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Olhares Olhares 2016

O tempo e a natureza como mestres da infância

A imersão foi total. Nessa fria manhã de São Paulo, a sala 1 do Espaço Itaú de Cinema Augusta esteve lotada por gente querendo ver, entender e sentir um pouco da experiência vivenciada por Suzanne Crocker e sua família. A canadense decidiu, com seu marido, deixar a vida na cidade – e seus confortos – e passar um período numa região inóspita e gelada no Território de Yukon com os três filhos. Chegaram a pegar – 51oC.

Lá, na cabana que construíram e onde passaram nove meses, não tinham eletricidade, água corrente, acesso para estradas e nem vizinhos.

“Todo o Tempo do Mundo” conta essa história, registrada pela própria protagonista-mãe- diretora – presente na sessão. Para quem tem reclamado da temperatura na capital paulista nos últimos dias, as cenas repletas de gelo, muita roupa, rio e galhos congelados estampadas na telona podem ter causado frio na espinha. Mas as relações entre os cinco membros da família, o afeto entre eles, a forte relação com a natureza, a criatividade das crianças em ocupar seus tempos livres certamente aqueceram a sala de cinema.

Suzanne queria ter uma outra perspectiva, criar uma nova relação com os filhos – com 10, 8 e 4 anos na época. Sentia, em alguns momentos, que estavam se separando. Surgiu então a ideia da viagem – bem anterior à decisão de registrar o dia a dia deles (e originar esse documentário). E agora, mesmo que cinco anos tenham se passado, ela conta que “sente tristeza todas as vezes que vê o filme: a tristeza de sair do mato”.

Foi a relação com a natureza – com seus ciclos e nuances – e a proximidade entre os pais e seus filhos que gerou tanta riqueza. Foi lá que Suzanne sentiu uma “grande alteração da mentalidade” ao dizer muito mais “sim” aos filhos que os habituais e preventivos “não”. Uma das crianças menciona “aquela grande cama familiar” como um dos momentos mais especiais da experiência. Em outro momento, ouvimos também vindo das pequenas: “não, não estou pronta para deixar o mato”.

Na conversa que se seguiu à exibição, a mãe / diretora reforça a questão do tempo e sua percepção. No documentário, ela pontua: “foi incrível o que aconteceu sem relógios: quando se retira essa estrutura do tempo, ficamos no presente”. Atualmente vivendo no Canadá em sua cidade de origem – com seus 1500 habitantes – Suzanne diz que não usa relógio de pulso, não tem celular e o computador necessário para o trabalho é trancado no armário quando não está sendo usado.

Para ela, é fundamental estar integralmente no momento presente. Seus filhos não têm tela à disposição – em nenhum formato – garante que não sentem falta e sabem usufruir de seus tempos livres. Suzanne defende que as crianças precisam de tempo e espaço; que com esses elementos, as brincadeiras surgem, a criatividade brota e as experiências acontecem naturalmente.

Gandhy Piorski, pesquisador da infância, presente no bate-papo, relembra uma fala de Ailton Krenak, líder indígena que esteve na primeira Roda de Conversa da Ciranda. Diz que “a natureza é mesmo como uma mãe rigorosa”. E ele elogia a coragem de Suzanne e seu marido em levar os filhos para um lugar gélido, isolado com o risco de se pegar a “febre da cabana” (referência a algo como o delírio, provocado por temperaturas muito baixas). “Poucas mães têm a coragem de mostrar, de fato, a severidade das coisas”.

Piorski enfatiza também a “busca de um propósito” vivida por aquela família. E destaca a importância das experiências: “As crianças precisam desse grau de inteireza”. Menciona como exemplo, o fato de todas elas manusearem instrumentos reais, como machados e brinca sugerindo que, se fossem de plástico, soaria “falso” porque não repercutiria no corpo.

Texto: Regina Cintra

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Quando o cinema vai à escola

A data era junho do ano 2000. Na França, o Ministro da Educação Jack Lang decidiu reunir uma série de consultores para um projeto cultural, denominado Mission. Queria trazer educação artística e ação cultural às escolas de seu país. Um desses convidados foi o cineasta, crítico de cinema e professor universitário Alain Bergala, que garantiu a ressonância da iniciativa pelo mundo, mesmo que a experiência francesa se mostrasse, anos depois, inacabada.

Nas escolas, o cineasta europeu sempre buscou desviar o foco de uma leitura analítica e crítica dos filmes. Acreditava que seria mais proveitoso o que chama de leitura criativa, “que coloque o espectador no lugar do autor; que o leve a acompanhar, em sua imaginação, as emoções de todo o processo criativo, suas escolhas e incertezas.” É o que explica a pesquisadora Adriana Fresquet ao comentar o trabalho de Bergala. Ela teve uma experiência semelhante com escolas públicas do Rio de Janeiro.

Com a consultoria do cineasta francês, coordenou a ação que criaria escolas de cinema em seis instituições públicas do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2013. Tudo isso como parte de seu estudo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde leciona na Faculdade de Educação e coordena o projeto de pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na Educação Básica e o Programa de Extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Reuniu suas impressões no livro Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e fora da escola.

A obra traz levantamentos sobre o lugar do cinema na escola. Um dos pontos levantados é o da potência artística de despertar a imaginação, plano essencial à infância. Cita Vygotsky ao assumir a esfera imaginativa não como  um “divertimento caprichoso do cérebro”, mas sim “uma função vitalmente necessária”, já que não parte apenas de nossos acervos mnemônicos, relativos às memórias, mas também é capaz de sonhar e projetar um futuro. O cinema traria, então, o que ela chama de uma transformação contínua da realidade. Desta vez citando Migliorin, relembra que “o que talvez o cinema tenha para ensinar seja a sua essencial ignorância sobre o mundo, ponto exato em que criação e pensamento se conectam”.

Além disso, a imaginação dá lugar à alteridade. A uma criança que nunca esteve na Amazônia ou até no antigo Egito, o conhecimento de outras realidades pode “alargar as possibilidades do conhecimento”. Isso porque a arte faz pensar, sim, mas também faz sentir. Vale-se de afetos, sensações; nos faz intuir, adivinhar, suspeitar. Parte na contramão do chamado conhecimento formal para nos apresentar o conhecimento sensível. “Trata-se de um conhecimento que, como as imagens do cinema, fica tensionado entre a crença e a dúvida, pelo que nos oculta e revela de seu processo”, explica em seu livro.

Esse tipo de conhecimento valoriza a experiência (em alemão, erfahrung), aquilo que “se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (viajar em alemão éfahren)”. Vai além da vivência do conhecimento formal (erlebnis), a “impressão forte que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”, relação cada vez mais presente entre as crianças e as velozes imagens às quais têm acesso.

Escolher um jeito de ensinar em detrimento de outro é, por fim, um ato político, como percebeu a documentarista Anita Leandro. “E se a longa história da relação entre cinema e pedagogia não passasse de uma feliz coincidência de pontos de vista, ou seja, uma confluência de posições políticas na escolha do lugar a partir do qual se constrói uma imagem do mundo?”, questiona. “As dimensões éticas e estéticas desse processo ficam inseparáveis, e desse modo, viram uma questão de educação, particularmente da escola, que, como o cinema, precisa lidar com os problemas de organização do espaço, da relação com o tempo e do questionamento do poder discursivo”.

Leia abaixo entrevista completa com Adriana Fresquet, que atua no grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD), e destaca projetos de educação audiovisual pelo país, espaços onde um filme “pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento”.

Você participa do grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Poderia contar um pouco sobre o grupo e seus estudos? Em quais pesquisas estão trabalhando no momento?

O grupo de pesquisa e extensão CINEAD nasceu em 2006, com uma forte vocação para aproximar o cinema da educação, articulando nessa ponte a Universidade com a Educação Básica, seus professores e estudantes. Os projetos de pesquisa chamam Currículo e linguagem cinematográfica na Educação Básica e Cinema no hospital? Em ambos, procuramos identificar a potência do encontro do cinema com professores e estudantes, uma potência que é pedagógica, ética, estética, política.

Poderia explicar o que denomina “desaprender” em seu conceito de Cinema para Desaprender, falar um pouco sobre a complexidade desse termo?

Desaprender é lembrar de aprendizagens antigas e escová-las a contrapelo, isto é, identificar aprendizagens que hoje carregamos transformadas em (des)valores, quase crenças, por tê-las aprendido em contextos afetivos importantes dos quais é difícil dissociá-las sem arriscar alguma destruição da relação onde nasceram. Aprendemos (quase) sem defesas quando confiamos no/a outro/a. Nessas aprendizagens vêm misturadas todas as misérias, preconceitos e gestos de discriminação próprios da incompletude e imperfeição  da condição humana e inclusive das coisas, como afirma Passolini, ao afirmar que há uma potência pedagógica das coisas que vemos desde que nascemos que nos ensina de modo quase irrevogável uma determinada classe social, perspectivas do mundo, modos de estar e ser.Desaprender é fazer o esforço cotidiano e coletivo de revisar os nossos aprendizados, colocá-los sob suspeita, aderir a alguns, rejeitar outros, como se fosse possível arrancá-los de debaixo da pele. Desaprender é condição para reaprender com os outros, com o mundo, renovando significados e sentidos do conhecimento.

Parece que esse termo implica em uma noção de educação e de infância que vai além de seu conteúdo pedagógico. Está mais relacionada a uma experiência. Há espaço para esse tipo de vivência nos dias de hoje? Como o cinema pode contribuir pra isso? 

Desaprender constitui também uma parcela da educação e da infância que habita em nós. Se analisamos etimologicamente, educação vem do termo latino educare, é composto pela união do prefixo ex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir” ou “levar”. E efetivamente hoje entendemos a educação como esse espaço/tempo dedicado a endereçar a atenção ao mundo. No sentido de sair um pouco de si, e da tendência autocentrada e self-maníaca que volta para nós mesmos até os celulares a cada nova fotografia. O termo escola vem de skolé, “tempo livre”.

É justamente esse espaço escolar o cenário principal para ela dedicar um tempo para orientar a atenção para o mundo, afastando-na um pouco dos próprios desejos individuais, singulares, tão infelizmente produzidos pelo mercado e pelo capital. Entendemos também a infância como gesto, como nascimento, como pergunta. Nesse sentido, o cinema, seja na tela da projeção ou no display de uma câmera quando fazemos produções na escola, nos convida a expandir esse “tempo livre”, para olhar através delas para o mundo, um mundo que está aí, dado de uma determinada maneira aqui e agora, mas que é produto de infinitas escolhas e ávido de alterações.

Ao ver uma imagem do trânsito no Rio de Janeiro, por exemplo, podemos ter uma noção dessa realidade, mas também podemos imaginar como poderia ser diferente e ativar o pensamento para mudar, para inventar um outro modo de distribuição do trânsito na cidade. Entender que o plano que vemos resulta de uma câmera que foi colocada a uma certa altura, a uma certa distância, a uma certa hora do dia, que ativou uma determinada paleta de cores na montagem, mixando camadas de som gravadas em diferentes dias… significa imaginar que o mundo (ou a imagem que vemos dele) também poderia ser outra. E o melhor, que cabe também a nós a possibilidade de alteração. Desse modo, o cinema e a educação acabam coincidindo na sua matéria-prima: a realidade. E na sua maior aposta: olhar para ela visando imaginá-la como sonhada. Sonhada com os olhos bem abertos.

Para o velho Vygotsky, cada geração sonha a próxima e a acorda no ato de sonhá-la, assim a transformação (da realidade, do mundo) parece ser a promessa que traz por efeito focar no desenvolvimento da atenção ao mundo, objetivo fundamental da educação.

Existem experiências em escolas que compreendem o cinema como uma manifestação artística e cultural, e não como um simples instrumento?

Bom, eu acredito que nas escolas onde se vê cinema e se faz cinema (entendendo o cinema na escola como um tipo de cinema expandido), ele entra de maneira perturbadora, alterando os espaços e tempos escolares, um certo status quo. Provocando a imaginação e a memória para ver, rever e transver o mundo, assim como queria o poeta Manoel de Barros.

Agora bem, o cinema reduzido a “simples instrumento”, o filme utilizado como “recurso didático” pode ter efeitos independentemente da intencionalidade do professor. Isto é, mesmo que um professor projete o filme Vidas Secas para falar de Graciliano Ramos, numa aula de literatura, ou para falar da seca no Nordeste, o encontro dos estudantes e de outros professores e funcionários que eventualmente também o assistam tem um espaço de autonomia totalmente emancipado dos objetivos docentes. Uma cena pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento, contagiar a urgência de dar a ver esse filme a familiares, entre outras possibilidades não previstas necessariamente pelo professor. E acho que é aí onde radica a brecha principal que fura toda opacidade da relação do cinema com a educação.

Como o educador hoje pode criar um repertório maior da arte cinematográfica, além de, claro, assistir aos filmes? Quais os desafios de formar educadores preparados para trabalhar a linguagem audiovisual nas escolas?

Hoje é mais fácil pensar na ampliação de repertórios que outrora. Haja vista que muitos filmes estão disponíveis na rede e de modo gratuito. Acredito que boas curadorias de cinematecas, museus de imagens e sons, cineastas, professores de cinema, cinéfilos, cineclubistas podem ser dicas válidas para quem está iniciando os primeiros passos. Depois, as conexões rizomaticamente o levarão a desviar-se do caminho, que não é outra coisa, segundo Kafka, que o desvio, do desvio do desvio. A ampliação do repertório é sempre a outra cara da moeda que reconhece a cultura do estudante, do professor. Mas como o tempo das artes é tão curto na escola, efetivamente privilegiamos as ações que visam ampliar repertório. O melhor modo que temos encontrado de reconhecer a cultura do aluno ou do professor nos cursos de formação é trabalhar com motivos visuais do cinema. Por exemplo, um adulto falando com uma criança. Quantos filmes apresentam uma situação como essa? Se solicitarmos aos estudantes trazer fragmentos de filmes onde haja planos com essa situação, podemos projetá-los juntos dos que nós mesmos estejamos propondo e ponderar a multiplicidade de possibilidades que uma filmagem de uma determinada situação pode gerar.

Acredito também que é preciso multiplicar experiências de formação dos professores de pedagogia e licenciaturas em experiências mudas coletivas de assistir filmes juntos, comentá-los, ouvindo de preferência análises de pessoas que entendem da linguagem para não ficar em simples análises críticas de conteúdo, em lugar de fazer análises criativas, aprofundando conceitos de história, linguagem e estética. Paralelamente considero necessário que novas licenciaturas em cinema continuem a surgir para ampliar e aprofundar os conhecimentos dos profissionais que trabalhem com essa temática nas escolas, inclusive junto dos professores sem formação ou com uma formação mais básica.

Você tem notícias de experiências ricas de cinema na escola? Poderia dar exemplos?

Nós tentamos fazer experiências ricas em cinema, em primeiro lugar, com o Colégio de Aplicação, onde começamos refletindo sobre a infância no cinema, assistindo a filmes e desenvolvendo seminários de leituras, depois sugerimos às próprias crianças, estudantes, agir como co-pesquisadores, refletindo juntos sobre esses filmes e a partir de 2008, convidamos a crianças e adolescentes a fazer seus próprios filmes inspirados no cinema.

Desse piloto, surgiu um processo de criação de escolas de cinema em escolas públicas do Rio de Janeiro. Entre 2011 e 2013 o grupo/programa CINEAD da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro criou seis escolas de cinema em escolas públicas de Ensino Fundamental no Rio de Janeiro. O projeto contou com a consultoria do cineasta e professor Alain Bergala e promoveu um ano de formação e um ano de acompanhamento dos trabalhos desenvolvidos nas escolas. Bergala acompanhou a elaboração do curso, assistiu às produções dos professores e no ano seguinte os primeiros trabalhos dos estudantes. No final, gravamos um abecedário de cinema para compartilhar seus saberes e práticas com qualquer interessado em ouvir suas reflexões sobre cinema e educação.

Existem vários antecedentes muito importantes de cinema na escola, por exemplo, o CINEDUC, no Rio de Janeiro, que há quase 50 anos vem desenvolvendo atividades de formação de professores e de oficinas de produção audiovisual. Dez anos também tem já o maior projeto audiovisual de um Estado: o Programa de Alfabetização Audiovisual, em Porto Alegre, que coordena ações do Ministério de Cultura, Educação, da FaE/UFRGS, da Cinemateca Capitólio e ainda dialoga com as secretarias do Estado e do município, é único no país com essas características. Mais recentemente, encontramos um projeto de grande capilaridade em todo o pais que é o projeto Inventar com a Diferença (IACS/UFF). Um outro projeto maravilhoso que faz parte do projeto internacional francês é Cinema: 100 anos de juventude, coordenado pela cinemateca francesa. Na UFMG, o grupo Mutum também vem desenvolvendo atividades potentes inclusive em espaços sócioeducativos.

Na Bahia, destaco o projeto Janela Indiscreta com mais de 30 anos de caminhada levando o cinema nacional e oficinas de produção desde a terra de Glauber, Vitória da Conquista, até infinitos pontos do sertão baiano. Na Paraíba, projetos como Cinestésico tem feito uma enorme contribuição ao cinema nacional. Correndo o risco de ser injusta por estar omitindo projetos importantes no país, apenas destaco alguns que conheço mais e melhor por fazer parte da REDE KINO e para poder responder essa pergunta tentando abarcar alguns exemplos no pais, cada vez mais é impossível ter não esse conhecimento de modo acabado.

“A pedagogia do cinema frequentemente esbarra no modo como se apropria de seu objeto. Ora, importa muito mais, diante deste objeto complexo, vivo e indócil, ter uma atitude justa do que se agarrar a um saber tranquilizador.” Poderia comentar essa citação de Alain Bergala? Ela se relaciona com a sua ideia do Cinema para Desaprender?

Para Bergala, é preferível trabalhar com um professor que não sabe nada de cinema do que com professor que acha que sabe porque sabe um pouco, algo apenas. Saber algo pode tranquilizar o professor e deixá-lo passivo. O professor que sabe que não sabe e está interessado não para de querer saber, de procurar, de estar alerta a tudo o que pode ser uma aprendizado. O conceito de desaprender, como respondi na segunda pergunta, refere-se mais a necessidade de colocar dúvidas nas nossas certezas, de manter uma relação viva com o conhecimento do mundo, sem considerá-lo como acabado, pronto, inalterável. Suspeitar da veracidade dos próprios valores para assim, ratificar ou retificá-los a cada dia.

 

Orson Welles era cético quanto ao ensino de apreciação das artes nas escolas. Defendia que mesmo que um jovem soubesse todos os poemas de Shakespeare, não necessariamente se tornaria um poeta. O que o professor poderia fazer é o que chamou de “comunicar entusiasmo”, deixando o aluno com as suas próprias experiências. Poderia comentar essa afirmação de Welles? Afinal, é possível ensinar a apreciação da arte nas escolas? 

Como ouvi uma vez dizer, as artes se contaminam, se contagiam, se há uma forma de ensinar, realmente é por contágio, por comunicação de uma inspiração fundamentalmente. Bergala faz uma crítica do ensino das artes, especialmente quando ela parte da linguagem. Quando uma certa “gramática do cinema” predomina sobre a experiência sensível das imagens e sons.

Mas, no nosso caso, temos sim uma defesa do ensino de artes na escola, porque é um espaço conquistado pelos professores de Artes Visuais, depois de muitos anos das artes serem consideradas algo inferior em termos curriculares, sem a categoria de disciplina. Hoje Artes já é uma disciplina escolar “hierarquizada”, mas paga esse direito tendo que se ajustar a formas e formatos típicos de disciplinas como Matemática ou Português, tais como fazer prova, por exemplo. O conceito de desaprender consiste em revisar as aprendizagens tentando situá-las cronologicamente, identificando preconceitos e desvalores que foram aprendidos em outros momentos, um gesto ou um esforço por questionar permanentemente as próprias crenças, fundamentos, hábitos, valores.

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A complexidade da vida nas narrativas infantis

Bonnie, uma menina de 9 anos apaixonada por elefantes, está desolada com a morte da avó. À noite, enquanto a avó permanecia imóvel, no quarto ao lado, ela tentava dormir quieta. Mas logo se lembrou de como agem os elefantes numa situação difícil: nunca deixam os seus “parentes” para trás. Foi quando decidiu ir ao encontro da avó morta, sobre a cama. Deitou-se ao lado dela, sem receio do corpo inerte. A mãe de Bonnie, que viu a cena ao entrar no recinto, não hesitou em (estranhamente) cobrir com um lençol as duas, filha e mãe morta, aconchegando ambas em um terno abraço.

Quem escreveu essa cena tão inquietante quanto afetuosa foi a roteirista holandesa Mieke de Jong, autora de dezenas de séries e filmes para crianças. Premiada por suas criações cheias de personagens densos, em situações intrigantes, tais como a descrita acima, ela ministrou em fins de setembro uma master class no Fórum Pensar a Infância, do 15FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil), em São Paulo. Numa sala repleta de realizadores e educadores, difícil quem não saiu inspirado com a fala potente sobre como escrever obras que não consideram a criança “pequena”, assim como define a roteirista. Uma aula e tanto.

“Como fazer filmes sérios de um jeito divertido?”, questionou de pronto. É que “sem humor, a vida fica insuportável”, completou na sequência. Nos filmes da roteirista, os personagens infantis enfrentam desafios da vida real, como abandono, conflitos familiares, preconceito e pais difíceis, como a mãe bipolar de Bonnie, ao mesmo tempo em que têm um elefante no quintal, podem ganhar asas para voar ou ter um professor que se transforme em sapo. A fantasia, no entanto, nunca é uma fuga. “Um bom filme, assim como um bom livro, ajuda a gente a entender um pouco mais o mundo que habitamos”, diz Mieke, que sabe abarcar a estranheza em suas histórias.

A explicação para a criação de histórias com temas desafiadores, que levam seus personagens ao extremo, está na busca por entendê-los. “Em tempos difíceis, você conhece seus personagens. Eles se mostram. Só nesses momentos vemos quem realmente são, como se sentem, o que desejam”, conta Mieke, que propõe filmes críticos e reflexivos às crianças. São obras que falam da vida em sua mais pulsante verdade. “Gosto de levá-los a sério. Gosto de filmes com personagens complexos que me surpreendam, fazendo o que você nunca esperaria que eles fizessem, mas que entenda quando os veja fazendo.” Difícil não se comover (e também se divertir) intensamente com seus personagens, que, acredita, vêm antes da narrativa.

“Do ponto de vista das crianças, dá para contar todas as histórias, abordar todos os temas”, diz Mieke, que fala inclusive de sexo, ainda um tabu nos dias de hoje, na história da menina Bonnie. Tal preceito, que faz parte da bíblia de qualquer profissional empenhado em produzir para crianças, raras vezes é aplicado com tamanha habilidade. Em Mr. Frog (Professor Sapo, em tradução livre), por exemplo, ela conta a história de um professor que se transforma em sapo, em uma alegoria ao tema da homossexualidade. Tudo é contado pelo ponto de vista de uma de suas alunas, uma menina solitária, sem pai e cuja mãe vive ocupada. É ela quem o ajuda na tarefa de entender diferente. Mieke nos descortina o mundo infantil em seus filmes.

 

“Quanto de tristeza podemos mostrar às crianças?”, questiona Mieke, convidando a plateia de produtores a pensar. Uma de suas produções mais recentes é uma série de TV (20 episódios de 10 minutos cada um) intitulada Sem família (Nobody’s Boy, em inglês), inspirada num tradicional livro francês do século 19, escrito por Hector Malot – várias outras produções nasceram dessa história. A série traz as desventuras de um menino órfão pelas ruas da Holanda dos dias de hoje para encontrar sua tão sonhada família.

 

Escrever para meninas e meninos é tarefa de grande responsabilidade, já que as crianças ainda estão em processo de conhecer o mundo que lhes está sendo narrado. Na tela de cinema são expostas a diferentes realidades, diz a roteirista. “Você pode viver a vida de outra pessoa por um tempo. Você descobre o que ela sente, pensa e fala, pode se tornar uma pessoa mais compreensiva.” Para atender a essa missão, busca uma conexão com a criança que um dia foi. O universo infantil está ali, em cada espectador. Todos já passamos pela experiência de ser criança, e é isso que busca resgatar.

Ela não defende finais felizes em suas histórias, mas destaca que nunca escreveria um filme sem esperança. Nem sempre seus personagens conseguem necessariamente o que buscam. “Mas conseguem outra coisa. Algo que precisavam até mais.”

Em Tony Ten, o protagonista faz de tudo para manter unidos os pais que vivem em desavenças. Diferentemente do esperado, não vence no final, quando descobre que o melhor é que se separem de vez. É o que ela chama de “moral winner”, uma espécie de vencedor moral. “Nos meus filmes, as crianças sempre vencem, mas nem sempre conseguem o que sonhavam inicialmente”, conclui a roteirista, que bem sabe abarcar a tristeza e a estranheza numa mesma receita recheada de empatia. Traz a vida como ela é, com todas as suas complexidades, enredada com poesia, humor e fantasia de um jeito suave, tal como o voo da menina-passarinha do longa-metragem Iep!.

 

Para saber mais, leia entrevista que Mieke de Jong deu à jornalista e roteirista Gabriella Mancini há alguns anos.

Texto: Gabriela Romeu e Luisa Cortés

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Mestres de muitos cantos, todos de um só rio

Já tem um tempo que a terceira Ciranda girou, soprando notícias de mestres em tempos de incerteza. Mestres versados de muitos saberes – do chão e do silêncio, do gesto e do brincar, do barro e do tempo, da palavra e da imagem. Eram artesões, estudiosos, griôs, cineastas, cantadores, educadores, meninos e avós, todos juntos, numa roda só. Vieram de muitos cantos, falando muitas línguas, mas todos navegando por um mesmo rio que margeia memórias, gentes e cidades.

E chegaram com o vento do mais tenebroso inverno, no documentário-diário “Todo o Tempo do Mundo”, avisando que a natureza ensina na pedagogia da solidão. Brotaram na relação afetuosa entre crianças e velhos, no singelo curta “Ba”. Nasceram nas mãos de saberes ancestrais das ceramistas do Vale do Jequitinhonha (MG), retratadas em “Do Pó da Terra”. Viajaram pelas paisagens folclóricas, em expedições etnográficas empreendidas pelo modernista Mario de Andrade (“Mário e a Missão”).

Entre as diversas sessões de longas e curtas, de ficção e não ficção, a Ciranda girou em vivências que tinham como suporte a lousa, deslocada de sua posição vertical tradicional, ou que tinha como linguagem o barro, mestre de saberes ancestrais. Na extensa programação, as inspirações emergiram de uma delicada instalação com memórias da infância do público, assim como também da singela exposição com brinquedos de Seu Paulo, “daqueles meninos que insiste em envelhecer o corpo carregando sua infância pelo tempo”.

As incertezas feitas em ensinamentos também giraram nas três rodas de conversa, que elegeram o homem, a natureza, a cidade e a arte como potências de maestria. E assim, em tardes em que o ouvir pediu licença ao olhar, já tão encantado pelas imagens refletidas nas telonas, reuniram-se mestres de saberes ancestrais, tradicionais e contemporâneos, incluindo liderança indígena, artesã da palavra cantada, coletivo que faz arte no meio urbano, educador-questionador e artistas de múltiplas linguagens.

Ailton Krenak inaugurou a roda de conversa “Mediador de Mundos” lembrando que a palavra “ciranda” já é uma “grande convocatória”. E Krenak, nesse chamado do cirandar, evocou seu maior mestre, “a intangível entidade que é a natureza”, força manifesta das correntezas aos corguinhos (no seu jeito mineiro de dizer córrego pequeno). “A natureza me ensinou o sentido de liberdade”, disse com sua voz maviosa a liderança indígena, que iniciou a prosa com um pequeno “flash de sua alma de menino”, assim como os demais proseadores da Ciranda, como a artesã mineira Lira Marques e o educador português José Pacheco.

Os mestres todos – a natureza, as artes, as gentes – foram sendo lembrados nas rodas como numa grande colcha de pensamentos tecidos e entrelaçados. Assim, a ancestralidade do povo de Krenak (hoje, 350 indivíduos) foi relembrada pela potência de Beatriz Goulart, mais que urbanista e arquiteta, durante a prosa “Maestria do Chão”. “Essa ancestralidade a gente vai perdendo na cidade. Como eu escuto o som do rio que passa enterrado?”, disse Beatriz, que aprendeu a ouvir o chão em perguntas como “para onde venta?” e “onde é que chove?”.

Chão de asfalto, a “cidade é a maior obra humana”, complementou Joana Zatz, do coletivo Contrafilé, que sempre transita entre a prática e a reflexão no entrecruzar do urbano, da arte e da política. “A cidade é viva. A maior obra de arte do homem é a cidade, que é uma obra que a gente faz para viver dentro. Então, nesse sentido, a cidade não está pronta, não está acabada. O urbano é o lá fora, é o asfalto, é o prédio? Não. O urbano é uma força viva, somos nós produzindo o urbano, assim como o espaço público.”

Nesse diálogo tramado entre rodas, a bailarina e coreógrafa Georgia Lengos lembrou que gente é também natureza. E o rio evocado lá no começo nas palavras de saberes remotos de Krenak desaguou também em sua fala: “Temos que pensar que a gente é barro e que lá dentro tem um rio”. Diretora da companhia Balangandança, ela falou do ser humano como um círculo vibratório de movimento, “essa forma circular que está presente no sol e na lua”, e que nasce no “movimento elétrico de um espermatozoide”.

Mesmo que em três rodas, os nove proseadores estavam todos na mesma ciranda. A criança estava sempre lá, no centro. Uma das proseadoras, a mais que urbanista Beatriz Goulart, em suas reflexões sobre cidade, escola e criança, definiu trouxe uma definição certeira sobre infância: “símbolo da afirmação”, “metáfora da criação do pensamento”, “sem temporalidade linear”, a partir da perspectiva do filósofo argentino Walter Cohan.

Poeticamente, a Ciranda terminou com uma despedida da infância. Da infância de Maria Fabrislene, rainha do reisado em seu último ano de reinado em “Meninos e Reis”, e de um menino que sonha intensamente em ser palhaço e trapezista debaixo da lona armada em seu quintal (“Jonas e o Circo”). Dois filmes que retratam ritos de passagem. Mas era fim e também recomeço, tal qual anunciado nos versos de Ferreira Gullar para “O Trenzinho Caipira” (Heitor Villa Lobos), música tema desta terceira edição:

“Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a girar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar…”
 
Texto: Gabriela Romeu
 

 


Fotos: Aline Arruda

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Mário de Andrade no Clube do Professor

A Ciranda de Filmes inaugura um ciclo de sessões no Clube do Professor com o intuito de dar continuidade às conversas em torno dos filmes e temas da mostra, pioneira no Brasil na abordagem da infância e educação.

Na primeira sessão deste ciclo, exibiremos o filme “Mário e a Missão”, do diretor Luiz Adriano Daminello, que refaz o trajeto das legendárias expedições comandadas pelo escritor modernista Mário de Andrade para pesquisar manifestações folclóricas e da cultura popular do Brasil. O poeta Mário de Andrade foi homenageado na Ciranda de Filmes 2016, que teve como tema Mestres, referências para um tempo de incertezas.

“Descobrir e registrar as narrativas populares foram uma das grandes missões e contribuições de Mário de Andrade para o Brasil, país que já nasceu ideia de teceduras de culturas, cosmologias e sincretismos. A cultura popular que nasce e se manifesta das ruas e dos terreiros. Mário ocupou-se de coração e alma, toda sua vida, para narrar a poesia das manifestações populares. Narrador digno das narrativas para as quais se dedicou. Um narrador-guardião, aprendiz da alma do povo, cultura que antes do modernismo brasileiro não era reconhecida ou valorizada.” Vanessa Fort para a Ciranda de Filmes

Logo após o filme houve um bate papo com o cineasta, documentarista e diretor de fotografia Luiz Adriano Daminello, que atualmente é professor de fotografia da Universidade Federal do Pará e realiza suas pesquisas cinematográficas pelas comunidades que habitam a margem do Rio Amazonas, e com o pianista, percussionista e etnomusicólogo Paulo Dias. Paulo é fundador e diretor da Associação Cultural Cachuera! e um grande pesquisador da cultura popular tradicional e da música de raiz brasileira e de suas comunidades produtoras.

Sinopse:
“Mário e a Missão” é um longa-metragem derivado da série com mesmo nome. Mostra as pesquisas sobre as manifestações folclóricas realizadas pelo escritor modernista Mário de Andrade, desde sua lendária viagem pelo rio Amazonas indo de Belém a Iquitos no Peru, sua Viagem Etnográfica pelo Nordeste, até a Missão de Pesquisas Folclóricas comandada por ele em 1938. O documentário apresenta um extenso material de arquivo e refaz o trajeto das expedições, registrando na atualidade os mestres das mesmas manifestações estudadas por Mário de Andrade.

Direção: Luiz Adriano Daminello

Roteiro: Luiz Adriano Daminello, Ligia Schiavon Duarte, Simone Azevedo, Maristela Tredice, Decio Filho

Fotografia: Luiz Adriano Daminello, Marcelo Sponberg, Marcio Langiani

Montagem: Luiz Adriano Daminello, Lídia Chaib, Osmar Jorge Bush, Marcelo Ruggiero, Ligia Schiavon Duarte, Cristina Amaral

Produção Executiva: Jorge Palmari

Som: Márcio de Oliveira, Durval Leal Filho, Armando Onofri

Elenco: Paschoal da Consceição, Marcos Azevedo, Andre Boll, Chico Carvalho, Fernando Alves Pinto, Silvio Restiffe, José Rubens Chachá, Natalia Barros

Produção: Luiz Adriano Daminello

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Olhares Olhares 2016

O voo da infância no cinema

“Quando saio com ele, alguém diz:
‘É Billy Casper e seu falcão de estimação’.
Eu fico doido. Ele não é um bicho de estimação.
Ou quando vem alguém é pergunta: “É domesticado?”
Falcões não podem ser domesticados.
Eles são ferozes e selvagens.”

Cabelos desgrenhados, fala por vezes sussurrada e olhar perdido no horizonte, Billy Casper é um menino franzino, amiudado por um entorno hostil, tanto em casa como na escola, um “verdadeiro inferno”. Num intenso desejo de se libertar de sua condição carcerária, mira da janela da sala de aula os rasantes dos pássaros no céu. Até que certo dia captura um filhote de falcão, que é alimentado e treinado com afinco pelo menino, que projeta no voo da ave o voo da própria infância.

É a arte do visível, o cinema, que nos introduz no mundo invisível de Billy Casper, protagonista de “Kes” (1969), filme de Ken Loach, que traz uma representação metafórica da infância que se rebela da domesticação empreendida pelo mundo adulto. “Falcões não podem ser domesticados”, nos alerta o menino inglês, em meio a uma paisagem insistentemente cinzenta.

Esse universo-menino vulnerável é desvelado pelo cineasta britânico por meio de gestos, olhares e silêncios (nada esvaziados de dizeres, falares ou pensares). O filme nos coloca cara a cara com um “comportamento de infância, seu movimento, sua corporalidade, sua gestualidade”, segundo o educador e filósofo Jorge Larossa. É que o cinema é a verdadeira “escritura do gesto”, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben.

Essa ânsia por liberdade é tema recorrente nos filmes que retratam a infância ou o universo infantil. Assim, Billy Casper vem de uma linhagem de meninos que desejam romper com uma infância carcerária, ou as masmorras do mundo adulto. São meninos como o emblemático Antoine Doinel, de “Os Incompreendidos” (1959), obra de François Truffaut, cineasta para quem “nada é pequeno no que se refere à infância”.

Sim, o cinema tem muito a nos contar sobre a infância, a criança e o universo infantil em diferentes épocas, nacionalidades e culturas, com temas, perspectivas e concepções diferentes. São muitos os filmes que revelam o olhar genuíno das crianças e sua persistência poética diante da aridez do mundo, além de situações de vulnerabilidade, como abandono e violência.

Desde os primórdios do cinema, as crianças sempre estiveram presentes na telona. O menininho órfão de “O Garoto” (1921) e o bebê abandonado no carrinho que desce a escadaria em “O Encouraçado Potemkin” (1925) são só alguns exemplos da presença infantil nas narrativas cinematográficas das primeiras décadas do século 20.

Ao longos dos tempos, as crianças foram ganhando espaço e protagonizando suas histórias. Ainda assim, vemos muitos filmes em que meninos e meninas protagonistas figuram mais como uma “paisagem de infância”. Daria para dizer que estão tão grandes na telona quanto distantes da essência infantil.

São muitos os cineastas que nos levaram ao universo da infância pelas aventuras e desventuras de pequenos protagonistas – Carlos Saura, Abbas Kiarostami, François Truffaut, Louis Malle, Theodoros Angelopoulos, Roberto Rossellini, Walter Salles, Guillermo Del Toro, Ingmar Bergman, Wes Anderson e tantos outros. Ou, como diria Andrei Tarkovski, diretor dos clássicos “A Infância de Ivan” (1962) e “O Espelho” (1975), não é exatamente um retorno “ao território perdido da infância”, pois “talvez nunca tenhamos saído dele”.

Retorno ou não ao “território perdido da infância”, o cinema estabelece pontes entre o universo adulto e o mundo da criança. É a arte que nos desafia a ver o quanto nos distanciamos desse outro que também já fomos. Lança um olhar atento para a criança, que também nos olha. Para o crítico André Bazin, o olhar da criança “nos enfrenta (…), nos interroga, nos interpela, pede resposta muitas vezes”. E diz isso muitas vezes entre silêncios.

Segundo Sonia Krammer, no prefácio do livro “A Infância Vai ao Cinema”, encontramos na telona “ora um outro modo de conhecer as crianças, ora a expressão do mundo da maneira como as crianças veem, escutam e experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a subvertê-lo”.

Subverter o mundo. Eis uma das imagens mais fortes da infância no cinema. Um filme que bem ilustra tal questão é “Zero de Conduta” (1933), uma poesia selvagem do cineasta francês Jean Vigo que virou maldito e ficou proibido de ser exibida na França até 1946. Emblemático, o filme é considerado uma das poucas obras com olhar realmente subversivo para a infância; dificilmente seria feito nos dias de hoje. E tem as cenas de mais pura poesia subversiva da infância.

O filme traz um grupo de quatro meninos – Caussat, Bruel, Colin e Tabard, alter ego de Vigo – que se rebela contra o sistema repressivo e as rígidas regras de um colégio interno francês em um dia festivo. Numa atmosfera surreal, os meninos são bem sucedidos na rebelião e triunfam no telhado, numa cena que parece que vão alçar voo. O mesmo voo que representa a ânsia de de liberdade de Billy Casper, protagonista de “Kes”.

Que o cinema continue nos “emprestando” os olhos das crianças para que a gente possa enxergar melhor o mundo – e, claro, a subvertê-lo.

Texto: Gabriela Romeu, que, em parceria com Adriana Costa, desenvolveu a oficina Imagenário da Infância, que estreou na Ciranda de Filmes, em 2016, e segue circulando com outras discussões sobre cinema e infância. Nas imagens abaixo, um registro do encontro.
 
 
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Olhares Olhares 2016

Representações infantis nas artes

Rio de Janeiro, século 18. Entre a população escrava que crescia com os navios negreiros que incessantemente cruzavam o Atlântico, as crianças representavam dois entre cada dez cativos. Algumas eram doadas ao nascer; outras, já no fim da infância, vendidas. Com altíssima taxa de mortalidade infantil, a maioria morria antes de completar cinco anos de idade. E aquelas que persistiam enfrentavam a orfandade.

Se em muitos estudos as crianças são números, ainda que contextualizados, na exposição “Histórias da Infância”, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), meninos e meninas ganham corpo, cara e também voz, em diferentes tempos e espaços. Numa incursão por muitas infâncias – a das crianças do período Colonial, de povos indígenas, dos faróis das cidades grandes –, a exposição constrói uma ideia de infância por meio da arte e mostra como as crianças foram representadas ao longo de séculos.

Assim como Philippe Ariès, pesquisador francês que fez uma radiografia da infância a partir da Idade Média a partir das imagens (ou falta delas) representadas na arte pictórica, a exposição leva o espectador a tecer ideias de infância por meio das 200 obras expostas, organizadas por sete eixos temáticos – maternidade, escola, família, brincadeiras e morte, por exemplo – e dispostas na altura do olhar das crianças visitantes, estabelecendo um diálogo entre infâncias.

Fotografias, pinturas, vídeos e esculturas de artistas diversos como Renoir, Van Gogh e Portinari são misturadas a desenhos feitos pelas crianças, “desrespeitando hierarquias e territórios”, como bem define um dos textos curatoriais. Tal postura rapidamente nos remete a uma lúcida provocação do modernista Mario de Andrade, que não só colecionou desenhos infantis, como fez importantes leituras a partir dessas criações: “Primeiro: nós não damos importância ao que o menino faz. Acha-se graça e apenas. Segundo: damos importância por demais ao que os gênios catalogados fazem. Acha-se importante e guarda-se.”

A ideia de infância é uma construção social e varia conforme a época e a sociedade. Segundo Ariès, até o século XII, a arte medieval desconhecia a infância. Homens miniaturizados, sem nenhum traço de infância, muitas vezes faziam as vezes das crianças nas obras, num tempo em que nasciam e morriam, “não sem tristeza, mas sem desespero”, como escreveu décadas depois o humanista Montaigne (1533-1592). A ordem, definiu o filósofo, era “não reconhecer nas crianças nem movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo”.

Só lá pelo século XIII é que surgem representações de crianças um pouco mais próximas do sentimento moderno. Como a teologia acompanhará a representação da infância por muito tempo, um dos modelos mais recorrentes na arte pictórica é o do Menino Jesus, “ancestral de todas as crianças pequenas na história da arte”. Vestido com camisolas ou enrolado em cueiros, tal representação ganha também destaque na exposição.

Ali, entre as imagens que tratam dos temas natividade e maternidade, estão também fotografias que trazem as amas de leite negras com crianças brancas no colo, “uma face supostamente romântica das escravidão”, da “mãe negra dadivosa”. São retratos anônimos, pouco sabemos quem são essas mulheres que cuidam de pequenos senhores cujas identidades são geralmente reveladas.

Ao adentrar a exposição, a contraposição de obras provoca o olhar do espectador. Assim, uma pintura de duas meninas brancas, bochechas rosadas e vestidos de babados está disposta ao lado de uma fotografia de dois meninos negros, descalços e trajando sungas num piscinão.

Com gritante distância social entre as crianças retratadas, a primeira imagem é “Rosa e Azul”, as irmãs Alice e Elizabeth, filhas do banqueiro Cahen d’Anvers, representadas com doçura na pintura de Renoir. Já a fotografia (Sem Título, da série Brasília Teimosa), com os dois meninos de olhares convincentes, é de Bárbara Wagner. Apartadas de modo temporal, as duas imagens têm muito a revelar sobre o exercício de ser criança.

Percorremos a infância do nascimento à morte, tema que traz a emblemática obra “Criança Morta” (1944), de Cândido Portinari, além de “O Enterro”, de Jose Pancetti, e “Cemitério Caiçara” (1989), do fotógrafo Araquém Alcântara. Mais uma vez dialogando com o viés histórico da obra de Ariès, representações de crianças mortas, em retratos colocados em túmulos, começam a surgir por volta do século XVI. É um marco na história dos sentimentos relacionados à infância, cujos altos índices de mortalidade banalizavam sua (in)existência por muito tempo.

A partir do século XVII, as crianças passam a ser retratadas sozinhas, como na obra “Retrato de John Walter [ou Wharton] Tempest” (1779-80), de George Romney, que traz um menino-cavaleiro com vestes nobres. Ao seu lado, um outro menino, de um outro tempo, uma outra infância: a fotografia de “Vendedor de Amendoim” (1990), de Luiz Braga. São muitos os retratos que nos revelam as crianças em poses que encaram o espectador, às vezes de forma mais pueris, às vezes mais inquisidoras.

No eixo educação da exposição, ganha destaque a obra “O Escolar” (1888), de Van Gogh, mas nosso olhar é facilmente atraído para uma fotografia em preto e branco que tem um menino de calças curtas de castigo, virado para um canto da sala de aula. A escola nasce com o surgimento da infância, e a representação do espaço escolar como lugar das regras e das punições se contrapõem aos momentos livres, de brincar, nos espaços públicos.

Crianças indígenas, com corpos nus pintados, sendo “educadas” (“domesticadas”?) na mesma ideia de escola, com carteiras, cadernos e lápis, parecem pouco se encaixar ao sistema na fotografia “Escola Kayapó” (1991), de Milton Guran.

As crianças nos fitam. Estão na série “Crianças de Açúcar”, de Vik Muniz, feitas com filhos de trabalhadores das plantações de cana do Caribe; na onírica “Menino-anjo” (1963), de Maurren Bisilliat; num retrato anônimo de Dom Pedro II, imobilizado pelas vestes nada apropriadas para seu corpo de menino.

Numa das paredes da exposição, entre obras de dimensões agigantadas e entre uma diversidade de olhares para a infância, uma caixinha de Rochelle Costi, “Intimidades – A Vesga Sou Eu” (1984), pode passar despercebida. Mas ela sintetiza de forma poética e metafórica esse tempo-menino de muitas representações. É um inventário de pequenos restos e nadas – botões, fotografias, fitas de cetim – da infância.

Texto: Gabriela Romeu

 
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De quem é o coração que ouvimos bater?

“Caverna dos sonhos esquecidos”, do mestre Werner Herzog, é um diálogo sobre nossas poéticas: a matéria e a sensibilidade de que somos feitos, as imagens que pulsam a nossa mitologia, as traduções do tempo que ligam obras da natureza e do homem, a partir da compreensão do tempo como algo irreversível, impreciso e misterioso. 

No Sul da França foi encontrado um dos mais importantes sítios de arte pré-histórica do mundo, a Caverna de Chauvet. Um pequeno grupo formado por arqueólogos, pesquisadores e artistas adentrou a esse lugar para investigação de pinturas rupestres, até então intocáveis. Herzog acompanhou e compôs um olhar e uma conversa surpreendentes com os pesquisadores. Coisa que apenas mestres do documentário sabem fazer e provocar.

“Silêncio! Por favor, vamos ouvir! Se ficarmos em silêncio podemos escutar a batida do coração”, um dos pesquisadores chamou atenção. Herzog complementa, como mestre das narrativas que provocam: “essa batida de coração será deles (eles todos que viveram ou passaram por essa caverna em 30.000 anos), ou de nosso coração?” Qual a precisão dessa batida? A aura incrível desse caverna que guarda mistérios da história da humanidade em seu útero, se encontra facilmente ligada a uma peça de Wagner e a uma pintura romântica alemã. Como essas coisas se conectam como parte uma da outra? Como uma apoia a apreciação e o transbordamento da outra?

As nossas formas de narrar o tempo não dão conta desse lugar. Os arqueólogos criam hipóteses sobre um conjunto de desenhos em uma mesma parede. Eles podem ter sido feitos, cada uma deles, com milhares de anos de diferença. Um abismo no tempo. É como se seu bisavô tivesse feito um desenho há muitos anos atrás e você estivesse finalizado o mesmo nos dias atuais, em um lugar que lhes é comum. A nossa ancestralidade presente simultaneamente em todos os tempos. 

Uma das investigações mais impactantes foi de uma pegada de uma criança de 8 anos que está próxima à pegada de um lobo. Os estudiosos detectam as duas espécies, a idade, não há informações precisas, mas algumas suposições: era uma criança que fugia do lobo? Eles caminhavam juntos, eram amigos? Viveram no mesmo período? Fotografias de vidas sobrepostas que pairam por esse lugar.

O que nos é comum, em todos os tempos, é nossa capacidade de adaptação, comunicação e registro; recursos de nossa humanidade que nos apoiam em nossa necessidade de evocação dos mistérios e de transmissão do nosso olhar perante o mundo. 

Saiba mais sobre o filme aqui

Texto: Vanessa Fort 

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Olhares Olhares 2016

O movimento dos sonhos na realidade

No tempo de incertezas, o movimento foi celebrado na Ciranda como mestre de poesia, de criação e de intervenção do mundo. Poesia que compõe a vida em uma coreografia entre sonhos e realidade.

O filme “Billy Elliot”, do diretor Stephen Daldry, narra a história de Billy, um garoto apaixonado por dança e que nasceu bailarino. De família conservadora, o menino perdeu a mãe muito cedo e se vê em meio a preconceitos do pai, irmão, e de toda comunidade. Sem nenhuma outra opção a não ser o que se é, Billy se esforça para aprender os passos da coreografia da sua própria vida. 

“Sonhos em movimento – nos passos de Pina Baush”  é um documentário que mostra a reunião de adolescentes em torno da mestre-precursora da dança-teatro. Os diretores Anne Linsel e Rainer Hoffmann mostram a experiência de aprender e ensaiar o célebre Kontkthof, anteriormente dançada por profissionais e por idosos. Como os bastidores da vida de Billy, vemos os bastidores da montagem do espetáculo e a condução generosa de Pina Baush.

Pina Baush explicou que sua vontade em montar várias vezes a mesma coreografia com grupos diferentes tem a ver com seu desejo de estar com o outro. Com os adolescentes isso passou a ser um rito de iniciação na poesia de ser o que se é em companhia do outro, a partir da intensa obra de Baush.

Billy e os jovens de Sonhos em movimento incorporam seus sonhos e sua própria vida diante dos nossos olhos. 

Para saber mais sobre “Billy Elliot”, clique aqui.

Para saber mais sobre “Sonhos em movimento – Nos passos de Pina Baush”, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort

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Olhares Olhares 2016

Sobre memória, imaginação e amizade

“Cinema Paradiso” é um clássico, uma ode ao cinema e ao sonho. Entre memórias e a imaginação compartilhadas por toda uma cidade, vemos a construção de uma profunda amizade junto à composição de lindas sequências famosas do cinema. A amizade inspirando a vida, assim como o cinema inspira também.

O filme de Giuseppe Tornatore nos mostra a narrativa de vida do pequeno Totó. Tudo começa com ele já adulto, Salvatore, revisitando a memória de sua infância mesclada às imagens da tela grande. Lugar do sonho, Totó aprendeu sobre si na sala escura, viveu a vida dos personagens (enquanto criava a sua própria), se emocionou com eles e com seu amigo Alfredo, maestro das imagens, do mistério da projeção de histórias que saem da boca do leão.

Com toda poética do cinematográfica, vemos a passagem do tempo, o amadurecimento e a sensibilidade do protagonista sempre fortalecidos por Alfredo e pelo cinema. Quando Salvatore volta à sua cidade, sabendo da morte do seu amigo, ele faz uma visita a alguns lugares, entre eles o seu quarto de criança. Nesse momento, suas memórias transbordam como nossas nessa linda narrativa de vida que acompanhamos durante 2 horas.

Em sua sensibilidade, Alfredo deixa um presente à Salvatore: todos os beijos de diversos filmes que foram censurados na sala do Cinema Paradiso. Como os bons amigos fazem, ele o inspira a viver o que lhe falta. É como devolver à vida as cenas que não aconteceram. O filme acaba mas não a vida (nem a amizade que segue ecoando para sempre).

Para saber mais sobre o filme, clique aqui.

Texto: Vanessa Fort