Olhares

Através da lente de João Jardim

01/12/2021

por Thais H. Caramico, jornalista de cultura e literatura para a infância

A sétima edição da Ciranda de Filmes traz dois filmes de João Jardim. Neles, o diretor não realiza apenas uma representação sobre escolas, mas sobre pessoas nas escolas, ou melhor: ele faz uma escuta ativa de jovens e isso nos permite refletir sobre como esses lugares impactam em cada fase de suas vidas.

“A gente faz filmes sobre pessoas, e meu foco nesses dois processos são os alunos, quem são e qual é a deles. O mais importante, então, é a construção da identidade. Me interessa jogar luz nisso e de alguma forma compreender e mostrar quanta coisa deveria estar a serviço disso”, conta o diretor.

Para muito além de ações conteudistas, o que vemos em Pro dia nascer feliz (2005) e Atravessa a vida (2020) pode ser resumido em duas perguntas amplas: o que acontece dentro do ambiente escolar que tem a ver com os sentimentos da juventude? Que construção do ser humano perpassa por diferentes momentos dentro da escola?

Paulo Freire, entre tantas palavras fortes do seu dicionário, fala sobre a boniteza na leitura de mundo. Em um momento que o Brasil está vivendo um retrocesso sem precedentes, falar de boniteza como leitura de mundo é um modo de esperançar, porque na concepção freireana essa palavra está ligada ao amor, à verdade, à ética, à justiça social. E João Jardim, ainda que não faça essa associação direta, dialoga totalmente com o pensamento freireano em seus filmes.

Também sobre essa palavra, boniteza, sua dimensão poética está na prática freireana ligada ao que é bom e verdadeiro. E é muito evidente, ao assistir às produções de Jardim na Ciranda, enxergar nelas a boniteza na relação entre a câmera (o diretor) e os entrevistados. Ali há entregas confessionais, tão naturais e espontâneas como quem se abre a um amigo ou terapeuta.

Cena do documentário Pro dia nascer feliz / Divulgação

Se pensarmos no gênero documentário, que é o que João carrega nas veias, há também nessas lentes a espera de que algo incrível se revele, somando ao roteiro um fazer cotidiano bastante profundo. E sendo urgente saber o que os jovens vivenciam na escola, que é o lugar principal deles, esses filmes também dialogam com a crença de um mundo mais justo, onde as pessoas são consideradas em seus contextos e complexidades.

Cena do documentário Atravessa a vida / Divulgação

Da sala de aula para o pátio ou na expectativa do ENEM, tudo que é mais técnico vai dando lugar às subjetividades, à filosofia, às relações familiares, ao momento político atual e demais temas formativos e cidadãos, refletidos em desejos ou angústias, e em afirmações importantíssimas, por exemplo: “Como eu, mulher, negra e nordestina, posso apoiar a ditadura?”

Em falas firmes e respeitosas, a consciência política e democrática do mundo se revela para além das polaridades que presenciamos nas redes sociais, talvez um fenômeno muito mais intolerante entre os adultos, mas não nos jovens que defendem seus argumentos também interessados em conhecer o que o outro pensa. Para João, “o ambiente escolar é muito dividido, mas precisa acolher todo mundo em suas visões de mundo. Todos precisam ser ouvidos, ou não funciona”, diz.

É esse protagonismo na fala, e a valorização do pensamento e da potência da juventude que faz brilhar esses dois filmes feitos da força do chão da escola mesmo diante de tamanhos obstáculos. João Jardim nos ajuda a enxergar a vida que flui nas escolas deste país submerso em contradições. E nos faz pensar no quanto precisamos atuar como comunidade para mudar a história da educação, e também qual tem sido o lugar ocupado pela educação e seus protagonistas em meio a tanta desigualdade.

Sendo a escola um ambiente possível de realizações individuais e coletivas, e o cinema uma forma de também desencadear um processo de conscientização, temos em suas obras um retrato que junta arte e juventude, porém, mais do que isso, mostra-se como um encontro que procura falar da alma das pessoas. Não é sobre denúncia, nem sobre julgamentos morais de qualquer espécie, mas sobre empatia – a virtude de um observador atento que está ali aberto para o que os jovens têm a oferecer. E isso é muito, em especial quando a escola é colocada como um lugar de convivência e afeto.

“Me move a vontade de fazer bons filmes, gosto muito de filmar dentro da escola, e me motiva a vida nesse ambiente, que é algo muitas vezes ignorado. Isso, na verdade, é uma grande questão da educação. Como algumas pessoas podem não ver relevância em filmar a escola, se pensamos numa perspectiva de ter um país melhor? Na escola a gente aborda a identidade e é capaz de ter um conhecimento sobre o que é o país, e é isso que move, olhar para essa questão como construção do que somos ou não somos, e de onde vivemos com todas as nossas reflexões e subjetividades”, completa.

Na quinta-feira, dia 2 dezembro, João Jardim, a socióloga e educadora Lourdes Atié e a historiadora e educadora Vilma Guimarães estarão reunidos na roda de conversa Ser jovem hoje: educação, sonhos e angústias a partir da lente do diretor. O encontro acontece às 19h30, no YouTube da Ciranda de Filmes.

Aproveite para assistir aos filmes antes, e venha para essa roda pensar no sentido que o título dela traz. Queremos ouvir e pensar junto nessa potência que é a união do jovem com o cinema e a educação.

Sobre os filmes

Pro dia nascer feliz – 2005
Um diário de observação sobre a vida do adolescente no Brasil. Rodado em Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, o filme capta o cotidiano escolar e mergulha no drama de alunos e professores. Além disso, traz à tona questões comuns à realidade de qualquer jovem estudante, como a desigualdade social e a banalização da violência.

Por que ver?
Prêmio de Melhor Documentário na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, este filme é considerado um dos mais importantes retratos sobre a vida escolar no país. Sem exercer interferências diretas, a câmera flagra com liberdade salas de aula, pátios e corredores, conselhos de classe e momentos de intimidade pessoal.

Atravessa a vida – 2020
No interior do Sergipe, alunos do terceiro ano do Ensino Médio, de uma escola pública, se preparam para a prova que pode determinar o resto de suas vidas, o Enem – Exame Nacional do Ensino Médio. O filme retrata as angústias e os prazeres da adolescência através de seus gestos, inquietações e conquistas.

Por que ver?
O filme transcende a realidade local para compor um testemunho amplo sobre a vida escolar no Brasil. Além disso, recusa o dispositivo tradicional da entrevista para dar plena voz aos estudantes, captando-os em situações de debate e reflexão sobre os seus desafios e dificuldades.