por Ataliba Benaim, gestalt-terapeuta, roteirista, documentarista e colaborador da Ciranda de Filmes
Como seria uma mostra de filmes curada pelo olhar das crianças? A indagação surgiu lá atrás, quando eu e minha comadre Fernanda Heinz (idealizadora e realizadora da Ciranda de Filmes, junto com Patricia Durães) nos encantamos pela obra de Javier Naranjo, poeta e mestre colombiano que se dedica a investigar e estimular a filosofia nata e sem filtros das crianças da escola onde é professor.
Entre outras publicações, Javier organizou a pérola literária “Casa das Estrelas”, na qual compilou afirmações espontâneas, poéticas e filosóficas de seus alunos (entre 4 e 12 anos) sobre os mais diversos temas.
Empolgadas com a ideia de construir esta edição da Mostra em parceria com as crianças, Fernanda e Patricia me convidaram para elaborar dinâmicas em que adolescentes e crianças pudessem testar algumas obras da programação antes de seu início oficial. E que, sobretudo, fossem estimulados a expressar as correlações entre os filmes e suas vidas.
Honrado com o desafio, propus que a ação (batizada de “Escuta Cirandinha”) fosse a terceira parceria entre a Ciranda de Filmes e o Instituto Gestalt de Vanguarda Cláudio Naranjo, que vem ampliando sua atuação em atendimentos sociais com adultos, adolescentes e crianças. Com isso, recebi de presente o reforço mais que especial da Luciana Tavares, que além de psicóloga especializada em terapia com crianças e adolescentes, é também uma das gestalt-terapeutas do Instituto, assim como eu.
Juntos e com a ajuda indispensável de educadores e responsáveis, propusemos às crianças e aos adolescentes três dinâmicas riquíssimas, cada uma com uma turma de idades, cidades e regiões diferentes do país. Nelas, todxs soltaram o verbo e a imaginação. (Conto mais detalhes dessas “Escutas” abaixo).
Tenho certeza que plantamos sementes que poderão ser germinadas em outras experimentações nos próximos anos. Assim, seguimos praticando o exercício de escuta atenta às crianças, para podermos nos reconectar com a sabedoria perdida e avançar para o começo.
Cito e disponibilizo aqui outra experiência que fiz, também inspirada pela admiração que tenho no trabalho de Javier Naranjo: o curta metragem “Pequenos Filósofos, Grandes Verdades” –
1.ª Escuta_Criança e natureza, um pleonasmo evidente.
Já imaginou o que o realismo fantástico das lendas indígenas brasileiras podem nos ensinar sobre como nos relacionamos com a natureza? Como toda mitologia que se desdobra no tempo, cabem nessas histórias toda a sorte de interpretações e analogias, que poderiam resultar em publicações interessantes e cabeçudas.
Mas e se a gente substituir antropólogos, indigenistas e mitólogos por crianças de 4 a 6 anos? Imagine. Sim, as subjetividade dos pequenos sobre essas lendas as fazem ainda mais instigantes e amplas.
Foi o que fizemos nesse primeiro encontro da “Escuta Cirandinha”, pautados pela deliciosa tarefa de ouvir os mais novos curadores, reunidos pela Maria de Lourdes Gomes da Silva, coordenadora do CEI Agostinho Pattaro de Campinas, SP
Diante da síntese infantil , meu vício pela elaboração racional é confrontado de forma aguda e sou convidado a lembrar que a intelectualização deveria exercer um papel coadjuvante se eu quiser viver e sentir mais a vida do que tentar entendê-la.
Joaquim, Sol, Helena, Elisa, Felipe, Sophi, Bárbara, Maria Luisa e Giovana assistiram atentas as três primeiras histórias da animação “Mitos Indígenas em travessia” : “EMA – do Kadiweu, o Menino-Peixe, do povo Kuikuru e As Mulheres Sem Rosto, do povo Javaé, todos da região centro-oeste do Brasil.
O resultado dessa prosa foi um caleidoscópio hipnotizante que me deixou num vazio fértil onde só brotou a convicção de que, se quero me reconectar verdadeiramente com a natureza, preciso avançar para o começo.
*Mitos indígenas em travessia
Animação, Brasil, 2019, 22 min. Dir. Julia Vellutini, Wesley Rodrigues
2a Escuta_Dona Cristina perdeu a memória e nós ganhamos esperança.
O segundo filme posto à prova dos olhares atentos dos pequenos curadores foi um curta-metragem que tem nada menos que Jorge Furtado como um de seus roteiristas.
“Dona Cristina Perdeu a memória” foi assistido e debatido pela turma de 12 a 14 anos da professora Neimara Ramos Américo dos Santos, da Escola Estadual Ivens Vieira, da cidade de Angatuba-SP.
A síntese entre complexidade e simplicidade que o roteiro do filme propõe, foi captada em cheio pela Corina, Luana, Mariana, Vinicius, Karolina, Tiago, Vinicius Matheus e Bruno Henrique, que teceram várias observações sobre a história de amizade entre uma senhora com Alzheimer e um garoto curioso de 8 anos.
O curta da Casa de Cinema de Porto Alegre joga com a construção e a perda de memória, com o começo e o final da vida e sugere como esse espelhamento entre infância velhice pode se refletir em símbolos que nos questionam em qual fase da vida estamos e o que estamos fazendo desta fase.
Me marcou bastante quando, por exemplo, Vinicius percebeu-se equilibrando alegria e tristeza ao mesmo tempo durante o filme e esta experiência o conectou com histórias de superação pelas quais passou em sua breve vida de 13 anos. Pra mim, foi um recado de como sentimentos contraditórios são férteis se pudermos aceitar o diálogo entre eles.
*Dona Cristina Perdeu a Memória.
Drama, Brasil, 2002, 13 min. Dir. Ana Luiza Azevedo
3a Escuta_Viagens oníricas com meninas do Cariri.
O terceiro encontro da “Escuta Cirandinha” foi uma viagem com as meninas Ana Letícia e Ana Luísa, da Fundação Casa Grande, do Cariri, Ceará. A viagem-filme-conversa, organizada com a ajuda do educador Aécio Diniz, me fez lembrar que a psicodelia é inata e pode ser acessada gratuitamente, todos os dias.
Assistimos juntos ao curta de animação “Viagem na Chuva”, que conta a história de um menino, ou de um velho que vê a passagem da chuva ou de um circo. Que está feliz ou triste, que morre ou renasce, que sou eu ou você. Ou não.
Nessa dinâmica fiquei encantado com as falas reflexivas dessas meninas de 15 e 11 anos, que me mostraram que entendem muito mais de sonhos do que eu, que sou terapeuta e muitas vezes faço deles ferramentas do meu trabalho.
Talvez porque sonhos não sejam mesmo de “entender”, pelo menos da forma como me acostumei a significar (ou limitar) este verbo. Sonhos são muito mais de se deixar viver do que de se esforçar para entender.
Passamos um terço da vida neste estado onírico que nos arrebata todas as noites em um viver de emoções fortes, gostosas ou assustadoras, com pouca lógica e muita criatividade. Quem tem a sorte de lembrar dos sonhos e reproduzi-los, tem à disposição um professor que ensina a ampliar a consciência transcender as possibilidades do viver.
Agradeço pela experiência de escutar essas meninas como se eu estivesse escutando uma outra parte de mim mesmo. De fato escutei.
*Viagem na Chuva
Animação, Brasil, 2014, 12 min. Dir. Wesley Rodrigues