Mas voltando ao filme. Baseado no livro homônimo, traz a história de Abobrinha, um garoto de nove anos que sonha com o pai, simbolizado por um herói mascarado desenhado em uma pipa que insiste em voar alto, e envolto no acidente que mata a sua própria mãe. Órfão, ele é enviado a um orfanato, onde tem de lidar com o sentimento de culpa, o bullying dos colegas, a confusão dos acontecimentos. Por sorte, constrói uma amizade com Raymond, o policial responsável pelo seu caso, e apaixona-se por Camille, uma de suas colegas, a menina de “olhos que dão frio na barriga.”
O tom trágico do filme é elevado pela técnica de stop-motion, inspirada em Arthur Rankin Jr e Jules Bass, produtores do clássico Rudolph, a rena de nariz vermelho (1964). Daí a comparação inevitável de Claude Barras com Tim Burton, que bebeu das mesmas fontes em O estranho mundo de Jack (1993), tanto na temática melancólica quanto em certas características físicas dos personagens, como olheiras acentuadas e tons de pele pálidos.
Toda a história trata de um encontro de exclusões – a começar pela mãe solteira e alcoólatra de Abobrinha, personagem não muito explorada, mas em clara situação de vulnerabilidade social. Ao se ver órfão, o menino é tomado da vida conhecida até então e levado ao encontro de outros excluídos. As vulnerabilidades se amplificam.
O filme também fala da infância como descoberta. A sexualidade, o amor, a identidade. A morte. Os sonhos e as esperanças que são carregados nos primeiros anos de vida, pelos olhos de quem tem motivos para não acreditar em nada. Nesse filme sensível e crítico, com personagens que se constroem em sua imbricada razão de ser, encontram-se a inocência infantil e a crueldade do mundo.
Mas nem todos os adultos ao redor são impassíveis à vulnerabilidade apresentada. A diretora do orfanato sabe escutar, contrariando clichês de muitos filmes com essa temática. E o próprio lugar busca seus sentidos como casa, acolhida. O policial de voz doce, que cultiva um jardim em seu apartamento, também se diz abandonado e é tocado pelas sagas das crianças. A afetuosidade e a empatia, tanto dos adultos quanto das crianças, alimentam a tessitura das relações.Sob pano de fundo, temas sensíveis ao mundo e à Europa – refugiados, crime, drogas – sob a perspectiva do que toca no mais frágil de nós mesmos – violência, suicídio, amor, família. Desfiada num enredo que se movimenta naturalmente, com momentos de tensão equilibrados com cenas mais leves, a obra é um retrato humano e psicológico de problemas sociais profundos.
A história de Abobrinha, o menino Icare, que insiste em ser chamado como sua mãe o batizou, revela o quanto a criança contemporânea segue envolta em muitos esquecimentos e solidões. Mas as relações humanas que levam ao abandono também conduzem à força para enfrentá-lo nesse filme, tão dolorido quanto necessário.
Texto: Luísa Cortés
Assista “Minha vida de Abobrinha” aqui ou site do Telecine Play.