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03/05/2019

O cinema nunca foi mudo

“Quando as `terminações nervosas` do músculo-música e da epiderme-imagem se conectam, pode-se ver uma nova criança multimídia surgir no mundo, começando a respirar (…). Esse feliz casamento entre imagem e música é um exemplo fascinante de quando o todo é alguma coisa muito maior que a soma das partes.”

Assim o compositor sueco Johnny Wingstedt, artista pesquisador da narrativas musicais, define a imbricada ligação da música a outros meios narrativos. Esse é também o tema de Tony Berchmans, compositor, pesquisador e produtor musical, que há tempos estuda como composições sonoras e conjuntos de imagens se mesclam no trilhar da história no cinema e estará na Ciranda de Filmes 2019! Na mostra, o pianista ministrará a oficina A música do filme e também brindará a plateia com uma sessão do Cinepiano,  projeto no qual improvisa a trilha sonora musical ao vivo durante a exibição de uma obra, utilizando temas de sua autoria e excertos de música folclórica ou clássica, sempre em diálogo com as narrativas da telona.

Grande apreciador do gênero música para cinema, ainda criança, aos 7 anos de idade, ele começou seus estudos musicais; aos 21, passou a trabalhar com composição e produção de música para imagem; aos 36, lançou o livro A música do filme – Tudo o que você gostaria de saber sobre a música de cinema; e aos 41, criou o projeto Cinepiano, com o qual realizou mais de 140 apresentações em lugares diversos, incluindo diferentes públicos e variados temas. “Considero este meu projeto do coração. Além de tentar trazer uma experiência única para o espectador, também busco ilustrar de modo mais claro o poder narrativo da música.”

A música num filme acompanha movimentos, provoca emoções, determina contextos históricos e geográficos e cria suspenses. No cinema, “a princípio, a música é funcional, aplicada, programática, descritiva, narrativa. Em geral, as composições musicais estão ‘a serviço’ do filme e são reunidas pelo conceito da funcionalidade”. E completa, citando o maestro e compositor italiano Ennio Morricone: “Quando componho música para um filme, trata-se de uma obra minha, mas ela está a serviço da obra de um outro autor, o diretor”. Tal abordagem é o que caracteriza a composição para cinema como algo particular: “O músico que compõe para cinema por vezes é considerado um dramaturgo musical, e sua música pode ser considerada um elemento conarrador do filme”.

A música sempre existiu no cinema, diz o artista. Até no período do chamado “cinema mudo”, o cinema não era silencioso, já que frequentemente as exibições recebiam algum acompanhamento sonoro. Com a participação de um pianista solo e até de grandes orquestras sinfônicas, a música estava presente, o que transformava a experiência de se ver um filme numa imersão audiovisual singular, única. Com o surgimento dos primeiros filmes projetados com som (sendo O cantor de jazz, de 1927, um dos marcos dessa leva da sétima arte), imaginou-se um cenário em que a música ao vivo não seria mais necessária para criar climas e contextos emocionais, já que ela rapidamente deu lugar à gravação ótica do som no mesmo suporte físico do filme – a trilha de som ao lado dos fotogramas da película, o que deu origem ao tão famoso termo “trilha sonora”.

O cinema assumiu as melodias e seus potenciais sugestivos para enriquecer suas narrativas. E se vale desse uso até os dias de hoje, mesclando os recursos tecnológicos com a música ao vivo, que permitem a criação de trilhas sonoras extremamente complexas, ricas e diversas: projetos como o Cinepiano, a captação de sons da natureza, naipes tradicionais de uma orquestra, instrumentos étnicos ou paisagens sonoras criadas por potentes softwares e geradores eletrônicos de sons. “Espere um minuto, espere um minuto, você ainda não ouviu nada”, escutamos na cena de O cantor de jazz, considerada a primeira frase falada do cinema. Era só um aviso para o que se sucederia nessa arte.

Segundo o artista, no entanto, a música é o elemento mais subestimado do complexo conjunto da construção audiovisual. “Apesar da unânime e pregada importância da música na narrativa fílmica, os mecanismos que lhe conferem essa importância são frequentemente misteriosos até para profissionais reconhecidos da área. A música original composta para os filmes é um dos aspectos menos discutidos da linguagem cinematográfica e daí vem meu fascínio pelo aprofundamento nesse estudo tão carente”, defende o compositor.

Ao considerar que o olhar é um sentido que se sobressai num primeiro momento de apreciação de uma obra, precisamos então treinar nossos ouvidos para uma escuta mais consciente dos sons no cinema. Para isso, Berchmans busca desmistificar no público a magia da música no cinema, trazendo conceitos e informações que façam as pessoas apreciar os filmes com outros ouvidos. Ele explica como notar que determinada música influencia sua interpretação em relação a uma específica construção audiovisual, desencadeando uma reflexão produtiva.

E logo sugere: “Ao ver uma cena, tente identificar qual a responsabilidade da música em relação à emoção que a cena transmite. Hoje, com tanta tecnologia, além de aplicativos e streaming, não é difícil testar pequenas mudanças sonoras para identificar o poder da música. A brincadeira de se mudar a música de uma cena conhecida é habitual e ilustra como ela é de fato uma poderosa ferramenta”. Resta, então, na próxima ida à sala de cinema, ampliar a escuta para se permitir (de ouvidos abertos) desvendar as muitas nuances dessa sétima arte.

Texto: Carolina Tiemi/Estúdio Veredas

Fotos: Divulgação