Olhares

O gérmen e o soma

03/10/2023

Por Elton Luiz Leite de Souza*

“Poeta é ser que vê semente germinar.”
Manoel de Barros

Uma ciência barroca da vida, a microbiologia, afirma existirem duas dimensões nos processos vitais: o gérmen e o soma. O gérmen é mais do que a mera semente, e tampouco deve ser identificado com o código genético. O gérmen não é a semente, mas o que faz a semente germinar. Mas ele também não é a árvore, ele é o que faz uma árvore brotar de uma semente. O gérmen está entre a semente e a árvore: é o gérmen que faz, na árvore pronta, ela produzir flores, frutos e sementes. O gérmen é uma singularidade, uma potência, um ritmo. O gérmen nunca é um ponto, ele é um dinamismo: ato de germinar. Não é apenas na semente que há coisas germinando: na árvore também sempre há coisas a germinar. Não é apenas o feto que germina, no homem adulto também germinam ideias, desejos, imaginações, ações: através destes e destas, o próprio homem germina, indo além de si mesmo, de sua forma, de seu tamanho.

Em grego, “soma” é o termo correspondente a “corpo”. O soma, o corpo, é sempre o resultado da atividade de um gérmen. Os corpos podem ser medidos, mensurados, ao passo que os germens se medem por aquilo que eles produzem. As doenças são psicossomáticas, mas a saúde é sempre produção de um gérmen.

A diferença entre gérmen e soma também habita a arte. As artes germinativas pressupõem a duração, ao passo que as artes somáticas dependem da extensão e suas dimensões. A dança, o canto e a música são artes germinais por excelência; a pintura, a escultura e a arquitetura são artes somáticas. O realismo é sempre somático, mas intensas, expressionistas, são as artes germinativas. As artes somáticas impõem um limite; as artes germinativas, como a própria vida, afirmam e expressam sempre um deslimite. O cinema atesta que em todo soma há um gérmen que o tornou possível, dado que os fotogramas são o corpo, o soma, do gérmen da luz. A poesia tem uma origem germinal, a despeito de toda redução somática concretista ao corpo da letra ou ao do som. A lei é soma, mas a justiça é sempre germinativa: nasce dela mesma, e não das circunstâncias. Soma é a família, porém gérmen é o amor. Em descargas somáticas se consuma o prazer, mas o gérmen do desejo sempre brota de si mesmo. O tempo cronológico é a soma, ou o soma, dos dias que se vão; todavia a duração é o gérmen da eternidade multiplicando cada acontecimento, fazendo-o permanecer. A filosofia possui seu corpo de doutrinas, seu soma de Súmulas e Tratados, contudo germinal é o filosofar. O significante é somático; germinal é o sentido. A posse das coisas pode dar corpo às nossas alegrias, mas o gérmen da felicidade muitas vezes germina no despossuir-se em generosidade.

Trecho do artigo “Espinosa: O direito nascente” (Revista de Direito da Universidade Cândido Mendes, edição n.º 20), publicado no blog Multitudo: poesia, arte & filosofia

Sobre o autor:

* Elton Luiz Leite de Souza é Mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ), Mestre e Doutor em Filosofia (UERJ), professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), pesquisador ad hoc da FAPERJ, autor do livro: Manoel de Barros: a poética do deslimite, 7letras/FAPERJ, 2010. Autor de artigos sobre Manoel de Barros, além de convidado para palestras e cursos acerca da (em)poética de Manoel. Em homenagem ao centenário do poeta, organizou evento nacional na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, em outubro de 2016, com inúmeros pesquisadores, do qual resultou o livro Poesia pode ser que seja fazer outro mundo (Editora 7letras, publicado em abril de 2018), do qual é o organizador e um dos autores. Em setembro de 2016, também em homenagem ao centenário do poeta, participou da curadoria de evento organizado pelo Centro de Artes UFF, o qual também resultou em livro. O autor apresentou a edição especial da revista cultural Antena MEC FM, no dia 07/12/2016, na livraria da Travessa de Botafogo. O programa da rádio foi dedicado ao centenário de Manoel de Barros. É autor de capítulos de livro, artigos e autor de livro, além dos supracitados, nas áreas da filosofia, literatura, museologia, comunicação, ética e estética. Também proferiu palestras nessas áreas citadas. Em 2007, pela Editora Núria Fabris (Porto Alegre), lançou o livro Filosofia do Direito, Ética e Justiça – Filosofia Contemporânea. Atualmente, na UNIRIO, desenvolve novo projeto de pesquisa transdisciplinar sobre a poética Manoel de Barros. Leciona e pesquisa nas áreas de filosofia, literatura e museologia.