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25/08/2021

Mutum: o profundo do Sertão e da Infância

A infância sertaneja e sua profunda ligação com a natureza. De um diálogo com a obra “Campo Geral” de Guimarães Rosa e inspirado no personagem Miguilim, o filme Mutum“, da diretora Sandra Kogut é um dos destaques da programação da Ciranda. Este é o primeiro filme de ficção da diretora. Antes disso ela realizou diversos documentários. Da delicada sensibilidade e olhar entre a ficção e a vida real, Sandra criou Mutum“. Conversamos com a diretora, que compartilhou com a gente seu profundo interesse pelas pessoas e pelo mundo que elas carregam.

Ciranda: Conte um pouco pra gente sobre seu interesse pelas pessoas, sua identidade, na conexão entre elas além dos limites sociais e das relações do homem comum e do sujeito-personagem. Como essas coisas permeiam o seu trabalho?
Sandra Kogut: Talvez seja o único motivo pelo qual eu faço filmes: meu interesse pelas pessoas, o mundo que elas carregam. Quando faço um filme, preciso sentir o que cada personagem sente, ir com eles aos lugares emocionais que eles vão, só assim consigo dirigi-los. Só assim sei o que fazer, para onde ir. Sempre penso que para fazer um filme eu preciso me sentir em casa. Mas me sentir em casa emocionalmente, entender o que cada personagem sente naquela hora. O resto é decorrência. Por isso achei que podia fazer um filme no sertão, apesar de ser uma pessoa urbana, distante daquele mundo. Eu sabia muito bem o que esse menino sentia. Sabia o que cada um ali sentia.

Ciranda: O documentário tem a escuta como parte penetrante no roteiro; o que o outro fala modifica as intenções de um filme. Conte um pouco pra gente o que seu repertório de documentarista, de se colocar, sensível, à disposição da história do outro, proporcionou ao “Mutum”.
Sandra: Primeiro teve a maneira de chegar no filme. A pesquisa, as viagens, a escolha do elenco – tudo isso foi um longo processo, onde eu ia confrontando a história do livro e do roteiro com um lugar, as pessoas que moravam ali, as relações entre elas. Como se estivesse buscando quem pudesse dar vida aquela história pela sua própria história de vida. Sempre chego nos lugares através das pessoas, o rosto pra mim é a melhor paisagem. Em seguida veio o trabalho com os “atores”. Nunca digo a eles o que fazer, e menos ainda porque faze-lo, mas tento criar neles a necessidade daquela cena, daquelas palavras. Isso se parece muito com o meu trabalho nos documentários.
Quando preciso que alguém diga algo num filme, tento criar a necessidade de dizer aquilo naquela pessoa, senão eu sei que vai ficar ruim, vai ficar falso. Se eu digo a um ator que ele precisa chorar, estou entregando o problema pra ele. Não trabalho assim. Crio uma situação que vai provocar aquela emoção nele. Nos documentários é a mesma coisa. Crio situações que vão levar as pessoas a dizerem e falarem certas coisas. Pego o problema para mim, em vez de entrega-lo à eles. Considero que isso é trabalho do diretor.

Ciranda: Você comenta sobre a visão romantizada do sertão e sobre o esforço que fez para que os elementos de Mutum permanecesse na vida de verdade, como ela é. Gostaria de fazer um paralelo com a visão romantizada da infância, que sempre tenta “abster” e “proteger” a criança dos dramas e conflitos da vida real. Na construção do roteiro, e no diálogo com Guimarães, que infância é esta que está em “Mutum”?
Sandra: Nunca tive uma visão romantizada da infância, apesar de saber que ela é o que há de mais clichê, mais comum. Pra mim a infância é uma época sombria da vida, na qual é difícil entender e aceitar as regras, que sempre parecem injustas. O seu pai dá gargalhadas com um amigo comentando uma batida de carro, e te deixa de castigo porque você derramou um copo de leite. Sei lá, coisas desse tipo. As crianças precisam de autorização para tudo, dependem dos adultos para tudo, e muitas vezes se sentem incompreendidas, sem saber o que fazer com aquele mundo interior gigantesco que elas carregam e ninguém entende. O mundo dos adultos é inaccessível, misterioso, e ameaçador. A infância é fisicamente apertada, cabe num quarto. Fora daqueles limites tudo é abstrato. A miopia de Thiago é a materialização mais bacana disso tudo. Na infância temos uma visão aguda do que está perto, ao alcance da mão, e nebulosa dos mistérios que cercam o nosso pequeno mundo.

Ciranda: Como a relação entre a natureza e Thiago  (protagonista) foi importante para compor a história do filme? Qual a importância dessa relação e seus potenciais poéticos em “Mutum”?
Sandra: A natureza do filme representa o mundo interno dos personagens, materializa seus medos, seus fantasmas, seus sonhos. Me interesso pela paisagem mental. A natureza no Mutum é assim: concreta, dura, real, e ao mesmo tempo totalmente mental. A natureza não é uma paisagem a ser contemplada, é um espaço de experiência, de muito trabalho, de luta pela existência (não só física mas também moral, e psicológica). Não tem nada a ver com a natureza cartão-postal. Não existem paisagens espetaculares no filme, nada é grandioso. Achei importante que a natureza permanecesse na escala humana. Porque a medida de tudo é sempre as pessoas, e como elas se relacionam com essa natureza.

Saiba mais sobre o filme aqui.

Veja no site do filme a linda entrevista feita por Franck Gargarz.