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25/05/2017

Beth Beli: o pertencimento do tambor

Nascida na Brasilândia, zona norte de São Paulo, Elisabeth Belisário cresceu ouvindo do pai militar, um homem rigoroso, que era preciso batalhar para “ser alguém na vida”. Só entendeu melhor o que o conselho significava quando seu mundo foi se expandindo, para além das quebradas. Numa sociedade de profundas raízes racistas, a menina negra da periferia tinha que provar que “era mais”, que podia ir além. E escolheu seu instrumento de luta, inicialmente a contragosto do pai. Virou Beth Beli, forte referência feminina nos tambores.

Aluna de colégio militar na juventude, hoje ela lidera um outro exército. Só de mulheres (trezentas!), atentas a seus sinais para fazer ecoar os sons de agogôs, xequerés, alfaias e djembês. Sua farda é também outra. De camisa colorida e chapéu adornado, ela comanda o bloco afro Ilú Obá de Min, nome iorubá que significa “mãos femininas que tocam tambor para Xangô”. Sua batalha é pelo empoderamento feminino, pela força da cultura negra, pelo direito de ocupar os espaços públicos. “Aqui as mulheres podem cantar, podem dançar e podem tocar”, anuncia ao microfone durante uma apresentação do grupo em São Paulo. Seu comando é o da “suavidade”.

Era jovem quando conheceu sua mestra, uma amiga inspiradora: Girlei Luiza Miranda, filha de bamba, um mestre de bateria, criada nas batidas de escolas paulistanas como Peruche e Rosas de Ouro. Num dia, batucando num balde por brincadeira, Girlei logo percebeu que na menina pulsava um ritmo. Foi sua primeira incentivadora e juntas passaram a frequentar muitos barrões. Tempos depois, criaram com uma turma de amigos a Banda-Lá, sendo esse “lá” a África e todo o seu legado ancestral. “Nessa época só tocava xequeré, não me deixavam tocar tambor”, lembra. “Ainda não era o meu tempo”, diz sabiamente com um jeito doce, sorriso nos olhos.

Era uma banda de ativistas negros, um total de 22 pessoas, entre músicos e dançarinos, que reverenciavam os orixás. Nessa época, foi iniciada nos terreiros de candomblé, onde ouvia atentamente o som dos tambores, que batia fundo na jovem, em seus vinte e poucos anos. Mas revela que o som era também recebido com um certo temor, algo originário lá na infância. “Não sei bem por que, mas eu tinha medo de mar e de tambor”, lembra. Seu medo virou sua matéria-prima. “Eu não escolhi o tambor, foi o tambor que me escolheu”, afirma, ciente de sua missão espiritual – e também social, feminista e artística.

A Banda-Lá durou uma década. Depois muitos dos seus integrantes decidiram ocupar lugar nas universidades. Beth e Girlei herdaram os tambores – e seguiram em busca de suas próprias batidas. Depois vieram a passagem pelo bloco Ori Ashe, grupo afro-sampista, com a participação de homens e mulheres, e os trabalhos teatrais com Zé Celso, Renato Borghi e Ligia Veiga. Também se enveredou pelos caminhos da arte-educação. Mas não demorou muito e reverberou um novo chamado. “Muita gente dizia que eu devia voltar com o trabalho de percussão ecoando a cultura negra. Então eu disse: ‘Eu volto, mas só se for para trabalhar para Xangô, o orixá da justiça. E que seja um grupo só mulheres: no pensar, no dizer, no cantar, no tocar, no dirigir. Em tudo. Queria inverter os acessos”, diz a filha de Oxóssi com Iansã.

Foi nesse período em que o grupo estava em gestação, ainda sem nome, que encontrou uma de suas parceiras até hoje: a sambadeira do Recôncavo Baiano Nega Duda, filha de Xangô. Muitas outras filhas do orixá surgiram em seu caminho. Era um sinal. O Ilú Obá de Min, explica Beth, é regido por Xangô e Iansã, “o casal mais quente do Orum”, o panteão dos orixás. O grupo, que teve também em suas origens a participação de Adriana Aragão, completou 12 anos em 2016. 12 é o número de Xangô. “Estamos no momento de olhar para essa filha e esse filho que está com 12 anos”, diz a fundadora.

O trabalho cresceu, desdobrou-se em muitos projetos, que levam o pensar para a roda (Ilú na Mesa), com encontros entre mulheres da tradição oral e da academia, e também para as escolas (Tenda Afro-Lúdica), com atividades que trabalham a Lei 10.639, sobre o ensino das culturas afro-brasileira e africana na sala de aula.

Nessa trajetória, já cantaram a história de muitas mulheres, Leci Brandão, Elza Soares, Raquel Trindade, Maria Carolina de Jesus e Rainha Nzinga, que nem de longe passou em suas aulas no colégio militar. É cantando a saga dessas personagens femininas inspiradoras, muitas delas esquecidas dos livros escolares, que segue na sua missão de desconstruir 500 anos de história. “Faço isso nas brechas que eu tenho, com os meus alunos nas aulas de arte-educação, com as mães dos meus pacientes [faz há tempos um trabalho com crianças com câncer em hospitais], com as mulheres no Ilú, nas palestras.”

Beth Beli é percussionista, regente, compositora, arte-educadora e cientista social, sua formação mais recente, depois de muito frequentar escolas informais nos barracões, nos teatros e nas ruas. É a caçula de sua família. E também seu esteio. Foi ela quem levou a cultura negra de volta para casa e dialogou com os seus sobre velados processos de silenciamento e branqueamento, historicamente enraizados na nossa sociedade. “Minha mãe me liga pra falarmos de tudo, todas as questões. De algum modo, materializo o que estou fazendo. Quando boto meu paramento, não sou mais a Beth, estou sob o comando de Oxóssi, a força da caçadora, aquela que caça para nutrir a família em todos os aspectos”, diz, ainda vibrante depois de reger uma apresentação. “Onde meu pai estiver ele deve estar contente.”

Texto: Gabriela Romeu

Foto: Vanderlei Yui