Olhares

Slam: a poesia da resistência

26/08/2017

“Os meninos passam liso pelos becos e vielas. Vocês, que falam ‘becos e vielas’, sabem quantos centímetros cabem em um menino?”, provoca a poeta Luz Ribeiro, o olhar firme seguindo o ritmo das mãos que serpenteiam como quem se esgueira para abrir caminho para suas palavras. Ela vai em frente, narrando a vida das crianças da periferia, a vida à margem, invisível a quem vem de fora: “Não tem prestígio, não tem respeito, é sempre suspeito de qualquer situação”. Suas faltas, seus sonhos – “Tudo coisa de centímetros: um pirulito, um picolé, um pai, uma mãe, um chinelo que lhe caiba no pé”. Luz encerra o poema, dedo riscando a garganta: “Quanto mais retinto o menino, mais fácil ser extinto. Seus centímetros não suportam nove milímetros. Esses meninos sentem metros.” Entre palmas e gritos, quem assiste vai à loucura.

Essa performance poética é a alma do slam, um tipo de poesia falada, ritmada à semelhança do rap, só que livre da cadência musical. O que vale é a força da palavra, crua e direta, sem adereços nem firulas; sem figurino nem música, e às vezes até sem microfone. Sozinho no centro, o poeta interpreta um depoimento pessoal, em geral sobre questões sociais que o incomodam, mas vale falar de tudo: de amor, de feminismo, de política, da vida fora dos padrões sociais dominantes. Só não vale se restringir ao formalismo de seguir regras e métricas.

“É um estilo muito livre e democrático, qualquer um pode participar”, explica a MC atriz Roberta Estrela D’Alva, precursora da modalidade no Brasil e curadora de uma batalha de slams nesta quarta edição da Ciranda Filmes, que contará com as presenças da poeta Mel Duarte e da dupla composta pela poeta surda Catharine Moreira e por Cauê Gouveia, do Slam do Corpo, o primeiro slam entre surdos e ouvintes da América Latina.“A ideia do slam é devolver a poesia às pessoas, fazer com que elas sejam ouvidas.” Assim, na rua, na praça ou no teatro, os encontros de slam têm um caráter de arena, uma eletrizante competição entre poetas. Cada um tem três minutos para falar; quando terminam a performance, jurados escolhidos na plateia exibem suas notas. É assim que se define o vencedor, que geralmente leva um prêmio cultural, como livros. Esse aspecto de jogo cria um interesse imediato no público. “A competição deixa a performance mais intensa, mais dinâmica. O slam é uma poesia que só faz sentido porque existe um público que se envolve. A performance implica presença, ouvido, sentidos, emoção. É um encontro verdadeiramente humano.”

O slam nasceu nos anos 80, em Chicago, mas os primeiros encontros só começaram a ser organizados no Brasil em 2008. A cena está crescendo: hoje existem mais de 50 grupos em dez Estados. Além das disputas locais promovidas por esses grupos, existem competições de nível nacional. Com os versos de “Menimelímetros”, que abrem este texto, a poeta Luz Ribeiro foi campeã do Slam BR 2016, interpretando também outras de suas criações.

Ao dar espaço para a voz a quem em geral não tem lugar de fala na sociedade – adolescentes, mulheres, negros, gays, da periferia ou do centro –, o slam é considerado uma poesia de resistência. Numa primeira camada, essa resistência é evidente como ação política: o poema como uma maneira diferente de manifestar a insatisfação social. “A poesia abre horizontes, e nesse momento o slam vira um exercício de cidadania. A política partidária está esgotada em sua linguagem viciada. O campo da poética é o novo campo político”, diz Roberta, citando o filósofo Paulo Arantes.

Mas o que está em jogo nessa arena não é só o falar. Participar de um encontro é fazer silêncio em meio a uma cidade barulhenta. Abrir os ouvidos e a mente a visões de mundo diferentes, praticar a escuta empática, resistir à comunicação unilateral das redes sociais. Nas palavras de Roberta, é manter viva a tradição de uma oralidade que nos confere um sentido de comunidade. “O slam abre espaço para a criação de uma nova coletividade. De certa maneira, os encontros recuperam essa necessidade social de nos juntarmos em comunidade para ouvir e contar as nossas histórias.”

Texto: Bruna Fontes

Foto: Renato Nascimento