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29/05/2015
A fronteira indômita entre ser e conviver
Como os espaços podem apoiar e potencializar as fronteiras indômitas do ser e conviver infantil? Como espaço de poder, a escola e a cidade têm que ser espaços de garantia da cidadania e das subjetividades que, múltiplas, devem ser espaço de expressão de afetos e políticas. A Ciranda 2016 abre uma prosa sobre as maestrias do chão, sobre pedagogia da materialidade do espaço e da experiência que Paulo Freire nos atentava. A escola e a cidade como espaços do imprevisto, da teatralidade no ensinar e do aprender, “como espaço de mudanças, de invenção e alterações espontâneas”, como diz Bell Hooks.
Beatriz Goulart, uma das grandes estudiosas brasileiras dos espaços de educação, como arquitetura e urbanista, continuou aqui a contribuição à Roda de Conversa Maestria do Chão. Ela conversou com a gente sobre as narrativas dos espaços, a arquitetura como linguagem e expressão do processo de desenvolvimento infantil e da educação, nas geografias e sobreposições de cartografias tão caras, que “explicita todos elas e quase nos conta o caminho a seguir para vivermos melhor como indivíduos e como sociedade”.
A narrativa dos espaços e os espaços de poder: Faz parte da arquitetura, a criação de narrativas e sentidos. Além do aspecto funcional de um projeto arquitetônico, como podemos entender a desenvolvimento de um projeto?
Beatriz Goulart: O desenvolvimento de um projeto depende muito da concepção que se tem, e, mais ao fundo, qual a compreensão que se tem do papel do arquiteto no mundo contemporâneo. Além disso, assim como em outras áreas do conhecimento, no campo da arquitetura e do urbanismo existem uma série de correntes/escolas de pensamento e atuação que muitas vezes são antagônicas. Cada qual com concepções e métodos próprios no que se refere ao desenvolvimento de seus projetos. Na formação do arquiteto-urbanista brasileiro pouco se discute sobre a multiplicidade destas correntes e mais se adota uma como hegemônica e inquestionável.
Meu entendimento do desenvolvimento de um projeto parte da concepção de que (nós), arquitetos-urbanistas, somos mediadores num processo de criação/produção coletiva e participativa. Para isso tenho questionado profundamente os métodos de projeto ensinados nas escolas de arquitetura e que guiam o desenvolvimento de um projeto, voltando à sua pergunta. Vou dar um exemplo aplicado ao projeto de uma escola pública. Uma das etapas do projeto é elaborar uma lista dos ambientes necessários para a escola existir. A isto damos o nome de “programa de necessidades”. O fato é que os “Programas de necessidade” de uma escola pública são elaborados à luz da concepção de educação do século 20, que, por sua vez, foi cunhada no 19!
A lista dos espaços assim como suas metragens é adotada sem que nos questionemos se ela ainda faz sentido à luz das reflexões, desejos e necessidades da escola e da educação no mundo atual e no Brasil. Programa que desconsidera as diversidades culturais e ambientais do território brasileiro. Ou seja, o desenvolvimento de um projeto deve ser entendido como uma profunda compreensão de seu objeto. Processo este que penso deva ser feito a muitas mãos, com a participação de especialistas de vários campos do conhecimento e dos usuários.
– Espaços íntimos e espaços públicos: Ao pensar a arquitetura como você pensa, qual é a possibilidade de vermos a escola como espaço de produção coletiva de linguagens e sentidos para a vida?
Beatriz Goulart: Acho fundamental! O fato é que esta proposta é anterior à arquitetura. Ela tem a ver com o sentido e proposição da escola. Exige uma virada de chave da escola conteudista para a escola reflexiva, inventiva. Os rituais escolares de tempo-espaço e atividades atuais impedem a convivência e a criatividade, pois foram concebidos para vigiar e punir, para controlar, para serem espaços eficientes, silenciosos, de modo a manterem a ordem, de modo a perpetuarem as separações; “cada um no seu quadrado”. O salto para “todos na roda”, onde a cultura poderá ser produzida coletivamente, exige refletirmos sobre a relação educação e cultura, para além da grade curricular e do espetáculo.
– Geografia da Infância: Os espaços sensíveis às crianças, os cantinhos, os espaços e tempos de brincar e do conviver fazem parte das geografias infantis. Como a escola e outros espaços dedicados à infância podem dialogar com essas geografias?
Beatriz Goulart: Penso que na etapa inicial da Educação Básica (0 a 5) esta questão vem sendo debatida e os espaços da primeira infância vêm sendo reconfigurados na perspectiva da cultura da infância, do protagonismo infantil. Falo isso pelo que tenho observado em viagens pelo Brasil. Ao meu ver, o problema é quando a Educação Fundamental se aproxima, ou se adianta, com a proposta dos 9 anos do Ensino Fundamental, passando a incluir as crianças de 6 anos nesta etapa da educação. A infância encurtada, reduzida. Os espaços perdem suas brechas, seus esconderijos. Em nome da atenção plena silenciamos os corpos. Como se para aprender precisássemos ficar imóveis.
Ou seja, muito cedo abandonamos as geografias da infância em nome da geografia da aprendizagem. Tenho estudado e atuado no sentido de aproximar estas geografias. Muita gente está fazendo isso: estender a infância até 10 ou 12 anos e, neste sentido, rever os espaços-tempos e as atividades propostas para o Ensino Fundamental 1. Temos ainda poucos exemplos no Brasil, mas sinto que o movimento é irreversível e se amplia rapidamente.
Cidade e a escola: Quanto que um é extensão da outra, em suas dimensões e conflitos?
Beatriz Goulart: Desde sua invenção, a escola tem sido um lugar para “salvar” as crianças do mundo mal lá fora e não para integrá-las a esse mundo. O que a grande cidade ensina, a escola tenta desensinar, e vive-versa. Escola e cidade atuando em caminhos opostos e os estudantes no meio disso tentando se colocar, escolhendo por uma ou por outra. Nós sabemos que escola e cidade são extensões uma da outra e compõem um todo. Sabemos por que as experimentamos e as sentimos assim. O fato é que não é isso que aprendemos e não é assim que são tratadas pelos especialistas e nem pelas políticas publicas. Por isso nosso sentir é colocado em cheque e acabamos introjetando essa desconexão. Então o sentir e o saber se desconectam também. Muitos têm trabalhado para superar essa situação. A educação integral fundamentada na cidade-educadora é um dos caminhos para isso, onde o território escolar e não-escolar passam a se integrar como espaços-tempos educativos. Desta integração depende nossa integralidade, nossa integridade. Somos simultaneamente aprendizes, educadores e habitantes-cidadãos.
– Como o conceito de cidades educadoras e criativas podem apoiar essa extensão?
Beatriz Goulart: O Jaume Trilla, pensador espanhol, que é um dos teóricos da concepção de cidade educadora, diz que cidade educadora é uma ideia-força. E penso que aí está sua potência. A expansão deste conceito no Brasil vem se dando há mais de duas décadas e tem influenciado muito pesquisas acadêmicas, projetos e práticas escolares e políticas públicas por todo Brasil, propagando a ideia de que os espaços além dos muros escolares também ensinam. Apesar da desconfiança, muitos temos nos encorajado a percorrer este caminho.
– Quais as cartografias que precisam ser consideradas na construção e conexão dos espaços dedicados à educação e à infância?
Beatriz Goulart: Costumo dizer que nossas vidas são compostas por muitas camadas de mapas. O mapa dos desejos, das necessidades, das possibilidades, das políticas, da violência, dos afetos, das potências, das carências. Mapas diversos dependendo de quem os fazem. Os mapas das crianças, dos jovens, dos gordos, dos altos, dos patrões, das mulheres, das mulheres negras, dos músicos. Mapas das geografias, das histórias, dos usos do solo. O mapa mais bonito é o que resulta a sobreposição de todos estes. O mapa de quem somos no território em que habitamos.
Com estas cartografias re-olhamos para a escola e para a cidade procurando nelas os pontos a serem reconectados, curados, potencializados, ou até mesmo, eliminados. A sobreposição das cartografias explicita todos eles e quase nos conta o caminho a seguir para vivermos melhor como indivíduos e como sociedade. Aprendi isso na prática, quando participei da criação e implantação do bairro-escola em Nova Iguaçu, baixada fluminense (2005-2009). Os resultados foram incríveis!
– A arquitetura é uma linguagem multidisciplinar (que, inclusive, empresta muitos conceitos para o cinema). Como você acredita que essa linguagem pode potencializar as geografias infantis, seus diversos espaços de exprimir as suas linguagens (sejam literais ou poéticas) e a narrativa de vida, crescimento e aprendizado (que é genuínos a cada criança, e também compartilhados e potencializados na convivência entre todas)?
Beatriz Goulart: A arquitetura é linguagem concreta. Linguagem que me faz tropeçar, relaxar, imaginar. Neste sentido articula técnica e poética através de aspectos simbólicos e operativos. Manter este equilíbrio é uma das chaves de uma boa arquitetura. Nos espaços projetados e construídos para as infâncias há muito mais ambivalência e disjunção do que equilíbrio e integração entre técnica e arte. É muito comum encontrarmos paredes e mobílias decoradas com pinturas coloridas em ambientes onde os avisos, as estantes, as cadeiras e mesas não respeitam o tamanho das crianças. Além do que, apesar dos avanços da pedagogia e da sociologia da infância, estes espaços ainda são projetados para controlar os corpos indóceis, em nome da segurança e da funcionalidade. Ou seja, nós arquitetos-urbanistas precisamos atualizar nossa concepção de infância. Para que a arquitetura possa potencializar as geografias e linguagens das crianças, o passo 1 é observá-las, interagir com elas, ouvi-las e chama-las como parceiras no projeto. Elas e os adultos que com elas convivem. Fazer “desde e com” e não mais “para” elas. Sim, a Reggio Emilia pode nos inspirar, mas já é hora de plantar e colher nos nossos próprios quintais.
Entrevista: Vanessa Fort
Fotos: acervo pessoal