“A torneira da pia estava quebrada, não parava de pingar. O tempo sempre foi causador de muitos defeitos. Era ele quem empoeirava as dobradiças da razão, desaparafusava os sentimentos. Eram as artimanhas para se fazer presente, lembrar a todos que ele também habitava aquele lugar.”
Numa mesa onde hoje sentam três, pai e seus dois filhos, para o café da manhã com “bolo, pão e silêncio”, a quarta cadeira continuava vazia. Mas o tempo permanecia ali, ao redor, também personagem desse universo (atemporal, vale dizer) criado por um cineasta-escritor, Alan Minas, que estreia seu primeiro longa-metragem de ficção, “A Família Dionti”, um dos filmes imperdíveis desta Ciranda.
“A Família Dionti” – tão de hoje, tão nossa, tão dentro de todos nós – conta uma história de amor envolvendo uma mãe que partiu atrás de um outro bem, de um pai que a espera voltar mesmo que em forma de chuva e de seus dois filhos, um que se derrete literalmente de paixão por uma menina de alma nômade e outro que, ressequido por dentro, chora terra em seu travesseiro à noite. Vivem num lugar ermo, longe de tudo, à beira de seu próprio tempo. Ali o silêncio, fatiado à mesa, repercute a não-palavra que a muitos apavora.
Com pinceladas de realismo mágico, essa história nasceu primeiramente num conto, logo transformada em roteiro e, depois, saltou avidamente para as páginas de um romance publicado pela Berlendis & Vertecchia Editores. “A Família Dionti”, o livro, nasceu de uma saudade que Alan Minas sentiu das personagens, daquele lugar habitado de memória, depois de terminadas as filmagens que se estenderam por nove meses.
“Regressei para casa e senti uma enorme inquietude, um vazio. Era uma saudade que não me deixava, que sobrava. Saudade que eu sentia da história, e que, para mim, as personagens também sentiam. Não estávamos saciados. Tudo que vivenciei seguia pulsando”, lembra. O filme havia terminado, mas a história estava incompleta, latente, dentro do seu criador. Aquelas personagens, numa intensa entrega, ainda tinham mais o que transbordar.
A história evoca o amor, colocando esse sentimento no lugar do sagrado, “intocado, puro e ingênuo”, como define o diretor. Na forma de poema visual, no filme, ou de prosa poética, no livro, os elementos da natureza são metáforas da própria vida, que se faz no curso das águas, símbolo da transformação. O menino que “nunca sabia onde as coisas iam desaguar”, derretendo-se de amor por Sofia Doventim, que “nunca soube o que era endereço amarrado”, lembra-nos que as transformações do crescer são um pouco como morrer. “A metamorfose das borboletas”: era esse o texto que liam na aula.
Tanto no filme quanto no livro, a história tem o tempo suspenso. O diretor enfatiza que o filme se descortina em ritmo próprio. “No mundo da família Dionti, as regras e os códigos tornam-se também particulares, está nas palavras, nas ações. E no pensar. A lógica se reinventa, e os vários mundos que nos cercam se afloram. Mas esse tempo não se arranja como um fim, ele se apresenta como instrumento, um objeto operacional.” É que a história se (re)constrói em quem a lê ou a assiste. E uma nova história sempre acontece. “Sobra tempo para o contemplar, sentir junto e se emocionar com as personagens. Sobra um tempo dentro de cada um.”
Josué, Kelton, Serino, além de Sofia, vô Abelino, a professora Ilusângela, a diretora Poesina e Centenádia, a mulher que não consegue morrer, entre tantas outras personagens, habitam um lugar por onde “todas as pessoas do mundo já haviam passado”. Mas lá, veja só, há tempos as estradas “esqueceram seus rumos”. Um buraco do mundo, com uma placa numa bifurcação do caminho indicando dois lugarejos: Angustura e Dores da Vitória. Assim como o tempo, o lugar é também nobre personagem. E ganhou contornos na zona da mata mineira, que imprimiu novos sotaques à narrativa.
“O universo rural, a floresta e suas águas, o desabitado e seus bichos, o seminal das coisas e a terra dialogavam perfeitamente com o lugar que buscava. Eu queria o oposto do real. É o universo impossível que me habita e que eu busco fora de mim. Sabia que o encontraria no interior, em nossas roças. E o essencial que tanto procurava encontrei dentro das personagens. Talvez isso tenha encurtado as distâncias, e a história de um lugar pequeno ganhou perna e se avizinhou do mundo.”
A poesia une as duas obras – filme e livro. Foi bastante desafiador realizar a transição da história em dois suportes diferentes, com linguagens e elementos narrativos próprios, conta o escritor, também cineasta. “Enquanto a literatura me oferece total liberdade para explorar o fluxo de pensamento, cuidar da palavra escrita e de seu ritmo inserido no texto, a elaboração do filme me faz pensar em imagens e na gramática própria do audiovisual. A verborragia nesse filme não teria nada a ver com sua concepção. São duas escritas, duas línguas.”
Se o filme se desenrola no entre palavras, com poucos diálogos, o livro tem uma tessitura que desfia habilidosamente novos dizeres e novas subtramas. Ver o filme e ler o livro (não necessariamente nessa ordem) são duas experiências únicas, que se completam e se intensificam nas descobertas dos muitos cantos dessa história que logo passa a nos habitar, como se há tempos se escondesse em algum lugar de nós, lá longe, bem no fundo.
Texto: Gabriela Romeu
Fotos: Divulgação