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01/05/2017

Abandono, arquétipo da infância

A vida não poderia ser mais dura, real e árida como no longa “Minha vida de Abobrinha”, uma animação que facilmente seria confundida com um título de uma comédia leve infantil. Não, o suíço Claude Barras mergulha em questões densas como abandono, exclusão e solidão.
O abandono da infância, nos conta o pesquisador Gandhy Piorsky em seu tão fundamental Brinquedos do Chão, livro recém-publicado pela editora Peirópolis que tem um capítulo especialmente dedicado ao tema, está impresso no inconsciente coletivo da humanidade. Dos gêmeos ibejis ao grego Édipo, o abandono é arquétipo de infância. É no encontro da sua face mitológica, na presença do mistério, que a criança acorda no mundo.
Diversos historiadores registraram o abandono da criança. “Já nas culturas caçadoras e agrárias, sociedades primitivas, civilizações clássicas, toda a Idade Média europeia, Brasil colonial, Portugal quinhentista, séculos que prenunciam a modernidade, sociedades ideológicas como as comunistas, tipos diversos de ditaduras, tradições tribais e hegemonias religiosas, existe uma estranha tendência a condenar as crianças ao esquecimento de si próprias”, escreve o autor, em linhas que falam da criança divina e da criança histórica.

Mas voltando ao filme. Baseado no livro homônimo, traz a história de Abobrinha, um garoto de nove anos que sonha com o pai, simbolizado por um herói mascarado desenhado em uma pipa que insiste em voar alto, e envolto no acidente que mata a sua própria mãe. Órfão, ele é enviado a um orfanato, onde tem de lidar com o sentimento de culpa, o bullying dos colegas, a confusão dos acontecimentos. Por sorte, constrói uma amizade com Raymond, o policial responsável pelo seu caso, e apaixona-se por Camille, uma de suas colegas, a menina de “olhos que dão frio na barriga.”

O tom trágico do filme é elevado pela técnica de stop-motion, inspirada em Arthur Rankin Jr e Jules Bass, produtores do clássico Rudolph, a rena de nariz vermelho (1964). Daí a comparação inevitável de Claude Barras com Tim Burton, que bebeu das mesmas fontes em O estranho mundo de Jack (1993), tanto na temática melancólica quanto em certas características físicas dos personagens, como olheiras acentuadas e tons de pele pálidos.

Toda a história trata de um encontro de exclusões – a começar pela mãe solteira e alcoólatra de Abobrinha, personagem não muito explorada, mas em clara situação de vulnerabilidade social. Ao se ver órfão, o menino é tomado da vida conhecida até então e levado ao encontro de outros excluídos. As vulnerabilidades se amplificam.

O filme também fala da infância como descoberta. A sexualidade, o amor, a identidade. A morte. Os sonhos e as esperanças que são carregados nos primeiros anos de vida, pelos olhos de quem tem motivos para não acreditar em nada. Nesse filme sensível e crítico, com personagens que se constroem em sua imbricada razão de ser, encontram-se a inocência infantil e a crueldade do mundo. 

Mas nem todos os adultos ao redor são impassíveis à vulnerabilidade apresentada. A diretora do orfanato sabe escutar, contrariando clichês de muitos filmes com essa temática. E o próprio lugar busca seus sentidos como casa, acolhida. O policial de voz doce, que cultiva um jardim em seu apartamento, também se diz abandonado e é tocado pelas sagas das crianças. A afetuosidade e a empatia, tanto dos adultos quanto das crianças, alimentam a tessitura das relações.Sob pano de fundo, temas sensíveis ao mundo e à Europa – refugiados, crime, drogas – sob a perspectiva do que toca no mais frágil de nós mesmos – violência, suicídio, amor, família. Desfiada num enredo que se movimenta naturalmente, com momentos de tensão equilibrados com cenas mais leves, a obra é um retrato humano e psicológico de problemas sociais profundos. 

A história de Abobrinha, o menino Icare, que insiste em ser chamado como sua mãe o batizou, revela o quanto a criança contemporânea segue envolta em muitos esquecimentos e solidões. Mas as relações humanas que levam ao abandono também conduzem à força para enfrentá-lo nesse filme, tão dolorido quanto necessário.

Texto: Luísa Cortés

Assista “Minha vida de Abobrinha” aqui ou site do Telecine Play