorda, a que suprime conflitos.

Vivemos, também, um tempo de batalhas. Lutas para limitar direitos civis conquistados por comunidades diversas — mulheres, negros, LGBTs, entre tantas outras –, lutas para manter esses direitos, numa disputa quase sempre binária. Ou para conquistar outros, como a renda mínima, o transporte gratuito, a moradia acessível. A batalha por um teto fica mais acirrada em São Paulo, uma metrópole feita de migrantes e imigrantes, e agora também de refugiados de países em guerra. Mais gente está chegando, mas onde vão morar?

Achamos uma pista passeando pelo centro duro, cinza, da capital, mas com tanta vida agitando as ruas. Quem nos leva é a câmera do filme “Era o Hotel Cambridge”, filme de criação coletiva, no limiar entre a ficção e a não ficção, dirigido por Eliane Caffé, presença confirmada nas telas e nas rodas desta quarta edição da Ciranda de Filmes.

Seguindo seu olhar curioso, chegamos a uma porta vermelha, onde se abre uma brecha para entramos nesse hotel modernista abandonado na avenida Nove de Julho. Subimos pelas entranhas da construção, viajando pelos canos e pela fiação elétrica; ouvimos a estática e a descida da água, notamos que esse grande prédio não está vazio. Emergimos em uma comunidade barulhenta, viva, que tomou o imóvel e se estabeleceu ali junto com a Frente de Luta por Moradia, um dos tantos movimentos organizados desde os anos 2000 para ocupar prédios abandonados e expor, junto com suas bandeiras, o problema dos sem-teto na cidade.

Lá dentro convivem pessoas diferentes – o filme mostra os ocupantes reais do Cambridge misturados a alguns atores. Há o nordestino e o palestino. O poeta agitado e a líder do movimento social. Uma senhora que sonha com tempos passados, o jovem que deseja outro futuro. Cada um é a seu modo, mas neste mundo não vemos trincheiras. Para os sem-teto, formar uma comunidade para preencher o prédio vazio é a única forma de resistência. Juntos, resistem à solidão de estar longe da família, à dura vida de quem tenta sobreviver em uma metrópole que não fala sua língua, onde não se encontra a sua comida, onde o dinheiro não chega para ter uma casa só sua.

No interior do Hotel Cambridge vemos uma comunidade real bem distinta dos feudos digitais. Um grupo que se estabelece sobre suas diferenças, e não sobre superficiais semelhanças. Os refugiados de países em guerra, como Congo e Palestina, descobrem que continuam no meio de uma zona de conflito. Em uma assembleia convocada às pressas, os moradores ficam sabendo que a juíza concedeu a reintegração de posse do imóvel e determinou o despejo em 15 dias. A angústia imediatamente traz à tona as divisões guardadas em cada quarto.

Um homem se levanta e diz: “A gente já não tá podendo nem cuidar de nós, os brasileiros, e ainda tem que cuidar de refugiado do Congo, dos libaneses e palestinos?”. A líder real do movimento Frente de Luta pela Moradia, Carmem Silva, traz a conversa de volta para a importância de resistirem juntos. “A luta é com vocês, não é para vocês”, responde rápido. “É hora de a gente estar unido.”

Fica claro que ninguém ali sobreviverá sozinho, fechado no mundo do seu apartamento. Juntos, eles cozinham, limpam, consertam, amam, tentam aprender a falar português. Descobrem comidas, música, poesia e costumes de outros países – e que no Congo, antes de pedir alguém em namoro é preciso comprar um presente. Cada um conta a sua história, na tentativa de tecer a rede de humanidade que une as pessoas que não falam a mesma língua. Em roda, dão voz ao desespero que os tirou de sua terra natal, inventam performances artísticas, passam uma caneca de cachaça para contar suas filosofias. Para instituir a poesia, recita o veterano palestino, é preciso caminhar no coração da ferida. Resistir. Beijar suas cicatrizes. “O destino do rio é sempre ser o rio”, finaliza.

Organizados como um grupo, os ocupantes do Cambridge combinam estratégias para demover a juíza da decisão do despejo (ou para pelo menos serem ouvidos rapidamente, encurtando a paciência dela com uma descascação geral de mexerica). Constroem um bloqueio para retardar a invasão dos policiais que querem desocupar o imóvel, criam saídas de emergência, barricadas para resistir. E, finalmente, reúnem um novo grupo para ocupar o próximo imóvel. “Toda a minha vida eu fui num país ocupado. Pela primeira vez, eu sinto que eu tô ocupando uma coisa”, desabafa o veterano palestino. E assim começa uma nova comunidade.

 

Texto: Bruna Fontes

Fotos Divulgação

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Olhares Olhares 2017

Quando o amor se avizinhou do mundo

“A torneira da pia estava quebrada, não parava de pingar. O tempo sempre foi causador de muitos defeitos. Era ele quem empoeirava as dobradiças da razão, desaparafusava os sentimentos. Eram as artimanhas para se fazer presente, lembrar a todos que ele também habitava aquele lugar.”

Numa mesa onde hoje sentam três, pai e seus dois filhos, para o café da manhã com “bolo, pão e silêncio”, a quarta cadeira continuava vazia. Mas o tempo permanecia ali, ao redor, também personagem desse universo (atemporal, vale dizer) criado por um cineasta-escritor, Alan Minas, que estreia seu primeiro longa-metragem de ficção, “A Família Dionti”, um dos filmes imperdíveis desta Ciranda.

“A Família Dionti” – tão de hoje, tão nossa, tão dentro de todos nós – conta uma história de amor envolvendo uma mãe que partiu atrás de um outro bem, de um pai que a espera voltar mesmo que em forma de chuva e de seus dois filhos, um que se derrete literalmente de paixão por uma menina de alma nômade e outro que, ressequido por dentro, chora terra em seu travesseiro à noite. Vivem num lugar ermo, longe de tudo, à beira de seu próprio tempo. Ali o silêncio, fatiado à mesa, repercute a não-palavra que a muitos apavora.

Com pinceladas de realismo mágico, essa história nasceu primeiramente num conto, logo transformada em roteiro e, depois, saltou avidamente para as páginas de um romance publicado pela Berlendis & Vertecchia Editores. “A Família Dionti”, o livro, nasceu de uma saudade que Alan Minas sentiu das personagens, daquele lugar habitado de memória, depois de terminadas as filmagens que se estenderam por nove meses.

“Regressei para casa e senti uma enorme inquietude, um vazio. Era uma saudade que não me deixava, que sobrava. Saudade que eu sentia da história, e que, para mim, as personagens também sentiam. Não estávamos saciados. Tudo que vivenciei seguia pulsando”, lembra. O filme havia terminado, mas a história estava incompleta, latente, dentro do seu criador. Aquelas personagens, numa intensa entrega, ainda tinham mais o que transbordar.

A história evoca o amor, colocando esse sentimento no lugar do sagrado, “intocado, puro e ingênuo”, como define o diretor. Na forma de poema visual, no filme, ou de prosa poética, no livro, os elementos da natureza são metáforas da própria vida, que se faz no curso das águas, símbolo da transformação. O menino que “nunca sabia onde as coisas iam desaguar”, derretendo-se de amor por Sofia Doventim, que “nunca soube o que era endereço amarrado”, lembra-nos que as transformações do crescer são um pouco como morrer. “A metamorfose das borboletas”: era esse o texto que liam na aula.

Tanto no filme quanto no livro, a história tem o tempo suspenso. O diretor enfatiza que o filme se descortina em ritmo próprio. “No mundo da família Dionti, as regras e os códigos tornam-se também particulares, está nas palavras, nas ações. E no pensar. A lógica se reinventa, e os vários mundos que nos cercam se afloram. Mas esse tempo não se arranja como um fim, ele se apresenta como instrumento, um objeto operacional.” É que a história se (re)constrói em quem a lê ou a assiste. E uma nova história sempre acontece. “Sobra tempo para o contemplar, sentir junto e se emocionar com as personagens. Sobra um tempo dentro de cada um.”

Josué, Kelton, Serino, além de Sofia, vô Abelino, a professora Ilusângela, a diretora Poesina e Centenádia, a mulher que não consegue morrer, entre tantas outras personagens, habitam um lugar por onde “todas as pessoas do mundo já haviam passado”. Mas lá, veja só, há tempos as estradas “esqueceram seus rumos”. Um buraco do mundo, com uma placa numa bifurcação do caminho indicando dois lugarejos: Angustura e Dores da Vitória. Assim como o tempo, o lugar é também nobre personagem. E ganhou contornos na zona da mata mineira, que imprimiu novos sotaques à narrativa.

“O universo rural, a floresta e suas águas, o desabitado e seus bichos, o seminal das coisas e a terra dialogavam perfeitamente com o lugar que buscava. Eu queria o oposto do real. É o universo impossível que me habita e que eu busco fora de mim. Sabia que o encontraria no interior, em nossas roças. E o essencial que tanto procurava encontrei dentro das personagens. Talvez isso tenha encurtado as distâncias, e a história de um lugar pequeno ganhou perna e se avizinhou do mundo.”

A poesia une as duas obras – filme e livro. Foi bastante desafiador realizar a transição da história em dois suportes diferentes, com linguagens e elementos narrativos próprios, conta o escritor, também cineasta. “Enquanto a literatura me oferece total liberdade para explorar o fluxo de pensamento, cuidar da palavra escrita e de seu ritmo inserido no texto, a elaboração do filme me faz pensar em imagens e na gramática própria do audiovisual. A verborragia nesse filme não teria nada a ver com sua concepção. São duas escritas, duas línguas.”

Se o filme se desenrola no entre palavras, com poucos diálogos, o livro tem uma tessitura que desfia habilidosamente novos dizeres e novas subtramas. Ver o filme e ler o livro (não necessariamente nessa ordem) são duas experiências únicas, que se completam e se intensificam nas descobertas dos muitos cantos dessa história que logo passa a nos habitar, como se há tempos se escondesse em algum lugar de nós, lá longe, bem no fundo.

Texto: Gabriela Romeu

Fotos: Divulgação

 

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Olhares Olhares 2017

(Trans)bordar feito água de riacho

As sabenças compartilhadas ao pé do fogão, as brincadeiras nos rios-riachos da infância, as memórias desenhadas nas calçadas da rua com pedrinhas do fundo dos córregos, entre muitas outras lembranças do quintal, alimentam o imaginário do grupo Matizes Dumont, formado por uma família mineira que há gerações borda intensamente suas narrativas de origens.

São cinco irmãos: Marilu, Demóstenes, Ângela, Martha e Sávia Dumont, todos descendentes de Antônia, a bordadeira-mãe que ampliou ainda mais o imaginário dos filhos com as tessituras feitas nas barras de vestido, nos lençóis que cobriam à noite as crianças, nas toalhas de mesa que enfeitavam a casa em dia de visita. Dizem eles que seus sonhos “ainda são povoados por pássaros, flores, borboletas, cavalinhos, meninos, barcas, bonecas de pano, carros de boi e noites estreladas”. E é esse sonhar cheio de singelezas que nutre as artes da 4ª Ciranda de Filmes.

O bordado fortalece. Transforma o adulto em criança pequena, árvore, bicho ou até rio, agigantado como o São Francisco que banhou a infância dos Dumont. “Ao bordar, a pessoa pode retomar os fios da memória do vivido, reencontrar espaços internos de amorosidade, experienciar situações de cooperação, perfazer gestos de sensibilidade e, quem sabe, começar de novo um viver na beleza, no reencontro do sentido de vida”, conta Marilu, que crê na formação humana como um bordado.

Cresceu numa família em que “os adultos bordam brincando e as crianças brincam de bordar”. A infância dela e dos irmãos foi tecida entre os bordados da mãe e os causos contados pelo pai da varanda de casa. Os “almanaques”, que chegavam sempre que se ouvia o apito do vapor, eram sempre aguardados. As linhas, agulhas e tecidos, primeiros brinquedos dos filhos, eram misturados àqueles feitos de sementes colhidas no quintal. A vida seguia com a batida do pilão, o barulho do sino da cabritinha no pasto, a cor das asas da juriti.

Da vivência, brotou o saber coletivo do ofício. “Um galo sozinho não tece uma manhã”, dizia João Cabral de Melo Neto. A bordadeira Marilu concorda: há três gerações são transmitidos ensinamentos, na “busca cotidiana de saber ser e saber fazer coletivamente”. E não só dentro de casa. As irmãs oferecem oficinas de bordado em diversos lugares do Brasil. Assim, o ofício é repassado, ensinado, preservado.

Colaborativo, a arte de bordar se assemelha aos fazeres da vida rural. Do mesmo modo se prepara a junta de bois que puxa o carro, para levar todos à festa de reis na beira do rio. Um completa a arte do outro, brincando com agulhas e linhas desde a meninice. Sim, o mais íntimo vem das origens: a fazenda habitada em Pirapora, norte de Minas Gerais, nas beiradas do rio São Francisco, o Velho Chico, onde a vida era de repleta encantamentos.

Toda inspiração brota da natureza de lá, suas cores e suas formas. “As filigranas das samambaias, as árvores encantadas que trocam de roupa a cada dia, a Via Láctea escandalosa sobre o céu refletido no rio São Francisco, as estrelas como que penduradas no pé de jatobá. Cor de manga rosa, gosto de jabuticaba no pé, doce quente de buriti no tacho de cobre.” Todos os fazeres manuais, o trabalhar da farinhada ou o preparar do melado para rapadura, são tecidos. E não só no pano, mas em todas as relações.

E as tramas que se iniciaram com os rabiscos dos toás – aquelas pedrinhas de calcários, do fundo dos córregos – transbordam ainda hoje nos coloridos fios. Assim, bordam bicho, árvore, pessoa. Bordam a história da vida, a morte e tudo o que há de humano. “Todos os rios têm uma história peculiar. O que a gente vai descobrindo é que as narrativas se entrelaçam, e aí que a gente vê que todos os rios são mesmo internos.” Gente faz é (trans)bordar.

Texto: Gabriela Romeu e Luísa Cortés

Imagem do bordado: grupo Matizes Dumont

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Olhares Olhares 2016

Mestres de muitos cantos, todos de um só rio

Já tem um tempo que a terceira Ciranda girou, soprando notícias de mestres em tempos de incerteza. Mestres versados de muitos saberes – do chão e do silêncio, do gesto e do brincar, do barro e do tempo, da palavra e da imagem. Eram artesões, estudiosos, griôs, cineastas, cantadores, educadores, meninos e avós, todos juntos, numa roda só. Vieram de muitos cantos, falando muitas línguas, mas todos navegando por um mesmo rio que margeia memórias, gentes e cidades.

E chegaram com o vento do mais tenebroso inverno, no documentário-diário “Todo o Tempo do Mundo”, avisando que a natureza ensina na pedagogia da solidão. Brotaram na relação afetuosa entre crianças e velhos, no singelo curta “Ba”. Nasceram nas mãos de saberes ancestrais das ceramistas do Vale do Jequitinhonha (MG), retratadas em “Do Pó da Terra”. Viajaram pelas paisagens folclóricas, em expedições etnográficas empreendidas pelo modernista Mario de Andrade (“Mário e a Missão”).

Entre as diversas sessões de longas e curtas, de ficção e não ficção, a Ciranda girou em vivências que tinham como suporte a lousa, deslocada de sua posição vertical tradicional, ou que tinha como linguagem o barro, mestre de saberes ancestrais. Na extensa programação, as inspirações emergiram de uma delicada instalação com memórias da infância do público, assim como também da singela exposição com brinquedos de Seu Paulo, “daqueles meninos que insiste em envelhecer o corpo carregando sua infância pelo tempo”.

As incertezas feitas em ensinamentos também giraram nas três rodas de conversa, que elegeram o homem, a natureza, a cidade e a arte como potências de maestria. E assim, em tardes em que o ouvir pediu licença ao olhar, já tão encantado pelas imagens refletidas nas telonas, reuniram-se mestres de saberes ancestrais, tradicionais e contemporâneos, incluindo liderança indígena, artesã da palavra cantada, coletivo que faz arte no meio urbano, educador-questionador e artistas de múltiplas linguagens.

Ailton Krenak inaugurou a roda de conversa “Mediador de Mundos” lembrando que a palavra “ciranda” já é uma “grande convocatória”. E Krenak, nesse chamado do cirandar, evocou seu maior mestre, “a intangível entidade que é a natureza”, força manifesta das correntezas aos corguinhos (no seu jeito mineiro de dizer córrego pequeno). “A natureza me ensinou o sentido de liberdade”, disse com sua voz maviosa a liderança indígena, que iniciou a prosa com um pequeno “flash de sua alma de menino”, assim como os demais proseadores da Ciranda, como a artesã mineira Lira Marques e o educador português José Pacheco.

Os mestres todos – a natureza, as artes, as gentes – foram sendo lembrados nas rodas como numa grande colcha de pensamentos tecidos e entrelaçados. Assim, a ancestralidade do povo de Krenak (hoje, 350 indivíduos) foi relembrada pela potência de Beatriz Goulart, mais que urbanista e arquiteta, durante a prosa “Maestria do Chão”. “Essa ancestralidade a gente vai perdendo na cidade. Como eu escuto o som do rio que passa enterrado?”, disse Beatriz, que aprendeu a ouvir o chão em perguntas como “para onde venta?” e “onde é que chove?”.

Chão de asfalto, a “cidade é a maior obra humana”, complementou Joana Zatz, do coletivo Contrafilé, que sempre transita entre a prática e a reflexão no entrecruzar do urbano, da arte e da política. “A cidade é viva. A maior obra de arte do homem é a cidade, que é uma obra que a gente faz para viver dentro. Então, nesse sentido, a cidade não está pronta, não está acabada. O urbano é o lá fora, é o asfalto, é o prédio? Não. O urbano é uma força viva, somos nós produzindo o urbano, assim como o espaço público.”

Nesse diálogo tramado entre rodas, a bailarina e coreógrafa Georgia Lengos lembrou que gente é também natureza. E o rio evocado lá no começo nas palavras de saberes remotos de Krenak desaguou também em sua fala: “Temos que pensar que a gente é barro e que lá dentro tem um rio”. Diretora da companhia Balangandança, ela falou do ser humano como um círculo vibratório de movimento, “essa forma circular que está presente no sol e na lua”, e que nasce no “movimento elétrico de um espermatozoide”.

Mesmo que em três rodas, os nove proseadores estavam todos na mesma ciranda. A criança estava sempre lá, no centro. Uma das proseadoras, a mais que urbanista Beatriz Goulart, em suas reflexões sobre cidade, escola e criança, definiu trouxe uma definição certeira sobre infância: “símbolo da afirmação”, “metáfora da criação do pensamento”, “sem temporalidade linear”, a partir da perspectiva do filósofo argentino Walter Cohan.

Poeticamente, a Ciranda terminou com uma despedida da infância. Da infância de Maria Fabrislene, rainha do reisado em seu último ano de reinado em “Meninos e Reis”, e de um menino que sonha intensamente em ser palhaço e trapezista debaixo da lona armada em seu quintal (“Jonas e o Circo”). Dois filmes que retratam ritos de passagem. Mas era fim e também recomeço, tal qual anunciado nos versos de Ferreira Gullar para “O Trenzinho Caipira” (Heitor Villa Lobos), música tema desta terceira edição:

“Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a girar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar…”
 
Texto: Gabriela Romeu
 

 


Fotos: Aline Arruda