Olhares

Quando o cinema vai à escola

05/12/2017

A data era junho do ano 2000. Na França, o Ministro da Educação Jack Lang decidiu reunir uma série de consultores para um projeto cultural, denominado Mission. Queria trazer educação artística e ação cultural às escolas de seu país. Um desses convidados foi o cineasta, crítico de cinema e professor universitário Alain Bergala, que garantiu a ressonância da iniciativa pelo mundo, mesmo que a experiência francesa se mostrasse, anos depois, inacabada.

Nas escolas, o cineasta europeu sempre buscou desviar o foco de uma leitura analítica e crítica dos filmes. Acreditava que seria mais proveitoso o que chama de leitura criativa, “que coloque o espectador no lugar do autor; que o leve a acompanhar, em sua imaginação, as emoções de todo o processo criativo, suas escolhas e incertezas.” É o que explica a pesquisadora Adriana Fresquet ao comentar o trabalho de Bergala. Ela teve uma experiência semelhante com escolas públicas do Rio de Janeiro.

Com a consultoria do cineasta francês, coordenou a ação que criaria escolas de cinema em seis instituições públicas do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2013. Tudo isso como parte de seu estudo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde leciona na Faculdade de Educação e coordena o projeto de pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na Educação Básica e o Programa de Extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Reuniu suas impressões no livro Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e fora da escola.

A obra traz levantamentos sobre o lugar do cinema na escola. Um dos pontos levantados é o da potência artística de despertar a imaginação, plano essencial à infância. Cita Vygotsky ao assumir a esfera imaginativa não como  um “divertimento caprichoso do cérebro”, mas sim “uma função vitalmente necessária”, já que não parte apenas de nossos acervos mnemônicos, relativos às memórias, mas também é capaz de sonhar e projetar um futuro. O cinema traria, então, o que ela chama de uma transformação contínua da realidade. Desta vez citando Migliorin, relembra que “o que talvez o cinema tenha para ensinar seja a sua essencial ignorância sobre o mundo, ponto exato em que criação e pensamento se conectam”.

Além disso, a imaginação dá lugar à alteridade. A uma criança que nunca esteve na Amazônia ou até no antigo Egito, o conhecimento de outras realidades pode “alargar as possibilidades do conhecimento”. Isso porque a arte faz pensar, sim, mas também faz sentir. Vale-se de afetos, sensações; nos faz intuir, adivinhar, suspeitar. Parte na contramão do chamado conhecimento formal para nos apresentar o conhecimento sensível. “Trata-se de um conhecimento que, como as imagens do cinema, fica tensionado entre a crença e a dúvida, pelo que nos oculta e revela de seu processo”, explica em seu livro.

Esse tipo de conhecimento valoriza a experiência (em alemão, erfahrung), aquilo que “se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (viajar em alemão éfahren)”. Vai além da vivência do conhecimento formal (erlebnis), a “impressão forte que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”, relação cada vez mais presente entre as crianças e as velozes imagens às quais têm acesso.

Escolher um jeito de ensinar em detrimento de outro é, por fim, um ato político, como percebeu a documentarista Anita Leandro. “E se a longa história da relação entre cinema e pedagogia não passasse de uma feliz coincidência de pontos de vista, ou seja, uma confluência de posições políticas na escolha do lugar a partir do qual se constrói uma imagem do mundo?”, questiona. “As dimensões éticas e estéticas desse processo ficam inseparáveis, e desse modo, viram uma questão de educação, particularmente da escola, que, como o cinema, precisa lidar com os problemas de organização do espaço, da relação com o tempo e do questionamento do poder discursivo”.

Leia abaixo entrevista completa com Adriana Fresquet, que atua no grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD), e destaca projetos de educação audiovisual pelo país, espaços onde um filme “pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento”.

Você participa do grupo de pesquisa e extensão Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Poderia contar um pouco sobre o grupo e seus estudos? Em quais pesquisas estão trabalhando no momento?

O grupo de pesquisa e extensão CINEAD nasceu em 2006, com uma forte vocação para aproximar o cinema da educação, articulando nessa ponte a Universidade com a Educação Básica, seus professores e estudantes. Os projetos de pesquisa chamam Currículo e linguagem cinematográfica na Educação Básica e Cinema no hospital? Em ambos, procuramos identificar a potência do encontro do cinema com professores e estudantes, uma potência que é pedagógica, ética, estética, política.

Poderia explicar o que denomina “desaprender” em seu conceito de Cinema para Desaprender, falar um pouco sobre a complexidade desse termo?

Desaprender é lembrar de aprendizagens antigas e escová-las a contrapelo, isto é, identificar aprendizagens que hoje carregamos transformadas em (des)valores, quase crenças, por tê-las aprendido em contextos afetivos importantes dos quais é difícil dissociá-las sem arriscar alguma destruição da relação onde nasceram. Aprendemos (quase) sem defesas quando confiamos no/a outro/a. Nessas aprendizagens vêm misturadas todas as misérias, preconceitos e gestos de discriminação próprios da incompletude e imperfeição  da condição humana e inclusive das coisas, como afirma Passolini, ao afirmar que há uma potência pedagógica das coisas que vemos desde que nascemos que nos ensina de modo quase irrevogável uma determinada classe social, perspectivas do mundo, modos de estar e ser.Desaprender é fazer o esforço cotidiano e coletivo de revisar os nossos aprendizados, colocá-los sob suspeita, aderir a alguns, rejeitar outros, como se fosse possível arrancá-los de debaixo da pele. Desaprender é condição para reaprender com os outros, com o mundo, renovando significados e sentidos do conhecimento.

Parece que esse termo implica em uma noção de educação e de infância que vai além de seu conteúdo pedagógico. Está mais relacionada a uma experiência. Há espaço para esse tipo de vivência nos dias de hoje? Como o cinema pode contribuir pra isso? 

Desaprender constitui também uma parcela da educação e da infância que habita em nós. Se analisamos etimologicamente, educação vem do termo latino educare, é composto pela união do prefixo ex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir” ou “levar”. E efetivamente hoje entendemos a educação como esse espaço/tempo dedicado a endereçar a atenção ao mundo. No sentido de sair um pouco de si, e da tendência autocentrada e self-maníaca que volta para nós mesmos até os celulares a cada nova fotografia. O termo escola vem de skolé, “tempo livre”.

É justamente esse espaço escolar o cenário principal para ela dedicar um tempo para orientar a atenção para o mundo, afastando-na um pouco dos próprios desejos individuais, singulares, tão infelizmente produzidos pelo mercado e pelo capital. Entendemos também a infância como gesto, como nascimento, como pergunta. Nesse sentido, o cinema, seja na tela da projeção ou no display de uma câmera quando fazemos produções na escola, nos convida a expandir esse “tempo livre”, para olhar através delas para o mundo, um mundo que está aí, dado de uma determinada maneira aqui e agora, mas que é produto de infinitas escolhas e ávido de alterações.

Ao ver uma imagem do trânsito no Rio de Janeiro, por exemplo, podemos ter uma noção dessa realidade, mas também podemos imaginar como poderia ser diferente e ativar o pensamento para mudar, para inventar um outro modo de distribuição do trânsito na cidade. Entender que o plano que vemos resulta de uma câmera que foi colocada a uma certa altura, a uma certa distância, a uma certa hora do dia, que ativou uma determinada paleta de cores na montagem, mixando camadas de som gravadas em diferentes dias… significa imaginar que o mundo (ou a imagem que vemos dele) também poderia ser outra. E o melhor, que cabe também a nós a possibilidade de alteração. Desse modo, o cinema e a educação acabam coincidindo na sua matéria-prima: a realidade. E na sua maior aposta: olhar para ela visando imaginá-la como sonhada. Sonhada com os olhos bem abertos.

Para o velho Vygotsky, cada geração sonha a próxima e a acorda no ato de sonhá-la, assim a transformação (da realidade, do mundo) parece ser a promessa que traz por efeito focar no desenvolvimento da atenção ao mundo, objetivo fundamental da educação.

Existem experiências em escolas que compreendem o cinema como uma manifestação artística e cultural, e não como um simples instrumento?

Bom, eu acredito que nas escolas onde se vê cinema e se faz cinema (entendendo o cinema na escola como um tipo de cinema expandido), ele entra de maneira perturbadora, alterando os espaços e tempos escolares, um certo status quo. Provocando a imaginação e a memória para ver, rever e transver o mundo, assim como queria o poeta Manoel de Barros.

Agora bem, o cinema reduzido a “simples instrumento”, o filme utilizado como “recurso didático” pode ter efeitos independentemente da intencionalidade do professor. Isto é, mesmo que um professor projete o filme Vidas Secas para falar de Graciliano Ramos, numa aula de literatura, ou para falar da seca no Nordeste, o encontro dos estudantes e de outros professores e funcionários que eventualmente também o assistam tem um espaço de autonomia totalmente emancipado dos objetivos docentes. Uma cena pode emocionar, tocar uma memória, sensibilizar, ativar um pensamento, contagiar a urgência de dar a ver esse filme a familiares, entre outras possibilidades não previstas necessariamente pelo professor. E acho que é aí onde radica a brecha principal que fura toda opacidade da relação do cinema com a educação.

Como o educador hoje pode criar um repertório maior da arte cinematográfica, além de, claro, assistir aos filmes? Quais os desafios de formar educadores preparados para trabalhar a linguagem audiovisual nas escolas?

Hoje é mais fácil pensar na ampliação de repertórios que outrora. Haja vista que muitos filmes estão disponíveis na rede e de modo gratuito. Acredito que boas curadorias de cinematecas, museus de imagens e sons, cineastas, professores de cinema, cinéfilos, cineclubistas podem ser dicas válidas para quem está iniciando os primeiros passos. Depois, as conexões rizomaticamente o levarão a desviar-se do caminho, que não é outra coisa, segundo Kafka, que o desvio, do desvio do desvio. A ampliação do repertório é sempre a outra cara da moeda que reconhece a cultura do estudante, do professor. Mas como o tempo das artes é tão curto na escola, efetivamente privilegiamos as ações que visam ampliar repertório. O melhor modo que temos encontrado de reconhecer a cultura do aluno ou do professor nos cursos de formação é trabalhar com motivos visuais do cinema. Por exemplo, um adulto falando com uma criança. Quantos filmes apresentam uma situação como essa? Se solicitarmos aos estudantes trazer fragmentos de filmes onde haja planos com essa situação, podemos projetá-los juntos dos que nós mesmos estejamos propondo e ponderar a multiplicidade de possibilidades que uma filmagem de uma determinada situação pode gerar.

Acredito também que é preciso multiplicar experiências de formação dos professores de pedagogia e licenciaturas em experiências mudas coletivas de assistir filmes juntos, comentá-los, ouvindo de preferência análises de pessoas que entendem da linguagem para não ficar em simples análises críticas de conteúdo, em lugar de fazer análises criativas, aprofundando conceitos de história, linguagem e estética. Paralelamente considero necessário que novas licenciaturas em cinema continuem a surgir para ampliar e aprofundar os conhecimentos dos profissionais que trabalhem com essa temática nas escolas, inclusive junto dos professores sem formação ou com uma formação mais básica.

Você tem notícias de experiências ricas de cinema na escola? Poderia dar exemplos?

Nós tentamos fazer experiências ricas em cinema, em primeiro lugar, com o Colégio de Aplicação, onde começamos refletindo sobre a infância no cinema, assistindo a filmes e desenvolvendo seminários de leituras, depois sugerimos às próprias crianças, estudantes, agir como co-pesquisadores, refletindo juntos sobre esses filmes e a partir de 2008, convidamos a crianças e adolescentes a fazer seus próprios filmes inspirados no cinema.

Desse piloto, surgiu um processo de criação de escolas de cinema em escolas públicas do Rio de Janeiro. Entre 2011 e 2013 o grupo/programa CINEAD da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro criou seis escolas de cinema em escolas públicas de Ensino Fundamental no Rio de Janeiro. O projeto contou com a consultoria do cineasta e professor Alain Bergala e promoveu um ano de formação e um ano de acompanhamento dos trabalhos desenvolvidos nas escolas. Bergala acompanhou a elaboração do curso, assistiu às produções dos professores e no ano seguinte os primeiros trabalhos dos estudantes. No final, gravamos um abecedário de cinema para compartilhar seus saberes e práticas com qualquer interessado em ouvir suas reflexões sobre cinema e educação.

Existem vários antecedentes muito importantes de cinema na escola, por exemplo, o CINEDUC, no Rio de Janeiro, que há quase 50 anos vem desenvolvendo atividades de formação de professores e de oficinas de produção audiovisual. Dez anos também tem já o maior projeto audiovisual de um Estado: o Programa de Alfabetização Audiovisual, em Porto Alegre, que coordena ações do Ministério de Cultura, Educação, da FaE/UFRGS, da Cinemateca Capitólio e ainda dialoga com as secretarias do Estado e do município, é único no país com essas características. Mais recentemente, encontramos um projeto de grande capilaridade em todo o pais que é o projeto Inventar com a Diferença (IACS/UFF). Um outro projeto maravilhoso que faz parte do projeto internacional francês é Cinema: 100 anos de juventude, coordenado pela cinemateca francesa. Na UFMG, o grupo Mutum também vem desenvolvendo atividades potentes inclusive em espaços sócioeducativos.

Na Bahia, destaco o projeto Janela Indiscreta com mais de 30 anos de caminhada levando o cinema nacional e oficinas de produção desde a terra de Glauber, Vitória da Conquista, até infinitos pontos do sertão baiano. Na Paraíba, projetos como Cinestésico tem feito uma enorme contribuição ao cinema nacional. Correndo o risco de ser injusta por estar omitindo projetos importantes no país, apenas destaco alguns que conheço mais e melhor por fazer parte da REDE KINO e para poder responder essa pergunta tentando abarcar alguns exemplos no pais, cada vez mais é impossível ter não esse conhecimento de modo acabado.

“A pedagogia do cinema frequentemente esbarra no modo como se apropria de seu objeto. Ora, importa muito mais, diante deste objeto complexo, vivo e indócil, ter uma atitude justa do que se agarrar a um saber tranquilizador.” Poderia comentar essa citação de Alain Bergala? Ela se relaciona com a sua ideia do Cinema para Desaprender?

Para Bergala, é preferível trabalhar com um professor que não sabe nada de cinema do que com professor que acha que sabe porque sabe um pouco, algo apenas. Saber algo pode tranquilizar o professor e deixá-lo passivo. O professor que sabe que não sabe e está interessado não para de querer saber, de procurar, de estar alerta a tudo o que pode ser uma aprendizado. O conceito de desaprender, como respondi na segunda pergunta, refere-se mais a necessidade de colocar dúvidas nas nossas certezas, de manter uma relação viva com o conhecimento do mundo, sem considerá-lo como acabado, pronto, inalterável. Suspeitar da veracidade dos próprios valores para assim, ratificar ou retificá-los a cada dia.

 

Orson Welles era cético quanto ao ensino de apreciação das artes nas escolas. Defendia que mesmo que um jovem soubesse todos os poemas de Shakespeare, não necessariamente se tornaria um poeta. O que o professor poderia fazer é o que chamou de “comunicar entusiasmo”, deixando o aluno com as suas próprias experiências. Poderia comentar essa afirmação de Welles? Afinal, é possível ensinar a apreciação da arte nas escolas? 

Como ouvi uma vez dizer, as artes se contaminam, se contagiam, se há uma forma de ensinar, realmente é por contágio, por comunicação de uma inspiração fundamentalmente. Bergala faz uma crítica do ensino das artes, especialmente quando ela parte da linguagem. Quando uma certa “gramática do cinema” predomina sobre a experiência sensível das imagens e sons.

Mas, no nosso caso, temos sim uma defesa do ensino de artes na escola, porque é um espaço conquistado pelos professores de Artes Visuais, depois de muitos anos das artes serem consideradas algo inferior em termos curriculares, sem a categoria de disciplina. Hoje Artes já é uma disciplina escolar “hierarquizada”, mas paga esse direito tendo que se ajustar a formas e formatos típicos de disciplinas como Matemática ou Português, tais como fazer prova, por exemplo. O conceito de desaprender consiste em revisar as aprendizagens tentando situá-las cronologicamente, identificando preconceitos e desvalores que foram aprendidos em outros momentos, um gesto ou um esforço por questionar permanentemente as próprias crenças, fundamentos, hábitos, valores.