O que alimenta o corpo também alimenta a alma? É uma pergunta nos ronda em vários momentos do documentário “Banquetes imaginários”, um filme que convoca silêncio, só interrompido pelo ranger de portas e assoalhos, por murmúrios em noites profundas, pelo zunido do vento nos campos de concentração.
Estamos na Alemanha, idos de 1944, e uma voz nos conta que corpos esquálidos tremiam na paisagem branca. E não só pelo frio que cortava a pele. Mas devido à fome. Ali sobreviveram poucos em meio a um exército de homens e mulheres famintos, “desesperadamente famintos”, enfrentando um cruel racionamento de alimento que perdurava meses, com muitas vezes apenas um “líquido preto” (café?) a escorrer pelas paredes do estômago.
Em meio à inanição, a imaginação. Os concentrados, das mais variadas procedências, escreviam receitas familiares em restos de papel e pedaços de tecido, alguns encapados com ferragens de fuselagens de guerra. Verdadeiros banquetes se faziam em palavras e sussurros, uma espécie de reza de muitas vozes. Os cadernos foram guardados em sigilo, alguns preservados no tempo.
O filme de Anne Georget mergulha nesses registros, feitos em campos de concentração e de trabalho na Alemanha, na Rússia e no Japão. A cineasta leva os documentos à leitura de historiadores, filósofos, psicanalistas, neurologistas e chefes de cozinha, que radiografam os ingredientes, as medidas, os métodos. Algumas receitas traziam com precisão o que só habitava as lembranças. “O sofrimento é tangível nessas receitas, a dor é palpável”, comove-se Olivier Roellinger, renomado cozinheiro francês.
Christiane Hingouët, sobrevivente dos campos de concentração nazista, relata o árduo cotidiano vivido, da lida que se estendia por 12 horas ininterruptas, com pequenas rações diárias (um pedaço de pão, uma salsicha, um caldo ralo). “É terrível sentir fome. Não falo de fome antes do café da manhã. Falo de fome depois de dois anos de inanição. Terrível. É o que mais me marcou. Mais do que as surras.”
Ela não sabia cozinhar, sequer fritar um ovo, mas inaugurou um “banquete imaginário” por meio de muitas descrições de como fazer bolos, sopas, pudins. Conseguia se imaginar cozinhando aquelas iguarias coletivamente relembradas, registradas e sonhadas, numa intensa comunhão daquela fantasia glutona. Às vezes, as receitas embalavam as conversas da hora de dormir. A boca salivava.
Alimento simbólico, transmitido de uma pessoa para outra, as receitas pareciam libertar aquelas pessoas da privação. E depois de uma refeição gourmet imaginária, o alívio. Estavam juntos, reunidos, como num almoço de domingo, partilhando coletivamente o momento. Resistiam naquela fantasia em que a comida, expressão social e cultural de um povo, significava fortemente a ideia de pertencimento a algum lugar que não aquele. Representava a própria existência.
Vestígios familiares surgem nas receitas, do primeiro mingau na infância aos banquetes de casamentos. Sopas, bolos, pudins, ensopados e caldos, refeições simbólicas, de algum jeito uniam aqueles que estavam apartados da família, da casa. Da vida.
Por que não falavam de livros, músicas ou pinturas? “Algumas pessoas não ouviam música, outros não tiveram a sorte de apreciar literatura ou ainda a oportunidade de admirar pinturas. Mas todos tiveram o prazer de experimentar uma boa comida”, explica Roellinger, destacando a universalidade do alimento, disparador de lembranças e afetos.
Escrever os cadernos de receitas foi uma forma de sobrevivência, talvez um ato de resistência, revela um dos entrevistados. Uma resistência baseada no encontro, na partilha e no prazer, que de algum modo os libertou naquela vida simbolizada num banquete imaginário.
Texto: Gabriela Romeu