Cantos de fiéis fervorosos em barcos rio abaixo, um homem marcando o ritmo de seu búfalo-bumba, uma artista de rua a cantar músicas de sofrência, o treme-treme das gangues do eletro, os sons que se entrelaçam aos cantos dos pássaros e uma diva dos bailes de carimbó amazônico, a entoar versos sobre banzeiros e pororocas, encantarias e especiarias. Essas e outras misturas compõem as sonoridades da floresta no “Amazônia Groove”, longa-metragem documental que abre a Ciranda de Filmes 2019.
Quantas músicas cabem num rio?, indaga um dos personagens do longa. Tal questão se agiganta quando o rio é nada menos do que o caudaloso Amazonas, cujas águas nascem nas montanhas peruanas dos Andes com o nome de Maranhão, é batizado de Solimões ao adentrar o Brasil, correndo até Manaus, onde encontra o rio Negro e passa a ser chamado de Amazonas, rio com sede em direção ao oceano Atlântico, no Delta do Marajó. Nesse longo trajeto, são muitos os aspectos de ancestralidade, fé, mistério, encantamento, memória e identidade banhados nessas águas.
É percorrendo as águas do Amazonas pelas lentes de Bruno Murtinho, também responsável pela direção e pela montagem do filme, que adentramos furos e igarapés, aportamos na agitação do mercado Ver-o-Peso, deslizamos em bailes em que casais dançam juntinho. No percurso, uma diversidade de sons marcam o rio, “nosso altar cultural”, como bem define o poeta e pesquisador da cultura amazônica João de Jesus Paes Loureiro. Nessas águas, “o artista é celebrante e celebrado”, ele completa, em breve aparição.
Com uma fotografia magistral que mergulha nos detalhes de muitas localidades e depois emerge em estonteantes paisagens que esticam horizontes, o filme faz do rio e da floresta, por vezes um teatro ou uma feira, um verdadeiro personagem. O longo plano sequência, silencioso, que abre o filme é um chamado a uma entrega total àquelas águas de muitos ritmos, místicos ou tecnológicos. Parafraseando um dos personagens, que rasga numa festa a quietude da floresta com muita aparelhagem e diz que “Deus é o som”, no filme a imagem é a divindade maior.
Nesse cenário-personagem pelas estradas aquáticas, em seu percurso, vamos conhecendo diversos personagens, anônimos ou não, alguns de raro carisma. É o caso da artista de rua que se apresenta nos arredores do Ver-o-Peso, na capital paraense: Gina Lobrista, filha de pais pernambucanos que migraram para a floresta em busca da fortuna na Serra Pelada. Seguindo a fala da mãe (“Gina, a vida é um palco”), às 6h da manhã, ela já está se arrumando para seguir em direção às ruas de Belém. Ali, com a ajuda de Mister Bacalhau, a cantora de música de corno (com cinco casamentos e outras tantas chifradas, diz ser experiente no assunto) conta vender uns 200 CDs por dia. “Com certeza, sou a artista que mais vende neste Brasil”, dispara, rindo de modo descontraído, sem falsa modéstia.
Outra musa paraense a estrelar o documentário, uma espécie de river movie musical, é Dona Onete, como é conhecida a cantora e compositora Ionete da Silveira Gama, “a diva do carimbo chamegado”. Dona de uma voz melodiosa, que não tem “nem muito açúcar nem muito sal”, ela canta e dança, movimentando o tronco, sentada numa cadeira de rodas. Diz ter uma malemolência amazônica, tal qual “rebujo no remanso”. Hipnotiza quem a ouve com suas encantarias de rio ou da mata, povoados por botos namoradores e protetores como Pena Verde.
A música amazônica, em seus muitos ritmos, com ou sem sotaque, cheia de misticismos, encharcada de gêneros regionais ou mergulhada no universo da sonoridades clássicas, reafirma a identidade de um povo, ou melhor, dos muitos povos que compõem esse pedaço de Brasil feito floresta. Ouvimos ao longo do filme (e também do rio) que este calor amazônico está muito no nosso ritmo, sublinha nossas melhores misturas. Sim, “somos filhos desse ritmo das águas, dessa mãe musical que é a natureza amazônica”.
Texto: Gabriela Romeu/Estúdio Veredas
Fotos: Divulgação