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20/05/2019

De meninos e bois encantados

Desbravador desde sempre, filho do meio de uma família de sete irmãos, as janelas do artista Tião Carvalho se abrem rapidamente em imensas paisagens e profundas sonoridades quando é convidado a falar da infância, tempo marcado pelas imagens potentes da figura altiva da mãe, do povo a trabalhar no roçado, do balanço das fitas coloridas do chapéu do pai, da avó festeira a botar a Festa do Divino nas ruas. Do rio, das águas da lagoa, dos peixes. Da chuva. Do som dos carros de bois. Dos bois, muitos deles. “Os bois sempre foram muito encantados para nós”, diz o mestre de capoeira, também ator, cantor, músico e dançarino, ao se lembrar desse tempo de menino em Cururupu, município do litoral maranhense quase na divisa com o Pará, num Nordeste de ares amazônicos.

Situada em uma rota de antigos quilombos, que passa por Guimarães e Frechal, a cidade que tem hoje pouco mais de 30 mil habitantes carrega um histórico de resistência da população negra, berço de muitas culturas. Tal aspecto revela as raízes e marcas da ancestralidade do artista, fundador do Grupo Cupuaçu, em 1986, e responsável por trazer as festividades e sonoridades populares para São Paulo, onde é convidado especial a encerrar a Ciranda de Filmes 2019.

Curioso em saber o que existia para além da linha do horizonte, o filho de Floriana, Dona Florzinha, e Feliciano, Seu Pepe, não sofreu quando, aos oito anos, deixou a roceira Cururupu e foi morar com a tia materna, Edite (ou Didi), em São Luís. Ao contrário da família de seu pai, no entanto, que há duas gerações já participava e brincava com o boi nas celebrações da comunidade, sua tia Didi não tinha proximidade com essas tradições. Assim, o menino passou uma fase entre a infância e a adolescência um tanto afastado dessas manifestações populares. O encantamento do boi, no menino, ficou um tanto adormecido. Por pouco tempo.

Com mais ou menos 15 anos, o jovem das peladas de futebol conheceu o capoeirista Anselmo Barnabé Rodrigues, o Mestre Sapo, um “segundo pai”. Naquela idade foi decisivo ter a figura de um mestre, um dos primeiros, e ter entrado nesse universo da capoeira permitiu que aos poucos fortalecesse novamente a relação com suas raízes, que, no seu eu mais profundo, sempre estiveram presentes. Outros mestres viriam depois: Marciano, Tabaco, Chicotinha, Papativa, além do músico Arlindo Pipiu e do mestre da dança Klauss Vianna, entre diversos outros.

Nesses encontros com o passado, o multiartista relembra uma história que sua mãe sempre conta. Quando pequeno, ele e seu irmão mais velho imaginavam lugares para conhecer quando crescessem. Tião falava: “Eu vou para capoeira grande maior”. Dona Florzinha testava o filho perguntando se o lugar realmente existia. O menino admitia que não. É que nas brincadeiras de criança cabem outros mundos. Inclusive aqueles que ainda podem ser imaginados e explorados. Assim, já crescido, foi criando novos universos nas artes das ruas, nas rodas de capoeira, no teatro das esquinas, nas festividades populares, como os bois brincantes espalhados pelo bairro Madre de Deus, localizado na capital maranhense.

Aos 24 anos, em uma viagem a Ouro Preto (MG) com seu grupo de teatro, o Laborarte, conheceu o diretor argentino Ilo Krugli, comandante da trupe do lendário Teatro Ventoforte. Terminado o festival teatral nas terras das Gerais, retornou o artista ao Maranhão. Pouco tempo depois, então, recebeu uma carta do diretor do Ventoforte o convidando a participar de um circuito de apresentações nos Estados Unidos. Ficaram 40 dias por lá e, depois, ao chegarem de volta ao Brasil, emendaram um segundo festival, dessa vez, pela Europa. A “capoeira grande maior” do menino já era o mundo e, assim, decidiu se acomodar em São Paulo, mais especificamente, no Morro do Querosene, zona oeste, onde mora até hoje.

Nessas andanças de menino desbravador, Tião nunca deixou de trabalhar com aquilo de que mais gosta, a arte. Fundador do Grupo Cupuaçu, promove festas do bumba-meu-boi no Morro do Querosene e, assim, sempre em diálogo com suas raízes e sua gente, disseminou o brinquedo de sua Cururupu em São Paulo. Deu um pouco de cor ao cinza. É nesse território que o artista trabalha, no terreno do improvável, do surpreendente, onde cabem capoeiras grandes e maiores. “Quero de uma certa forma ocupar um espaço vazio, não quero fazer o que todo mundo está fazendo. Quero fazer diferente”, comenta. E, na junção de artes que permeiam sua vida, qualifica a música como o abre-alas, aquela que desobstrui os caminhos, vai na frente. Gênero musical do boi que também encantou São Paulo.

Texto: Gabriela Romeu e Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas

Fotos: Raquel Catão