A floresta acorda com seus muitos sons. À beira do rio, meninos com remos nas mãos adentram uma canoa. “Para onde a gente vai?”, um deles pergunta, em sua língua. A resposta vem na sincronia das remadas pelas águas, início da criação dos Yudjá, “um nome que vem de desde muito tempo”.
É assim que aos poucos vamos amanhecendo em “Waapa”, curta-metragem dirigido por David Reeks, Paula Mendonça e Renata Meirelles, com produção da Maria Farinha Filmes. O filme acorda em nós o que é cres(Ser) uma criança Yudjá, nome que significa “povo do rio” ou “dono do rio”. “É por isso que hoje o Yudjá não consegue ficar longe do rio”, logo revela a liderança Yabaiwa Juruna, que, na aldeia Tuba Tuba, no Parque Indígena do Xingu (MT), narra uma infância envolta em cuidados especiais nesse filme do Território do Brincar. “Waapa”, palavra da medicina do povo Yudjá, é “elemento da natureza que ensina” ou “remédio que cura”. O crescimento da criança Yudjá perpassa muitos remédios que vêm dos bichos, das plantas, das águas. Assim, é a saracura, um pássaro rápido que nunca se cansa, que traz a agilidade; o osso do tatu, bicho da couraça dura, evoca a força, algo difícil de combater; a aranha resgata as origens da habilidade tecelã; as plantas fornecem seus muitos colírios para ver além. São os donos dos remédios os espíritos, clareados pela Lua.
Paula Mendonça, com dez anos de história com os Yudjá e hoje integrante da equipe do Criança e Natureza (Instituto Alana), explica que tal medicina, o Waapa, produz saúde, provendo a criança de habilidades específicas para a vida na floresta e protegendo seu corpo liberto com a força dos elementos naturais.
“Ter força, mira e velocidade, saber tecer, ser bom flechador, escapar de flechas, todo esse universo simbólico trabalhado pelos remédios vem dotar esse corpo, através das produções de afecções, para que seja um corpo preparado para a vida, para ter autonomia.”
No campo da saúde, imbricado com a rede da espiritualidade, a visão de um corpo saudável pelos Yudjá é o de um corpo em movimento, autônomo. “É preciso ter proteção porque a criança aprende-fazendo, se arrisca, circula com liberdade em seu ambiente. Da experiência é que brota o conhecimento.”
Todo o crescer é enredado por esses muitos fazeres da aldeia. Esse viver na floresta “exige uma força para construir uma casa ou arrastar a canoa do mato até a beira da água”. Eles precisam ter uma resistência física e uma força enorme na lida diária. “O dia a dia na aldeia é pura atividade, um dia você está indo para a roça fazer a farinha, ou você está em plena produção de farinha, ou você está indo pegar um peixe. Não tem como ficar parado. Todo o trabalho deles é corporal.” Em muitas temporadas com os Yudjá, Paula ainda se encanta com o lugar que a criança ocupa nessa sociedade. “Não existe uma separação do espaço e do tempo da criança na convivência com os adultos. Ela participa de todos os processos, de todas as atividades. É incluída em todos os fazeres, todos os cotidianos, tudo, tudo. Ela pode muito, tem uma liberdade enorme.”
A cena que abre o filme está impressa na memória da pesquisadora como um retrato de uma infância em sua extrema potência. “Pra mim, o fato de elas irem para a praia sozinhas, sem um adulto, pegar a sua canoa e lá brincar mostra a carga enorme do espírito de liberdade desse povo. Essa liberdade que têm de circulação e de pouca restrição faz com que aprendam sobre sua sociedade.” Esse corpo de uma infância liberta é entidade de toda a vida.
“Waapa” é um filme tecidos por alguns fios: o trajeto dos meninos no rio, os muitos fazeres dos adultos e das crianças na aldeia, o levantar e o deitar do dia, além da narrativa afetuosa de Yabaiwa. Nessa tessitura, a infância Yudjá, potente, livre e autônoma.
Texto: Gabriela Romeu
Fotos: David Reeks/Waapa