por Luciana Ferreira Tavares, psicóloga e psicopedagoga, atua como psicóloga escolar e terapeuta colaboradora do Instituto Gestalt de Vanguarda Cláudio Naranjo
“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias.” Eduardo Galeano
Como uma grande espectadora escutei as narrativas das crianças e adolescentes na mostra Ciranda Cirandinha de Filmes, uma iniciativa da Ciranda de filmes. Adentrei na proposta um pouco com o pé atrás de como seria conduzir essa roda de conversa de forma virtual e, para minha surpresa, foi lindo de se ver e de ouvir.
Afinal, criança é criança, adolescente é adolescente e cinema é sempre cinema. E com a mesma vivacidade, leveza, autenticidade, as trocas aconteceram, com direito a tudo o que envolve quando estamos imersos no universo do cinema e da infância.
Na primeira roda de conversa, com crianças até 6 anos, o curta escolhido foi Mitos indígenas em travessia. Apresentamos a temática e passamos o curta, solicitamos para as crianças fazerem um desenho do que mais chamou a atenção e abrimos espaço para a fala. Um espaço aberto, fenomenológico e sem roteiros.
Da narrativa das crianças, a forma como cada uma interagiu com as imagens e a história foi mágico: dos animais gigantes, do menino que virou peixe, as crianças disseram quais animais escolheriam ser: onça, peixe, tartaruga, gato, dragão entre tantos outros possíveis. Um imaginário a céu aberto, que contempla o mundo com olhos de infância. A cada fala, adentrávamos um pouco na visão de mundo de cada criança, das construções que estão tecendo em relação a vida, ao que escutam e ao que elaboram: do menino que queria ser peixe veio a crítica de como o ser humano não cuida da natureza, do tanto de plástico que jogam nos oceanos e de como as tartarugas estão morrendo. E do descontentamento, um manifesto foi sendo construído: Não joguem plástico nos rios, nós somos os oceanos! Os adultos, ou melhor dizendo, eu, fiquei tocada com a sabedoria das crianças e suas infinitas possibilidade de vir a ser já sendo, simplesmente crianças.
No curta Dona Cristina perdeu a memória, fiquei sem palavras e uma lágrima escorreu imperceptivelmente na minha face. O curta por si só já é profundo e lindo, somado a narrativa trazida pelo grupo de adolescentes foi de uma poética avassaladora. Iniciaram suas narrativas timidamente, falando da memória e da saudade dos avós que já partiram, para adentrar a reflexões profundas sobre perdas, dores, cicatrizes e das superações que contribuíram para o que eles são hoje. Falaram das suas histórias de vida, dos fatos marcantes e das cicatrizes que são relíquias da memória. Os adolescentes foram tocados pela narrativa do curta e abriram suas memórias afetivas e nos presentearam como quem confia um tesouro a alguém. Guardei cada pérola recebida na minha memória, como uma relíquia, assim como Dona Cristina fez com suas histórias de vida. Fizemos do espaço da cirandinha uma grande roda da memória, com alegrias e tristezas, relembrando o que nos atravessa e nos transforma.
No terceiro curta, Viagem na chuva, mesmo que com um grupo menor de adolescentes, foi de uma riqueza cultural costurada com os sonhos das jovens. De imediato, a adolescente faz uma releitura do curta relacionando com um outro com uma riqueza de detalhes que me fez calar e ouvir. E ao falar do que o curta tocou, adentramos no campo dos sonhos que sonhamos e dos processos que acontecem neste universo interior que mora na cabeça de cada um de nós. Falar de sonhos sonhados e de sonhos desejados transcende qualquer discurso racional e promove a conversa para outro patamar imagético: da jornada do herói para a jornada do eu, falando do que cada uma sonhava para a vida. É sempre uma novidade onde as narrativas podem caminhar, não dá para prever aonde que vamos chegar, o final tem infinitas possibilidades de ser e a jornada é a grande delícia de vivenciar.
Agradecida pelo convite e pela jornada vivida, me sinto inspirada e nutrida pelo encontro entre as narrativas costuradas pelo eu, cinema e imaginário.