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Rotas da transformação

Se uma trajetória, uma rota ou um caminho pudessem ser desenhados

por Gabriela Romeu
 
Se uma trajetória, uma rota ou um caminho pudessem ser desenhados a partir da terceira roda de conversas do Ciranda de Filmes 2014, que reuniu Regina Migliori, Ana Lucia Villela, Ana Thomaz e Germain Doin numa prosa sobre movimentos de transformação, talvez esse percurso pudesse ser sinalizado por placas (aquelas de estrada) com expressões ou termos como ressignificar, quebra de paradigmas, ir além (significado de “trans”), entre outros recorrentes no papo.

É difícil, no entanto, recorrer a uma só palavra (educador ou cineasta, por exemplo) para definir a atuação dos quatro palestrantes – abaixo, conheça mais a história de cada um deles. Suas trajetórias pessoais e profissionais, ambas bem imbricadas, foram se desdobrando em ações e atuações que às vezes nem tinham nomenclatura. Em suas biografias, o capítulo referente a viradas e reviravoltas também têm em comum como resultado intensos movimentos de transformação.

Talvez uma frase ajude a sintetizar um pouco a conversa: “Um movimento de transformação diz respeito ao ‘mundo do não sei’. E recuperar essa capacidade de não saber é muito importante”, afirmou Regina Migliori, inaugurando a prosa. Foi no percurso de algumas décadas que Regina, atuante em projetos de desenvolvimento humano centrado em valores, cultura de paz e sustentabilidade, descobriu o fio da meada de suas pesquisas: “Há em nós, seres humanos, a possibilidade de agirmos no mundo de maneira inteligente, criativa, transformadora e benéfica”.

Regina transitou por diferentes mundos (direito criminal, educação, artes, negócios e tecnologia) em seu percurso profissional. Nessas andanças, quando ainda advogava na área de direito criminal, deparou-se certa vez com os questionamentos de uma menina de 11 anos de idade. Filha de um presidiário, “que já tinha realizado na vida tudo o que a gente acha que um ser humano não deve fazer”, a garota de 11 anos pediu para que ela entregasse ao pai uma mensagem.

Na carta, o seguinte questionamento: “Pai, todo mundo tem um lado bonito e um lado feio. Por que você só mostra o seu lado feio para o mundo e só eu consigo ver o seu lado bonito?”. Seguindo a indagação tão genuína da menina, Regina completa: “Essa garota não tinha perdido o seu dom de se maravilhar com um outro ser humano e de identificar nesse ser humano algo que nem mesmo ele teve condições de reconhecer”.

Regina explica que identificar isso hoje em nós, seres humanos, assim como fez de forma simples e direta a menina, deixou de ser apenas uma discussão filosófica a respeito da perspectiva ética e benéfica. “Hoje é demanda do mundo. Nós nos metemos em confusões como humanidade que são absolutamente relevantes. Pela primeira vez, na trajetória da humanidade, somos desafiados a construir um tipo de vida que garanta a nossa sobrevivência.”

A trajetória de Ana Lucia Villela foi pontuada por alguns chacoalhões da vida que também a colocaram na rota que há algum tempo percorre. Fundadora e presidente do Instituto Alana, que tem como missão honrar a criança, começou a se sensibilizar pela causa da infância ainda menina, aos oito anos de idade, quando perdeu os pais num acidente de avião. “Comecei a olhar o mundo de um jeito diferente.”

Dirigindo-se à plateia, questionou: “O que move cada um de vocês? O que te fez repensar a vida? Um quadro, um filme, uma vivência?”. Ana Lucia indica diversas experiências que a impulsionaram num movimento de transformação. Lembra de uma temporada nas Filipinas, aos 11 anos, quando integrou um intercâmbio do CISV, programa internacional de convivência de crianças e jovens que trata da cultura de paz e da tolerância entre povos.

No país asiático, hospedou-se na casa da ex-primeira-dama Imelda Marcos, famosa por ostentar uma coleção de centenas de sapatos. Para o muro além do condomínio de casarões onde viveu por um tempo, a cena de crianças num lixão ficou impressa em sua memória. “É claro que isso também já existia no Brasil. Mas eu precisei estar nas Filipinas, num bairro cercado, de um lado casas gigantescas, do outro um monte de criancinhas procurando comida no lixo. São cenas assim que não passam batidas na vida da gente e que nos fazem querer ajudar a mudar a realidade.”

Foi pelo caminho da educação que seguiu o chamado para batalhar por uma sociedade mais justa. Chegou a frequentar na escola pública o curso de magistério, causando estranhamento na família. “Mas foi lá que entendi o que é uma escola pública”, conta, decepcionada com a realidade enfrentada por milhares de crianças. Dali para o Alana, que nasceu num terreno herdado na rua da Borboleta Amarela (símbolo da transformação que está na logomarca da instituição), foi um pulo.

Intrigada com estranhos hábitos e valores das crianças nas escolas, que só “comiam salgadinho no lanche, usavam saltinho e batom desde os quatro anos de idade”, decidiu pesquisar a questão. “Achava que tinha alguma coisa errada. Com esse jeito diferente de olhar o mundo, ficou intrigada quando passou a Quem é que está educando as crianças para que fiquem assim?”. Desse questionamento nascia o projeto Criança e Consumo, que, ousado, não se deixou intimidar por críticas e ameaças e hoje comemora diversas conquistas.

Ana Lucia segue sendo provocada a olhar tudo de um outro modo. No projeto “Outro Olhar”, recém-lançado pelo Alana, parte de outra perspectiva ao tratar da vida de meninos e meninas com síndrome de down, alteração genética com a qual nasceu sua filha caçula. “A gente está tentando a todo momento inventar soluções diferentes, inovadoras, para aquilo que nos incomoda e para aquilo que a gente acha muito lindo e quer mostrar para o mundo.”

Foram também experiências marcantes que fizeram Ana Thomaz mudar de rota. Há cerca de dez anos, ela encarou o desejo do filho de sair da escola para buscar algo que lhe fizesse sentido. Começava aí um processo de desescolarização. “Antes de tirar meu filho da escola, comecei a tirar a escola de dentro de mim”, lembra. O que aquilo significava? “Tirar crenças, hábitos e maneiras de pensar que eu confundia com o processo escolar.” Descobriu que precisa de uma vida inteira para se desescolarizar.

Pensamento e ação devem estar sempre alinhados, diz Ana. “São mudanças de paradigma de ação. Às vezes, me vinha um pensamento e eu tinha que alinhar esse pensamento à minha ação e ao meu sentir, olhar firme aquele pensamento. Se eu pensava uma coisa e agia de outra forma, eu tinha que parar e pensar, tinha algo a mudar. Podia surgir um pensamento, uma emoção, uma questão prática, cotidiana, e eu me organizei para ficar atenta e sempre alinhada. Agir, pensar e sentir a vida de uma maneira coerente.”

A falta de coerência entre ação e discurso era também o grande incômodo na vida escolar do cineasta argentino Germain Doin, diretor do documentário “A Educação Proibida”, que foi financiado coletivamente e virou um fenômeno de audiência na internet. Aos 21 anos de idade, tomou uma câmera pequena na mão e seguiu por uma rota visitando escolas de oito países da América Latina. No caminho, descobriu diversas escolas com modelos educativos alternativos e transformadores, que não eram um “estacionamento de crianças” e que fogem de estruturas verticais, baseadas na competição, divisão por idades, currículos desconectados da realidade.

Todo esse processo desembocou na Reevo, uma rede colaborativa de experiências de educação transformadoras, alternativas e democráticas na América Latina. Num curto tempo de atuação, o grupo criou um mapa interativo e livre para que qualquer um possa compartilhar experiências educacionais transformadoras com o mundo.

“Queremos que essas informações gerem uma ferramenta para esse movimento de transformação. Uma ferramenta que nos permita se conhecer e se encontrar. E pensar num tipo de educação diferente, mais vinculada à autonomia, à construção colaborativa de conhecimentos”, conta Germain, que fechou a conversa por um trilha que tem começo, mas não fim.

No que podemos chamar de “biografia de virada”, conheça abaixo um pouco mais da trajetória transformadora dos palestrantes da terceira roda de conversas.

Regina Migliori
(Professora de ética e reponsabilidade corporativa nos MBAs da FGV, consultora em cultura de paz da Unesco, diretora-adjunta de sustentabilidade do Ciesp)
Sustentabilidade, educação de valores, cultura de paz, cérebro ético. Nada disso tinha nome quando Regina Migliori ainda tateava por esses temas na juventude. Resumindo década a década, ela conta assim sua trilha transformadora: Nos anos 70, era papo de doido. Nos 80, era coisa de gente alternativa. Nos 90, virou tendência. Hoje é cenário – “e é doido quem não se preocupa com isso”, ela adverte. Durante um tempão perseguiu um “eu acho que deve ter algo que viabilize os seres humanos a viverem em paz”. Construir uma vida sustentável não é mais utopia, é demanda atual. Mas, bem-humorada, Regina diz que continua achando que tudo isso é papo de doido.

Ana Lucia Villela
(Pedagoga, mestre em Psicologia da educação. Fundou e preside o Instituto Alana. É membro da Ashoka)
Não foi um, mas vários momentos de virada na vida que a impulsionaram. O mais forte foi a perda dos pais num acidente de avião, quando tinha oito anos. Esse chacoalhão da vida a botou a pensar: “Quem vai cuidar de mim? Como a escola vai me amparar? Como a comunidade vai me amparar? O que acontece com as crianças que não tem recursos financeiros quando perdem os pais? O que é mais importante na vida? Como a criança é vista?” Essas e outras questões foram surgindo na trajetória de Ana Lucia Villela, fundadora do Instituto Alana, que coloca no centro a criança e toda sua potência transformadora.

Ana Thomaz
(Professora da técnica alexander, pesquisadora do universo do aprender e ensinar, experimentando novos paradigmas da educação)
Com a experiência da técnica Alexander, lendo Espinosa, Niezschte, Deleuze, estudando a biologia de Humberto Maturana, aprendendo com Krishnamurti…. Ana Thomaz fez um contrato consigo mesma: viveria de modo intenso e verdadeiro e criaria um novo paradigma de vida para si. Anos mais tarde, seu filho, aos 13 anos, pede para tirá-lo da escola porque gostaria de dedicar sua vida a algo que ainda era desconhecido para ele, mas que ele tinha certeza de que existia! Assim fundou-se um grande movimento de transformação.

Germain Doin
(Diretor do filme “A Educação Proibida”, coordenador da Reevo)
Aluno de uma escola tradicional da classe média de Buenos Aires, Germain foi na sala de aula o melhor aluno no boletim, mas também o pior por criticar as incoerências do sistema educativo. Pouco faziam sentido os valores da teoria e as regras da prática. Seu filme, A Educação Proibida, visto por mais de 9 milhões de pessoas na internet, traz voz de um estudante que sobreviveu à escola e que sabe que outra educação é possível – e que está em nossas mãos torná-la realidade. Essa voz ecoou longe: mais de 9 milhões de pessoas viram o filme na internet, o documentário rodou muitas países e rendeu muita discussão. E continua ecoando e criando outros movimentos com a Reevo, uma rede de educação. Gostaria de convidar o Germain a contar mais sobre essas transformações que vêm promovendo.

Na foto, Ana Thomaz na Ciranda de 2014 – fotografia de: Aline Arruda

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