Uma piscina de 100 litros de água, muitas abelhas, um tanto de sapos, uma chaleira, o ronco, o movimento peristáltico do intestino, algumas rezas, o chafurdar dos porcos, um copo de leite, o som do corrupio, um berrante, a bacia, uma bomba de ar e a própria barriga. Tudo vira instrumento musical nas mãos de Hermeto Pascoal, 82 anos de muitas sonoridades, um dos nossos mais inventivos instrumentistas, também compositor, artista alagoano, estrela do documentário “Hermeto Campeão” (Thomaz Farkas, 1981), parte da programação desta Ciranda de Filmes. Para esse inventor sonoro, que começou sua pesquisa musical na casa dos pais, “tocando para os pássaros”, em Lagoa da Canoa, sua cidade natal, a música está em todos os lugares.
Tanto que ele chega a compor quatro canções por dia. Suas inspirações surgem de todos os poros e, ao sinal de uma nova melodia, ele anota rapidamente onde for possível: um papel, a parede, um rolo de papel higiênico. Diz já ter composto mais de 10 mil delas. Esse exercício é tão natural ao “bruxo dos sons” que, em 2000, ele lançou pela editora Senac o Calendário do som, resultado de um ano em que compôs uma canção por dia, cada uma homenageando um de seus aniversariantes.
Que música é essa que fica “dando voltas” em sua cabeça? Nem mesmo ele sabe bem explicar. Chama de “música universal”: “Eu não me defino. Como eu vou definir a minha música? Eu sou. O que eu sou? É isso. Eu sei que sou. Eu não sei o que eu sou. Eu sei que sou. Eu não sei o nome da música. Eu sei que é música”, conta, em outro documentário do qual foi tema, Quebrando tudo (Rodrigo Hinrichsen, 2004). Mistura o baião de sua terra ao jazz estadunidense, ao zunir das abelhas e aos sons que sua boca faz quando encontra um copo com água. Sua produção frenética e intensa dispensa fronteiras, e sempre arrisca novos mundos.
“O Brasil não existe. Existe o mundo. A música, que eu chamo de música universal, é exatamente aquela música que não tem preconceito nenhum. Na mistura de uma coisa com a outra, aí é que vem o negócio”, já disse, em entrevista para o jornal Folha de S.Paulo. Essa fala acompanha a sua trajetória peculiar, desde a infância em Lagoa da Canoa, cidadezinha cravada no centro do estado alagoano, já cheia de rima no batismo, onde ganhou o seu primeiro acordeão e vivia tocando para as aves do quintal.
Desde então, viajou com o irmão para tocar em festas das cidades vizinhas, fez parceria com o sanfoneiro Sivuca, passou pelo Quarteto Novo, foi aos Estados Unidos, onde encontrou o jazzista Miles Davis, com quem compôs duas músicas (Little church (1970) e Nem um talvez (1971), do álbum Live-Evil, e a quem desafiou para uma luta de boxe. Levou, então, Asa branca ao Festival de Montreux numa performance histórica com Elis Regina. A cada passagem, novas sonoridades, instrumentos, experiências. Registramos numa galeria inventiva alguns dos muitos sons desse gigante instrumentista.
Sanfona
Antes de ser mencionado por seu mestre Sivuca como o “maior sanfoneiro do Agreste”, os dois músicos percorriam o Nordeste tocando em festas, casamentos, batizados: eram Sivuca e Sivuquinha. Já aos 19 anos, tocava o instrumento na Rádio Jornal do Commercio, de Pernambuco. Sua relação com a sanfona, nessa fase, foi fundamental para a sua consolidação como músico.
Natureza
Sim, Hermeto experimenta diferentes sons em diferentes ambientes. Talvez por isso seja tão interessante tocar flauta na lagoa, explorando as sonoridades do instrumento de acordo com a proximidade com a água. Faz lembrar a infância vivida em Lagoa da Canoa (AL), em que a natureza teve lugar importante no seu interesse pela música.
Piscina
Se em um palco não há como explorar os sons do lago, o artista dá um jeito: pede que lhe tragam uma piscina, dessas infláveis, e a lagoa de plástico vira logo objeto de experimentação. Batidas na água, espirros, mergulhos do berrante, tudo misturado com um lindo canto sobre Iemanjá, orixá conhecida como “mãe d`água”, ao melhor estilo Hermeto Pascoal.
Copo d`água
Gargarejar num copo d`água também pode dar em música. É uma brincadeira antiga, lá da infância do músico. Aqui, ele conta um pouco sobre esse costume de menino que virou parte de sua produção artística.
Porcos
O disco Slave mass, de Hermeto Pascoal, foi composto nos Estados Unidos e lançado em 1977. Até hoje impressiona por uma particularidade: para a gravação da faixa principal, homônima ao álbum, foram levados porcos ao estúdio. A bicharada ajudou a compor o som.
Sapos
Para fazer um som com os sapos, é preciso chegar a um entendimento. Entender quando é hora de tocar, quando é hora de calar. Não foi diferente para Hermeto, que teve essa experiência no documentário Hermeto, campeão, de 1981, dirigido por Thomaz Farkas. “Teve que ter uma preparação para eu dizer para eles: ‘Olha, eu cheguei’. Para depois eles dizerem para mim: ‘Olha, mas o dono da festa aqui sou eu. A lagoa é minha. Você está aqui, para você tocar, você tem que entrar na nossa’.”
Abelhas
Ainda sobre o documentário “Hermeto Campeão”, que será exibido na Ciranda de Filmes, também podemos conhecer o processo do músico alagoano ao tocar com as abelhas. “Eu toquei junto com elas, como se eu estivesse escrevendo um arranjo em cima do som das abelhas, e foi diferente, porque são tantas as abelhas que são vários timbres de uma vez só”, diz, no curta.
Voz
Em sua produção musical predominantemente instrumental, a voz tem uso nada convencional, de falas, sussurros, assobios, gargalhadas, tosses, rezas e até sons guturais, como explica o pesquisador Luiz Costa-Lima Neto (UNIRIO) no artigo “O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz“: “A quem interessa dividir arbitrariamente a música em duas metades, `vocal`, de um lado, e `instrumental` de outro? Folclórica, popular ou erudita? Brasileira ou internacional? Modal, tonal ou atonal? Para o compositor, multi-instrumentista e cantor Hermeto Pascoal, a música é uma só”.
Ronco
Não é novidade que o corpo é instrumento vital para o músico. Foi numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que ele inventou de roncar ao som de um dos nossos maiores clássicos, Asa branca.
Chaleira e brinquedos infantis
Não há limites para a música. Aqui, Hermeto improvisa tocando uma chaleira e um brinquedo infantil.
Bacia
Uma bacia também pode ser um bom instrumento de percussão – enquanto ela durar nas mãos de um músico que tem como lema “quebrando tudo”. (minutagem: 1:05)
Berrante
Para Hermeto, o berrante não serve apenas para chamar o gado, uso recorrente dos vaqueiros. Como é de praxe, ele reinventou o instrumento e ali toca tudo quanto é tipo de música (até o Hino Nacional), o que não deixa de causar espanto no público.
Corpo
Em 2012, o músico lançou um disco utilizando instrumentos musicais bem próximos de todos nós. Em Hermeto Pascoal de corpo e alma, ele criou canções com batimentos cardíacos, assobios, os movimentos peristálticos do intestino, a barba e até o som de sua válvula mitral, aquela que separa o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo do coração e que, segundo ele, diz claramente a palavra “Nelma”.
Bomba de ar
Até uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta ou bola de futebol, vira instrumento musical nas mãos de Hermeto Pascoal.
Instrumentos inventados
Hermeto, nada satisfeito com os instrumentos já criados pela humanidade, seguiu a vida inventando os seus. Nas mãos do multi-instrumentista, um pedaço de metal ou qualquer tubo pode se transformar em objeto de criação artística.
Texto: Luísa Cortés/Estúdio Veredas
Foto: Gabriel Quintão/site www.hermetopascoal.com.br