Olhares

Mestres de muitos cantos, todos de um só rio

29/09/2016

Já tem um tempo que a terceira Ciranda girou, soprando notícias de mestres em tempos de incerteza. Mestres versados de muitos saberes – do chão e do silêncio, do gesto e do brincar, do barro e do tempo, da palavra e da imagem. Eram artesões, estudiosos, griôs, cineastas, cantadores, educadores, meninos e avós, todos juntos, numa roda só. Vieram de muitos cantos, falando muitas línguas, mas todos navegando por um mesmo rio que margeia memórias, gentes e cidades.

E chegaram com o vento do mais tenebroso inverno, no documentário-diário “Todo o Tempo do Mundo”, avisando que a natureza ensina na pedagogia da solidão. Brotaram na relação afetuosa entre crianças e velhos, no singelo curta “Ba”. Nasceram nas mãos de saberes ancestrais das ceramistas do Vale do Jequitinhonha (MG), retratadas em “Do Pó da Terra”. Viajaram pelas paisagens folclóricas, em expedições etnográficas empreendidas pelo modernista Mario de Andrade (“Mário e a Missão”).

Entre as diversas sessões de longas e curtas, de ficção e não ficção, a Ciranda girou em vivências que tinham como suporte a lousa, deslocada de sua posição vertical tradicional, ou que tinha como linguagem o barro, mestre de saberes ancestrais. Na extensa programação, as inspirações emergiram de uma delicada instalação com memórias da infância do público, assim como também da singela exposição com brinquedos de Seu Paulo, “daqueles meninos que insiste em envelhecer o corpo carregando sua infância pelo tempo”.

As incertezas feitas em ensinamentos também giraram nas três rodas de conversa, que elegeram o homem, a natureza, a cidade e a arte como potências de maestria. E assim, em tardes em que o ouvir pediu licença ao olhar, já tão encantado pelas imagens refletidas nas telonas, reuniram-se mestres de saberes ancestrais, tradicionais e contemporâneos, incluindo liderança indígena, artesã da palavra cantada, coletivo que faz arte no meio urbano, educador-questionador e artistas de múltiplas linguagens.

Ailton Krenak inaugurou a roda de conversa “Mediador de Mundos” lembrando que a palavra “ciranda” já é uma “grande convocatória”. E Krenak, nesse chamado do cirandar, evocou seu maior mestre, “a intangível entidade que é a natureza”, força manifesta das correntezas aos corguinhos (no seu jeito mineiro de dizer córrego pequeno). “A natureza me ensinou o sentido de liberdade”, disse com sua voz maviosa a liderança indígena, que iniciou a prosa com um pequeno “flash de sua alma de menino”, assim como os demais proseadores da Ciranda, como a artesã mineira Lira Marques e o educador português José Pacheco.

Os mestres todos – a natureza, as artes, as gentes – foram sendo lembrados nas rodas como numa grande colcha de pensamentos tecidos e entrelaçados. Assim, a ancestralidade do povo de Krenak (hoje, 350 indivíduos) foi relembrada pela potência de Beatriz Goulart, mais que urbanista e arquiteta, durante a prosa “Maestria do Chão”. “Essa ancestralidade a gente vai perdendo na cidade. Como eu escuto o som do rio que passa enterrado?”, disse Beatriz, que aprendeu a ouvir o chão em perguntas como “para onde venta?” e “onde é que chove?”.

Chão de asfalto, a “cidade é a maior obra humana”, complementou Joana Zatz, do coletivo Contrafilé, que sempre transita entre a prática e a reflexão no entrecruzar do urbano, da arte e da política. “A cidade é viva. A maior obra de arte do homem é a cidade, que é uma obra que a gente faz para viver dentro. Então, nesse sentido, a cidade não está pronta, não está acabada. O urbano é o lá fora, é o asfalto, é o prédio? Não. O urbano é uma força viva, somos nós produzindo o urbano, assim como o espaço público.”

Nesse diálogo tramado entre rodas, a bailarina e coreógrafa Georgia Lengos lembrou que gente é também natureza. E o rio evocado lá no começo nas palavras de saberes remotos de Krenak desaguou também em sua fala: “Temos que pensar que a gente é barro e que lá dentro tem um rio”. Diretora da companhia Balangandança, ela falou do ser humano como um círculo vibratório de movimento, “essa forma circular que está presente no sol e na lua”, e que nasce no “movimento elétrico de um espermatozoide”.

Mesmo que em três rodas, os nove proseadores estavam todos na mesma ciranda. A criança estava sempre lá, no centro. Uma das proseadoras, a mais que urbanista Beatriz Goulart, em suas reflexões sobre cidade, escola e criança, definiu trouxe uma definição certeira sobre infância: “símbolo da afirmação”, “metáfora da criação do pensamento”, “sem temporalidade linear”, a partir da perspectiva do filósofo argentino Walter Cohan.

Poeticamente, a Ciranda terminou com uma despedida da infância. Da infância de Maria Fabrislene, rainha do reisado em seu último ano de reinado em “Meninos e Reis”, e de um menino que sonha intensamente em ser palhaço e trapezista debaixo da lona armada em seu quintal (“Jonas e o Circo”). Dois filmes que retratam ritos de passagem. Mas era fim e também recomeço, tal qual anunciado nos versos de Ferreira Gullar para “O Trenzinho Caipira” (Heitor Villa Lobos), música tema desta terceira edição:

“Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a girar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girarLá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar…”

Texto: Gabriela Romeu

 


Fotos: Aline Arruda