O tremor das teclas do piano sendo transportado sobre o asfalto irregular emite som grave, misterioso. O barulho dos carros na rua contrasta com o silêncio da sala de instrumentos. Lá dentro sobressai o ruído do ventilador ligado, os parafusos sendo afrouxados, as fivelas que prendem o corpo de madeira sendo ajustadas. Escuta-se o tecido. O atrito da pele do dedo nas tiras de couro. Em poucos minutos, uma voz instrumental se destaca nesse universo sonoro, dá nome ao filme: “O Piano que Conversa”.
Dirigido por Marcelo Machado, o documentário sem depoimentos nem “cabeças falantes” investe na experiência sinestésica de assistir à música. A fala humana pouco aparece. Em um canto ou outro. Divide a mesma importância na tela que o som de uma folha sendo rasgada, uma calçada sendo cimentada. Como intérprete, para puxar papo com o piano, está o pianista Benjamim Taubkin, que, de São Paulo para o mundo, há tempos é mestre nas misturas do erudito e do contemporâneo. No piano, faz um exercício diário de criação. Com a música, percebe a vida.
É a partir dos encontros de Taubkin e seu piano (ou, talvez, do piano e seu pianista) com diferentes artistas, de variadas nacionalidades e musicalidades, no Brasil, na Bolívia e na Coreia do Sul, que acompanhamos esta saga musical. Sensorial, o filme leva o espectador a sentir diferentes tipos de música, criados pelo homem ou pela natureza, em muitas partes do mundo. No percurso, pulsa o coração dos instrumentos, observamos em detalhes suas entranhas, percebemos sua pele. A música mais do que narra.
O conceito do filme surgiu para seguir uma direção diametralmente oposta ao último trabalho de Marcelo Machado, Tropicália, de 2012. “Depois de Tropicália, um documentário ao qual me dediquei por cinco anos com muita pesquisa de arquivos, leitura e esforço de entendimento, queria mudar o registro, mudar a forma de me relacionar com meu objeto. Queria viver a relação com a música em outro plano, menos racional ou apoiado no intelecto que se expressa primordialmente na palavra”, explica o diretor que tem abordado diferentes gêneros, movimentos e instrumentos musicais, no cinema e na televisão, ao longo da carreira.
A escolha do artista a ser representado ocorreu quase como consequência natural à escolha do formato: “Percebia nele [Benjamin Taubkin] características que se encaixavam nessa busca e comecei a gravar alguns ensaios, testes, experimentos que me levaram a essa ideia de um documentário sem palavras, um mergulho no universo sensorial. Ele entendeu, aceitou e se colocou totalmente em sintonia com esse objetivo, de forma que hoje considero o Benjamim coautor do documentário”.
O pianista, por sua vez, conta que o chamado foi um desafio e tanto, “porque fala direto ao lado direito do cérebro…vira uma experiência”. Como indica o título, o protagonista é o piano. O seu repertório e o seu fazer musical que prima pelo cuidado com a troca, pela riqueza do diverso, no entanto, é o que dá substância ao registro.
No documentário, Taubkin é gravado em momentos de criação, conectando-se com outros artistas, como um percussionista israelense, uma cantora moçambicana ou uma violoncelista polonesa. Seguindo o tempo da música, algumas cenas evidenciam o piano e o pianista animando em parceria com uma guitarra do Pará, num estilo de pop tropical, uma festa na periferia da zona sul de São Paulo, criando música ritualística numa comunidade tradicional da Bolívia junto a instrumentos típicos da cultura andina, como a tarka e o siku (tipos de flautas), e experienciando momentos mais contemplativos em um palco na Coreia do Sul.
“Acho que sou uma espécie de ponte entre as várias músicas que o filme traz. É um pouco como me sinto… em constante diálogo com as possibilidades de se criar a partir da experiência de cada um. A música permite essa vivência, é uma amálgama do que cada um traz. E dali nasce algo novo, que inclui e preserva o que cada um aportou. Algo que, na vida cotidiana, as pessoas têm dificuldade em realizar – e daí grande parte dos conflitos que temos vivido. Uma espécie de ignorância das possibilidades.”
O pianista, que começou seus estudos musicais com 18 anos, recorda que, embora sempre tivesse música na sua casa e sua própria mãe tocasse piano, demorou a associar o gosto pela escuta a algo mais prático como o tocar. Esse desejo surgiu no início da década de 70, quando ouviu os discos Matita Perê, de Tom Jobim, e Água & vinho, de Egberto Gismonti.
Daí em diante, aos poucos, a música foi adquirindo contornos mais definidos em sua vida, apontando para um lugar que pedia por participação, por um corpo presente e em movimento (seja em São Paulo, seja em Tongyeong). Ou, como ele mesmo define: “Música como o futuro – aquilo que a humanidade pode vir a ser e viver, como indivíduo e sociedade, o próximo estágio do ser humano… no sentido de que cabe tudo, em harmonia, se quisermos as diferenças são bem vindas, as possibilidades estão todas ali. Dizem que Beethoven foi estudar filosofia na universidade. E ficou pouco tempo, pois, para ele, todas essas questões estavam presentes na música. E eu consigo vislumbrar isso”.Assim, do encontro desses dois homens, cada um apaixonado por música a sua maneira, o piano foi o convidado que merecidamente ganha atenção especial na conversa. Um instrumento capaz de dialogar com a natureza e tocar aqueles que falam outros idiomas. Emocionar com uma voz que se estende em oitavas e se arranja entre bemóis e sustenidos. Filme feito, tal emoção foi percebida pelo público. Em debates em escolas da periferia de São Paulo, uma jovem falou algo que ecoa na dupla: “Ela disse que, quando lemos um livro, imaginamos as cenas. Neste filme, imaginamos as falas”.
Texto: Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas
Fotos: Divulgação